A China é a nação que mais cresce no mundo, grande parte desse desenvolvimento utilizando as 'armas' fornecidas pelo capitalismo.
Naira Hofmeister
Colocar o dedo na ferida: com essa expressão, o geógrafo Elias Jabbour, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), provocou a platéia presente no quarto encontro do seminário que debate os 100 anos da Revolução Russa, em Porto Alegre, a refletirem sobre a atualidade do projeto socialista no mundo.
“Temos que ter mais coragem para sacudir alguns princípios”, proclamou, ao introduzir o tema de sua fala – o estágio atual da revolução na China – que compunha com abordagens no mesmo sentido sobre Cuba e o Vietnam.
Caso extremo, que gera debates e até desconforto em parcela dos militantes de esquerda no mundo, a China é a nação que mais cresce no mundo, grande parte desse desenvolvimento utilizando as “armas” fornecidas pelo capitalismo, embora seja governada pelo Partido Comunista. “Vinte anos depois da queda da União Soviética, isso não é pouca coisa. O socialismo de mercado da China é a coisa mais interessante que aconteceu no mundo desde os anos 90”, asseverou.
Jabbour historiou o processo chinês até seu ponto de inflexão que deu origem à essa forma moderna de gerenciar o estado comunista. Após a revolução de 1949, as práticas eram as usuais, resumidas (no que diz respeito à economia) pelo geógrafo como um “modelo de desenvolvimento pautado pelas relações desiguais entre campo e cidade”.
Em suma: um sistema em que o excedente da produção agrícola financiava a industrialização do país – e no caso chinês, também testes com bomba nuclear e lançamento de satélites, por exemplo. Foi nos anos 70 que diante da cobrança dos camponeses o Partido Comunista determinou reformas no sistema econômico, permitindo à essa população comercializar sua produção de forma independente do Estado, “institucionalizando e até incentivando o enriquecimento privado”.
Daí em diante, o espaço do poder privado aumentou e o poder do capital também. Atualmente, há oito formas distintas de propriedade em vigor na China e 149 conglomerados empresariais estatais no país. “A partir dos anos 80 houve um avanço impetuoso do capital privado, mas o estado não diminuiu sua importância, apenas recolocou-se em outro papel”, explicou Jabbour.
Com a atração de investimentos estrangeiros – era impossível, na visão do geógrafo, desenvolver tecnologia e ter acesso à financiamento sem essa inflexão – e a privatização generalizada de estatais, o governo dedicou-se a “preparar territórios para o desenvolvimento”, tomando as rédeas da planificação e deixando o investimento a cargo do setor privado.
Num segundo momento, mais atual, já como resultado dessa política, foi possível criar um poderoso sistema financeiro estatal capaz de garantir investimentos da monta de um trilhão de dólares em plena crise do capitalismo, desencadeada a partir de 2008.
Embora tenha sido a mais enfática da noite, a constatação de Jabbour convergiu com as dos demais convidados – os cubanos Juan Pozo Álvarez, representante da embaixada do país no Brasil e o jornalista Santiago Feliú, além do presidente da Fundação Maurício Grabois no Rio Grande do Sul, o ex-deputado estadual Raul Carrion, que abordou o caso vietnamita: todos mencionaram a necessidade de autocrítica e reinvenção dos regimes socialistas ou capitalistas em vigor no mundo.
Uma linha bem semelhante à do geógrafo foi seguida por Carrion, que após percorrer com didatismo as diversas etapas da revolução no Vietnam, concluiu que “não há socialismo que distribua miséria” e que portanto é preciso incentivar formas múltiplas de propriedade, reduzindo o espaço do estado, além de flexibilizar a crença no igualitarismo, distribuindo “a cada um de acordo com seu trabalho e sua capacidade”. Carrion, entretanto, defendeu a presença estatal em setores estratégicos como a infraestrutura (telecomunicações e energia) e no sistema financeiro.
Do ponto de vista da política externa, o historiador entende ser necessária a inserção na economia mundial “de forma soberana e colaborativa”, porém aproveitando-se das ferramentas oferecidas pela globalização econômica.
O Produto Interno Bruto (PIB) vietnamita de 2010 estava 34% concentrado nas mãos do estado, mas outros 30% vinha do que ele chamou de “economia familiar”, pequenos negócios e produção rural, 19% nas mãos do capital estrangeiro, 11% do capital privado nacional e 6% foi gerado por cooperativas.
A Ilha prepara a nova cara da revolução
Com o processo de renovação em plano andamento, Cuba ainda não tem resultados como os da China para exibir e nem a presença do capital privado está distante dos índices do Vietnam, mas a Ilha mira o futuro com os olhos da juventude do presente. “A revolução tem que se parecer mais com as novas gerações do que com as que a levaram à cabo em 1959”, defendeu o primeiro-secretário da embaixada cubana no Brasil, Juan Pozo Álvarez.
É um passo difícil de ser dado, admitiu o representante caribenho, uma vez que essa nova geração sequer conheceu a realidade do país fora do socialismo, como lembrou o jornalista Santiago Ferriú: “72% da população cubana tem menos de 30 anos e não sabem o que foi o capitalismo, não precisaram conviver com o risco de demissões”, exemplificou.
Essa revisão da aplicação do socialismo na Ilha, aliás, se deu a partir da cobrança dessa juventude que “começou a perder a crença no sistema” depois do colapso da União Soviética, que levou Cuba à uma crise sem precedentes, uma vez que a economia da Ilha era majoritariamente vinculada à URSS.
“O novo socialismo é diferente do capitalismo”, sublinhou Álvares. Mas sua aplicação, em Cuba, sim se espelhará nos exemplos asiáticos, conservando entretanto, as características internas da nação.
Como não poderia deixar de ser, foi o exemplo de um dos líderes mais carismáticos da esquerda – Che Guevara – que encerrou a fala dos cubanos. Segundo Ferriú, o guerrilheiro teria deixado escrito que a “solidariedade é a ternura dos povos” e com essa frase, conclamou os presentes a se manterem firmes em suas convicções socialistas.
Carta Maior
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