segunda-feira, 18 de maio de 2015

Moradores de rua são alvo de repressão e limpeza social, denuncia Júlio Lancellotti


Tatiana Merlino

Brutalidade e violência por parte da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e Polícia Militar (PM), falta de diálogo com o prefeito Fernando Haddad [Partido dos Trabalhadores – PT] e processo de higienização decorrente da especulação imobiliária. Esta é a situação a qual os moradores de rua de São Paulo estão submetidos, de acordo com o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral da População de Rua.


Padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral da População de Rua, denuncia práticas higienista da Prefeitura de São Paulo.

"O tratamento da Polícia Militar e GCM é assim: segurando armas, chutam a comida, tiram os documentos, as roupas, a coberta. As práticas higienistas da Prefeitura de São Paulo estão se tornando a forma de agir permanente em relação aos moradores de rua”, disse, em entrevista à Ponte.

O caso mais recente ocorreu no último dia 29 de abril, quando moradores da região conhecida como Cracolândia, na Luz [região central de São Paulo], foram reprimidos pela PM e CGM após a Prefeitura desmontar e retirar barracas e carroças dos moradores, entre eles dependentes químicos, para o lançamento da nova fase do Programa Braços Abertos. De acordo com moradores, durante a ação, apelidada de "Baltimore é aqui”, houve disparo de bombas de gás lacrimogêneo. O saldo foi de três feridos: dois moradores e um PM. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, elogiou a ação pelo Twitter. "Redução de dano: parabéns à GCM por desmontar as barracas que serviam ao tráfico e permitir mais 126 dependentes acolhidos no Braços Abertos”.

De acordo com Lancellotti e os movimentos sociais, a repressão teria tido como motivação uma "limpeza de área” para a inauguração do Teatro Porto Seguro, que ocorreu no dia 05 de maio. "Para nós, a higienização violenta da Cracolândia, da Luz, é resultado de um acordo da Prefeitura com a Porto Seguro”, afirma o padre, histórico defensor dos direitos dos moradores de rua. Desde a operação do dia 29 de abril, a Prefeitura vem impedindo que os moradores coloquem barracas no local.

No último dia 07 de maio, houve outra ação da GCM contra os moradores, com uso de bombas. O prefeito Fernando Haddad foi procurado pela reportagem da Ponte através de sua assessoria. No entanto, não houve resposta até o fechamento da entrevista. A reportagem também procurou a Porto Seguro, mas não obteve retorno.

Como o senhor avalia tratamento e as políticas públicas da prefeitura voltadas às pessoas em situação de rua em São Paulo?

Júlio Lancellotti – O que aconteceu dia 29 não é um fato isolado. Faz parte de um conjunto de ações. Há ações para espantar, ameaçar, retirar, perseguir e bater nos moradores de rua. São várias ocorrências. Em janeiro [2015], por exemplo, houve uma ação violenta no [viaduto] Bresser com a tropa de choque e todo aparato repressivo. No ano passado, houve uma no [viaduto] Alcântara [Machado], em 30 de maio. Está ocorrendo algo complexo na Vila Leopoldina, onde a associação Vila Leopoldina contratou uma empresa de segurança particular para fazer a segurança pública. Estamos acompanhando essas ações. Elas ocorrem desde o tempo das gestões Serra/Kassab [ex-prefeitos José Serra e Gilberto Kassab] e, por incrível que pareça, há a intensificação delas no governo de [Fernando] Haddad. Houve ações muito pesadas durante a Copa.

E, agora, há uma ação muito forte que a Prefeitura chama de zeladoria urbana, quando a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana (GCM) e a subprefeitura tiram tudo que as pessoas têm: abrigo, coberta, lona.

A assistência social acaba dando como resposta um projeto chamado "autonomia em foco”. O prédio, onde ele funciona, para onde foram as pessoas depois da repressão do Parque Dom Pedro [em setembro do ano passado], quando houve forte repressão da polícia, tem cadeado e grade na porta, para entrar tem que passar pela segurança e até na geladeira tem cadeado.

Como pode haver autonomia em um lugar com tanta tutela? Eles não acreditam que a população de rua seja capaz de ter autonomia, de se autogerir, é uma coisa extremamente tutelada e institucionalizada. Temos mostrado que esse caminho não é adequado. Tem outro programa chamado "Família em Foco”, que as pessoas têm que responder a todo um modelo, a uma proposta fechada. As práticas higienistas da Prefeitura de São Paulo estão se tornando a forma de agir permanente em relação aos moradores de rua.

Qual é a sua avaliação sobre o programa "De Braços Abertos”?

Júlio Lancellotti – É uma vitrine, onde foram investidos milhões. A população de rua é heterogênea e não dá para se dar respostas únicas nem burocratizadas.

E os resultados?

Júlio Lancellotti – O que é resultado? Que todos ficassem varredores e fossem morar no hotel? Esse é um resultado de domesticação, de controle social. O que se busca através desses projetos é que a pessoa se torne uniforme, inofensiva. Da mesma forma que se quer que a população carcerária seja controlada para que ela fique inofensiva, o mesmo ocorre com a população que está na rua. É uma forma de mantê-los na miséria e incomodem o menos possível, que não tenham voz.

E há contenção por meio da força?

Júlio Lancellotti – Sim, quando eles se rebelam. No dia 29, eu falei para o capitão [da PM] Renato [Lopes de Gomes, coordenador do projeto Braços Abertos] que qualquer ser vivo acuado reage e, quando reagem, quem tem a força a exerce sobre eles. Então, se usam bombas, a repressão da tropa de choque. É uma força desmedida e agressiva, com a utilização do gás, que é considerada arma química e de tortura pela Anistia Internacional.

Onde, na cidade, as pessoas em situação de rua são reprimidas?

Júlio Lancellotti – Em muitos pontos da cidade. Parque Dom Pedro, Sé, Glicério, Largo Santa Cecília, Vila Leopoldina, Mooca, Largo São Francisco, região de Santana, no viaduto Alcântara Machado. A situação é de muita violência. No Anhangabaú, não se veem mais crianças. No Parque Dom Pedro, o "rapa” passa todos os dias.

A Prefeitura age no atacado e, ao receber nossas pressões, quer resolver no varejo. Quando dizemos "o povo da rua está sendo reprimido, tratado com truculência”, a resposta é: "Onde, qual é o caso? Quem foi, qual rua, quem foi a pessoa?”. Temos insistido, incluindo o [Eduardo] Suplicy, [secretário de Direitos Humanos da Prefeitura] de que não adianta buscar resposta no varejo.

Há uma diretriz para a cidade e para ela usam o discurso terrível do: "a população tem direito de ir e vir”, "a cidade é para todos”, "retomamos a cidade”, "devolvemos a Luz para a cidade”, "retomamos o Largo São Francisco”. O prefeito usa essa expressão. Significa que essa população de rua não é da cidade, são extraterrenos.

O tratamento da Polícia Militar e GCM é assim: segurando armas, chutam a comida, tiram os documentos, as roupas, a coberta. O que elas estão procurando? Moradia. Querem ter onde morar. Faz parte da nossa cultura ancestral ter um lugar para morar e isso lhes é negado. Então, eles fazem isso no espaço público. Onde é o espaço privado em que eles podem ficar? Não tem. As respostas são massificantes, como a oferta de albergue. A gente sente que está havendo uma saturação, a lógica é: "não vamos dar paz para eles para ver se eles somem”. Eles são ameaçados, passam com motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas), os ameaçando, dizendo "vamos voltar”, "vamos tirar vocês daí”. É sistemático, contínuo e permanente. Imagine só, você cozinha um pouco de feijão, vem o GCM e chuta a comida?

Repressão violenta de policiais para "limpar” região da Cracolândia, no Centro da maior cidade do Brasil.

Há uma relação entre violência contra população de rua e especulação imobiliária?

Júlio Lancellotti – Essas são irmãs gêmeas. É isso que o pessoal da Porto Seguro nos perguntava: "por que estão relacionando a limpeza na Cracolândia conosco”? É impossível que uma semana antes da inauguração do teatro tenha ocorrido essa operação. A população de rua está confinada, eles estão em estado de sítio na Cracolândia.

Para o senhor, há uma relação entre a repressão à população de rua e a inauguração desse teatro?

Júlio Lancellotti – Nossa leitura é que sim, é uma coincidência muito grande. Para nós, a higienização violenta da cracolândia da Luz é resultado de um acordo da Prefeitura com a Porto Seguro. O teatro é como se fosse uma pirâmide faraônica, tem até heliporto. Há muitas teses e estudos sobre a reedição do projeto Nova Luz, [criado durante a gestão de Gilberto Kassab], na administração Haddad. Há acordos com o Itaú, para a revitalização do Anhangabaú, e a Porto Seguro assume que está revitalizando os Campos Elíseos. Há grandes interesses na região. Com a degradação da área, a Porto Seguro comprou muitos palacetes em ruínas. Há documentos que mostram o Itaú pedindo para a Prefeitura a retirada dos moradores de rua de algumas agências da Paulista, Bela Vista, Sete de Abril. A abordagem de rua da Prefeitura ia lá e tirava as pessoas.

Como foi o dia 29 na região da Cracolândia?

Júlio Lancellotti – Houve a visita do Haddad e Suplicy de manhã. Por mais otimistas que sejamos, talvez eles não soubessem como a coisa iria evoluir. Mas eles tinham no bolso que tinha que limpar, desocupar a praça e usam a desculpa moralista de que o tráfico estava usando as barracas. O discurso que fazem era que tráfico estava usando as barracas e ninguém podia ver. Mas e o tráfico dos condomínios, escolas, universidades, esse também ninguém vê. Mas, no fundo, tinha que tirar as barracas para reformar a praça e começar a limpar o espaço para a inauguração do teatro.

E como é o diálogo com a Prefeitura?

Júlio Lancellotti – Não tem diálogo com a Prefeitura. Nós temos conversado com o [secretário de Direitos Humanos, Eduardo] Suplicy. Eu ligo para ele e ponho o povo da rua para falar. Ele telefona de volta e diz: "Falei com o subprefeito e ele não sabia de nada, ele não deu essa ordem, não mandou fazer isso. Pega esse morador de rua e leva para conversar com ele”. Só que a questão não é mais essa. O prefeito tem que dar uma ordem, mas a ordem do prefeito é tirar as pessoas da rua. O prefeito disse isso para mim na última vez que conseguimos falar com ele, no Natal do ano retrasado. Ele disse: "se tiver colchão na rua, vamos tirar”. Eu respondi: "ao invés de colchão da rua, ele vai ter que ter um quarto para por o colchão para dormir. Só tirar colchão é inútil e ingênuo da sua parte. O senhor consiga não o hotel na Cracolândia, mas um lugar onde eles possam colocar o colchão e morar, colocar o colchão, mesa, fogão, cozinha, panela”.

Em sua página no Facebook, o senhor escreveu: "em mais de 30 anos de militância, já passei por muitos prefeitos em São Paulo, nomeados pela Prefeitura e eleitos, com acertos e equívocos, encontrei e conversei com todos os prefeitos e prefeitas várias vezes. Alguns momentos conflitivos difíceis. Mas o que temos vivido com o prefeito Haddad pode superar todos em insensibilidade, higienismo e cegueira moral”. Poderia falar sobre isso?

Júlio Lancellotti – Estou chegando à conclusão de que nunca tivemos uma insensibilidade tão grande, uma cegueira moral. Este é um conceito do [sociólogo polonês Zygmunt] Bauman, que coloca isso, quando não se é mais capaz de ver as pessoas com sentimentos complexos, emoções. Há o episódio do dia 29, a inauguração do teatro, mas há um antecedente que vem de longa data. Não apenas lá e sim em muitos pontos. Lá, é um ponto que está sendo visível de certa forma e que está muito explicitado. Mas, na via sacra, na Sexta-Feira Santa, nós fizemos a denúncia com o povo da rua, no Anhangabaú, junto com o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, falando da especulação imobiliária e da expulsão dos pobres da rua. Uma coisa que está clara é que essa situação não tem uma solução imediata. A cidade não sabe lidar e não tem como lidar, porque essa é a lógica do sistema.
Ponte.org

Ponte é um canal de informações sobre Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos que surgiu da convicção de um grupo de jornalistas de que jornalismo de qualidade sob o prisma dos direitos humanos é capaz de ajudar na construção de um mundo mais justo.

Adital


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