quarta-feira, 6 de maio de 2015

Ódio como Afeto Político



Christian Ingo Lenz Dunker.

O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer é o nome da peça em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade em montagem da Cia. de Teatro Acidental. O tema é objeto de um seminário internacional sobre o ódio como afeto político que acontece no mesmo espaço, aliás, uma das boas realizações de nossa Secretaria de Cultura. O tema e o título não poderiam ser mais atuais.

A peça consegue captar com precisão a lógica de nosso atual processo transformativo. Ela abre com um formato bastante brechtiano, em tom quase programático ou pedagógico citando Nelson Rodrigues de Beijo no Asfalto.

Encenado pela primeira vez em 1961, o texto de Nelson é um retrato do Brasil da hipocrisia, do desencontro orquestrado entre os canalhas, e sua libidinalização do poder e os devassos, e seu empoderamento da libido. Mas logo se vê que esta é de fato uma citação eficaz. Nelson foi profético ao antecipar o valor libidinal nas práticas de uso particular da coisa pública, típico de nosso patrimonialismo, e que viriam a se apresentar como ideologia de Estado no “Brasil, ame-o ou deixe-o” dos anos de chumbo. A abertura da peça funciona bem porque nos faz perceber como nosso olhar envelheceu com relação às pregações doutrinárias.


Há, portanto um segundo tempo lógico na peça, na qual o beijo torna-se uma alegoria. Não procuramos mais o sentido para o gesto inesperado de homem que pede um beijo a outro homem em seus momentos derradeiros de vida. O beijo que podia determinar a ruína de uma vida adequada e bem construída até então, torna-se uma paráfrase dos vindouros anos FHC-Dilma. Agora você pode escolher por quem e como você quer ser beijado. Inventar um mercado de beijos, que é a paráfrase de uma cultura da tomada de posição, para a qual a simples expressão de opiniões adquire valor em si.

A peça transmite bem este cheiro de democracia quando nos faz evoluir dos afetos rodrigueanos, como a vergonha e o orgulho, para a nova dinâmica de cinismo e ressentimento. Esta chegada dos novos tempos libidinais, meio virtuais, meio de liberais nos convidou a uma inédita consciência de gênero.

Mas, como nos três atos de uma tragédia, somos levados a fazer uma espécie de catarse por meio da qual constatamos que… aquilo deu nisso. Um tanto de nossa turbulência política deriva de um repentino re-encantamento com nossa potência expressiva. A recusa em pensar a política como processo exclusivamente institucional, promovido por sujeitos racionais, que agem com respeito a fins, segundo princípios representativos e reflexivos afirma que há algo que libidinalmente não cessa de não se inscrever em nossa partilha atual entre o público e o privado. Há algo de errado em nosso “trato dos viventes”.

O terceiro tempo da montagem mostra-se ainda rodrigueano, mas agora por outros meios. Não mais a inversão de sentido dos tempos pré-ditadura, nem a paráfrase irônica dos anos de redemocratização, mas a alegoria mítica carregada pela personalização do conflito e pela irrupção de monólogos de ódio. Ódio que já estava lá, em Nelson.

Impossível não pensar na importância da tragédia como dispositivo de reflexão política atual para nossa época. A tragédia de que o que você está fazendo é esperando o acidente acontecer não faz a catarse integrativa dos afetos, do temor e da piedade, para os gregos, que seriam, por assim dizer, universais naturais. Lembremos que Adam Smith, ao lado de sua teoria do mercado fez o seu Tratado dos Sentimentos Morais, discutido como os afetos e emoções se orientam em sentimentos egoístas ou altruístas. Os afetos, vividos individualmente só se tornam uma real determinante política quando se traduzem em sentimentos cuja aspiração de universalidade é de outro tipo. Neles, as contradições sociais que não podem mais se lembradas ou ainda não conseguem ser postas são trazidas em outra forma.

Com suas tragédias paulistas a Companhia de Teatro Acidental consegue trazer para a cena o sentimento de mal-estar, por meio de seus afetos indiscerníveis. Para Lacan o ódio é um afeto ligado à separação. Ele não é só a inversão do conteúdo do amor, mas uma espécie de causa que emerge entre o imaginário e o real. Ao lado do amor e da ignorância, o ódio é uma das três paixões do ser. Paixão que é um empuxo a nomear, a dizer, a traduzir a verdade do mal-estar. Mas como nas tragédias há uma hubris, uma ultrapassagem de limite, um excesso. Sem o ódio não nos separamos. Mas existem formas patológicas quem fazem do ódio um princípio de união em torno do pior: “junto-me ao outro, solidarizo-me com o outro, com o objetivo maior de odiar um terceiro”. E para tanto preciso nomear sem ambiguidade quem somos nós e quem são eles. Desta forma nossas diferenças internas diminuem e nossa projeção do mal para fora torna-se um importante fator de coesão grupal.

É assim que a peça faz a alegoria desta espécie de lógica da pequena multidão. Sete vozes, que se revezam em suas concordâncias e discordâncias, que gradualmente elevam o tom e a obscenidade das provocações, exatamente como se costuma acompanhar nos diálogos imprevidentes nas redes sociais. O efeito “público imaginário” somado ao efeito “nós” faz com que as dissenções evoluam rapidamente para o exagero, a reatividade e a incontinência verbal. Receita certa para o acidente. Ensaio discursivo para o colapso e mimesis do atual estado de violência latente de nosso espaço político.


Entende-se que o ódio emerja em uma situação na qual o espaço púbico e o espaço privado estejam sujeitos a uma indeterminação progressiva de fronteiras: sejam elas corruptíveis sejam elas incorruptíveis. Isso é pontuado pelas telas de televisão que mostram, irônica, cínica ou pornograficamente, o que deveria ficar escondido: as coxias, os bastidores, o atrás do palco. Quando a alternância entre público e privado se dissolve, temos um ingrediente explosivo para a emergência de formações paranoicas.

O aspecto mais notável da gramática do ódio, que a montagem consegue captar com presteza, é sua função erótica. O ódio incita o excesso, permitindo que, em doses pequenas e calculadas, ele separe a ternura do erotismo, gerando um incremento de excitação. Mas há um tipo ódio que não está baseado na concorrência em torno do “ter”, da inveja e do ciúme, mas em torno do “ser”. Esse é o ódio por trás da homofobia, da agressividade de gênero e da violência disruptiva. Neste caso é antes o ódio ao que se “é”, do que não se consegue admitir em si, que é projetado no outro a quem se agride. A mera existência do outro é sentida como realizando um decréscimo de felicidade, um rapto de gozo ao sujeito, uma ofensa à sua forma de vida. O que de fato ele será. Basta que sua forma de vida seja baseada na união orientada para a exclusão, o que chamei, em meu novo livro, de lógica de condomínio. Este ódio percebe o outro como um objeto intrusivo. E de fato ele é. Um intruso feito da mesma matéria que excluímos, em nossa fantasia inconsciente, para constituir nosso ódio. Aqui o sujeito age como se um pacto imaginário tivesse sido rompido. E de fato ele foi. Contudo, o que se revela é a natureza obscena do pacto anterior, que legitimava desigualdade e iniquidade social, de gênero e de classe. E ao vencedor, as melancias!

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Boitempo


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