Por João de Oliveira
Um grito de resistência e de liberdade contra o fanatismo supostamente religioso
Patrimônio cultural da humanidade, Tombuctu (ou Timbukto, em tamaxeque, a língua dos tuaregues, povo considerado como o fundador da cidade no século XI) foi, no século XV, um grande pólo de disseminação do saber islâmico. Sua universidade possuía mais de 25 000 estudantes inscritos (um quarto da população da época e apenas um pouco menos do que a população atual). Resta desse passado iluminista e erudito uma grande parte (aquela que não foi queimada pelos jihadistas ou vendida por imames inescrupulosos) de seus famosos e numerosos manuscritos que atestam a antiga competência dos muçulmanos nos campos da astronomia, da botânica e da música. A cidade, cuja população é religiosamente moderada e etnicamente heterogênea, já foi também um grande centro de tolerância religiosa e racial que abrigava harmoniosamente em suas terras muçulmanos, cristãos e judeus.
Timbuktu, o novo filme do cineasta mauritano Abderrahmane Sissako, não precisaria dessa lição de comunhão e racionalismo do passado da cidade para negar qualquer possibilidade de legitimidade e coerência ao projeto de sociedade do radicalismo integrista. Ainda assim, a narrativa parece servir-se desses fatos históricos para se afirmar como um libelo e melhor condenar a opressão, o obscurantismo e a hipocrisia do fanatismo religioso.
A falta de liberdade aparece metaforizada logo na abertura do filme. A primeira sequência mostra a imagem de uma gazela, símbolo pictórico de liberdade e pureza, fugindo de seus predadores, que não são lobos nem leões, mas homens que, de pé em cima de uma picape ostentando a bandeira do Estado Islâmico, atiram com seus fuzis AK 47 no animal em sua luta desesperada pela liberdade. No final do filme, a narrativa retoma essa sequência, mas substitui o animal por presas humanas. Se em sua primeira aparição as imagens denotam a animalização do Homem, na segunda, elas simbolizam a opressão e reforçam, de maneira excessivamente didática, a tese do homo homini lupus est.
Logo após a crítica da opressão e da falta de liberdade, emerge, ainda nos primeiros minutos de projeção, a condenação do obscurantismo irracionalista. A narrativa denuncia, através da destruição da bela arte primitiva africana (que tanta influência teve nos movimentos modernistas europeus), a ignorância dos fundamentalistas. Assim como fizeram os talibans no Afeganistão, os membros do Estado Islâmico também destruíram obras de artes, obras literárias e monumentos históricos considerados como símbolos animistas de um passado pré-islâmico e como responsáveis pela afluência de turistas, que contribuiriam para a corrupção dos valores morais e religiosos das sociedades islâmicas. De cidade luz da África ocidental, Tombucto teria sido transformada pelo fundamentalismo em uma cidade totalmente tenebrosa.
A aversão dos fundamentalistas à arte continua quando eles proibem a prática da música, condenando possíveis trangressores à punição em praça pública. Ou ainda quando eles tentam obrigar os jovens, a título de propaganda, a denunciar certos rítmos como sendo imorais e alienantes. A crítica do absurdo e da insensatez dessas medidas aparece de maneira alegórica, e quase eisensteiniana, em duas sequências. A primeira mostra um grupo de soldados procurando por uma casa na qual jovens estariam cantando. Filmados nas ruelas pouco iluminadas da cidade, os soldados parecem ser comandados por um burro que caminha à frente deles. O mesmo burro que interrompe, temporariamente, a partida de futebol imaginário praticado sem autorização pelos jovens em uma das mais belas sequências do filme. Cegados pelo fanatismo e pela necessidade gratuíta de demonstração do poder, os jihadistas não conseguem ver a prática cotidiana da música e do esporte como uma atividade lúdica que - como diz Toya, a adolescente tuaregue, ao seu amiguinho pastor - impediria os adultos de pensar na guerra.
Não obstante, essas imposições não são aceitas passivamente pelo povo, que resiste. Através de sua resistência às medidas artificiais, desnecessárias e incompreensíveis, o filme denuncia também a falta de comunicação que existiria entre os habitantes e os invasores jihadistas. Esses últimos não só não falam as línguas dos primeiros como ignoram os costumes e as tradições locais ; uma falta de comunicação que aparece materializada na constante falta de rede para os celulares.
No que concerne a denúncia da hipocrisia dos membros do Estado islâmico, a narrativa opta por representá-los como seres abjetos, ignorantes e contraditórios. Emblema maior dessa contradição, a maior parte das proibições impostas ao povo não é válida para os seus líderes. Assim, apesar da interdição, duas pequenas sequências mostram um chefe fumando escondido e alguns de seus soldados discutindo apaixonadamente sobre futebol. Um deles chega até a insinuar que o Brasil, "um país pobre e necessitado de dinheiro", teria sido corrompido pela França na final da Copa de 1998.
A incoerência e a contradição permanecem quando os fundamentalistas criticam o ocidente e os seus hábitos pervertidos, mas utilizam tênis, sapatos e carros de marcas conhecidas e não conseguem prescindir dos telefones inteligentes, utilizados para a comunicação, mas eventualmente também como meros brinquedos.
A narrativa ainda encontra espaço e tempo para delatar também a enorme discrepância entre a prática religiosa dos jihadistas, que se consideram acima da lei de Deus, e aquela defendida pelo imame local, um sábio que não hesita em condenar a inutilidade e o despropósito de suas resoluções e em expor ao ridículo as suas interpretações literais, equivocadas e tendenciosas do Alcorão.
Ao obscurantismo que condena, proíbe e destrói a prática artística e cultural de um povo, de uma civilização, a instância narrativa responde com um filme altamente estetizante, de uma impressionante plasticidade, apresentando uma natureza grandiosa e quase edênica, maculada pelas mãos do homem em nome de um suposto Deus. A arte e a estética do filme são propostas como alternativa e resistência ao obscurantismo e à opressão fundamentalista. Timbuktu é uma obra racionalista, uma reflexão sobre a barbárie, assim como sobre a coragem e a necessidade de resistir ao mal. É como se a resistência dos habitantes de Timbuktu tornasse-se, assim como a cidade, um patrimônio (um símbolo, um problema ?) da humanidade a ser defendido e protegido.
Um outro ponto importante da intriga refere-se à caracterização dos chefes jihadistas. Apesar de serem odiosos, eles são representados como pessoas banais e humanas, próximas do universo do espectador. Assim, em uma sequência vemos a preocupação deles com o remédio do refém e, em uma outra, vemos o lider sentir compaixão pela dor de um dos personagens, mas pedir para que isso não seja traduzido. Ele não gostaria de ser visto como a pessoa humana que ele é. Como no caso do livro de Hannah Arendt, ao qual o filme faz pensar, essa caracterização é passível de ser mal interpretada, na medida em que o diretor, ao invés de transformá-los em monstros, preferiu mostrá-los como seres humanos como quaisquer outros para não cair, como ele assume numa entrevista, no cliché hollywoodiano. Alguns não hesitarão também em denunciar o fato de não termos quase nenhuma imagem de Tomboctu no filme, uma vez que o diretor foi proibido de filmar na cidade, assim como, ressentindo-se do aspecto dialético de seu filme anterior (Bamako, 2006), o seu maniqueísmo. Como ser dialético quando a própria realidade, na qual o filme se inspira, não foi ?
Se a bela fotografia do diretor Sofiane El Fani (o mesmo dos dois últimos filmes de Abdellatif Kechiche), com sua luz quente e amarelada, procura distanciar a obra do duro realismo de sua intriga, a narrativa fragmentada e a utilização de diversos atores amadores garantem o toque naturalista do filme.
Timbuktu é um filme testemunho e de testemunha, mas também um filme documento para que não esqueçamos o que ocorreu. Um filme memorialista que deseja ser visto como um fragmento e um momento de uma história ainda em curso.
Em razão de sua temática manifestamente política e de sua atualidade, sobretudo após os atentados na França e em Copenhague, o filme é um dos grandes candidatos ao Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano.
Critico.com
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