quinta-feira, 14 de maio de 2015

Ajuste, política e religião


O Fim do Mundo
É o fim: A situação é horrível! Chegamos ao limite.

Gilberto Maringoni


O ajuste fiscal não é uma iniciativa do terreno da economia. É obra profundamente política, com pitadas de religião
O ajuste de Joaquim Levy materializa uma opção feita pela administração federal em favor de um setor da sociedade: o de cima


Há um grande equívoco na praça. Trata-se da ideia de que o ajuste fiscal em curso seria um conjunto de medidas econômicas, que envolve corte de gastos, elevação de impostos, realismo tarifário e racionalização administrativa.

O engano é potencializado pelo fato de o comandante-em-chefe da iniciativa ser o ministro da Fazenda. Soma-se a isso a constatação de que os debates sobre o ajuste estão sempre acoplados a avaliações acerca da conjuntura econômica do país.

Esqueça. Isso tudo é parte da verdade. O ajuste não é uma iniciativa do terreno da economia.
É obra profundamente política, com pitadas de religião. O ajuste materializa uma opção feita pela administração federal em favor de um setor da sociedade. O de cima.

Como embute medidas duríssimas contra a maioria da população – em especial os mais pobres – o ajuste é precedido por uma avassaladora campanha midiática e da construção de uma narrativa específica. Todos devem estar plenamente convencidos de que estamos à beira da catástrofe, que a casa está pegando fogo e que... não há alternativa.

Medidas impopulares

Ou seja, como as medidas são radicalmente antipopulares, elas só podem ser implantadas sob o pretexto de estarmos diante de questão de vida ou morte. Não há sequer o dá ou desce. É dá ou dá. Temos um único tiro na espingarda. Não há alternativa. There is no alternative!

O ajuste precisa eliminar todo e qualquer ruído dissonante. Precisa acabar com o debate. E faz isso mostrando que anteriormente havíamos escolhido outro caminho – o de um leve desenvolvimentismo –, mas chegamos a um limite. Esse é o terceiro elemento constitutivo do ajuste, além de seu caráter político e da ideia de que não há escolha.

Teríamos chegado a um limite das políticas distributivas, de crédito, de transferência de renda e de seja lá o que for. Não é necessário explicar muito. Basta dizer que chegamos ao limite da gastança, que tudo fica claro. Mas gastança com o que? Limite do que?

Limite imposto pelos interesses dominantes na sociedade. Limite que implica não fazer reforma agrária, não taxar grandes fortunas, não baixar os juros (que atinge a especulação financeira), enfim, a barreira de não contrariar grandes interesses

Os limites seriam impostos – num linguajar mais sofisticado – pela correlação de forças. Correlação de forças é a expressão mágica para se convencer não o grosso da população. Esse contingente é atingido pelo palavreado da gastança. O uso da correlação de forças serve para convencer os setores em tese mais mobilizados e conscientes, que estão nos partidos de esquerda e no movimento popular.

Recapitulemos o raciocínio. É preciso fazer ajuste. Por que? Porque a economia está com problemas. Com problemas, não, com turbulências. Fortes. Turbulências, não. Crise aberta, descontrole fiscal e inflacionário, desalinhamento dos preços relativos, ação perdulária do governo, corrupção etc. etc. A situação é horrível! Chegamos ao limite.

Contra isso o que se faz? Não há alternativa. A correlação de forças não permite outra coisa. Tem de ser ministrado um remédio amargo. Como se convence alguém a aceitar medidas que claramente irão prejudicá-lo? Aí entra o componente religioso do ajuste. Não há muito que explicar. É preciso acreditar. É preciso ter fé.

Dor e superação

Como em todo ritual místico, há duas fases essenciais. A primeira é a do sofrimento, da purgação dos pecados e, em caso extremo, o da crucificação. Mas calma, gente. Depois de tantos espinhos e lágrimas, ressuscitaremos todos no terceiro dia e conheceremos o reino dos céus.

Em termos concretos – quase desenhando, para ficar claro – nós vivemos um tempo de grande luxúria nos últimos anos. Compramos um Celta zero, uma TV de LCD, um celular de três chips, entramos na faculdade com o Prouni ou o Fies, andamos de avião, distribuímos bolsa-família e entramos no Minha Casa Minha Vida.

Pior: estávamos querendo mais. Chegamos ao limite, a correlação de forças não permite, é muita gastança, isso gerou um rombo e a inflação vai voltar por conta dessa irresponsabilidade toda. Isso, sem contar a corrupção.

Em uma palavra, pecamos. Não há alternativa. Temos de pagar por isso até 2017. Merecemos o desemprego que está começando, a redução de renda, a quebradeira que virá, os aumentos de luz, água, telefone, tomate etc. Tudo vai piorar. Depois de limparmos nossa alma e aprendermos a não pecar mais, teremos a redenção divina: crescimento econômico, emprego e vida melhor.

Fantasia?

Parece fantasiosa essa história toda? Parece, mas não é. O cenário de caos econômico foi meticulosamente conduzido pelo sistema financeiro, que hegemonizou o governo e buscou sensibilizar a opinião pública sobre a situação de descontrole.

É bom darmos uma olhada para a condição da economia no final de 2014, para ver se o caos era tão feio quanto se pintava. A dívida pública líquida do setor público somava R$ 1,88 trilhão, ou 34% do PIB. A dívida bruta somava R$ 3,56 trilhões, ou 64% do PIB, segundo o Banco Central.

Por incrível que pareça, não é nada grave, se compararmos com Alemanha (74,7% do PIB), França (95% do PIB), Espanha (97,7% do PIB), ou Portugal (134% do PIB). Vivíamos uma situação de virtual pleno emprego, com uma das mais baixas taxas do mundo (4,8%). Nos EUA, no mesmo período, 6,2% dos americanos não tinham ocupação regular. A inflação, medida pelo IPCA, estava dentro da meta: 6,41%. Hoje, depois de iniciado o ajuste, bate 8,17%.

Problema real

O problema real da economia era o fato de ela não crescer. No final de 2014, o PIB estacara em 0% ao ano. Esse era um problemaço. E por que não se crescia? Porque a elevadíssima taxa básica de juros (11,75% em dezembro) encarecia o crédito, freava investimentos, sobrevalorizava o câmbio, tirava competitividade de nossas importações, tornava impossível o financiamento de nossa dívida pública e dilapidava a balança comercial.

A conta de juros, principal fator para a realização de cortes orçamentários, alcançava mais de R$ 250 bilhões no final de 2014. Isso resultava num déficit público R$ 297,4 bilhões, o equivalente a 5,84% do PIB. Esses eram fatores preocupantes. Não se deve subestimá-los.

A economia necessitava, no final do ano, de uma alternativa perfeitamente viável. Uma redução drástica nas taxas de juros, que diminuiria o déficit e realinharia o câmbio para patamares razoáveis. A situação era grave, mas havia alternativas. Necessitávamos de um ajuste desenvolvimentista. Não havia necessidade alguma da opção recessiva e ultraliberal patrocinada pelo governo.

Ela foi decidida para garantir a não penalização do grande capital durante a fase mais aguda da crise externa, que é real, mas não determinante dos problemas internos. Contudo, isso não pode ficar claro. Se ficasse, surgiriam opções à ortodoxia no debate público. Daí a necessidade de haver a campanha do caos.

E é pouco provável que – mantendo-se o arrocho atual e diante da persistência da crise mundial – a economia volte a crescer ao cabo de dois anos. Isso pouco importa. Dogmas religiosos não se discutem. Cumprem-se. Se não sairmos do buraco em que nos metemos, a culpa é nossa, só nossa, que continuamos a pecar...

* Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC. Foi candidato do PSOL ao governo de São Paulo em 2014.

 

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