Caio Barbosa
Mesmo com resistências e descrenças, a proposta de transporte público gratuito é uma realidade em diversas partes do planeta. A tarifa zero é uma política pública adotada hoje por 86 cidades, em 24 países do mundo, segundo o site colaborativo Free Public Transport, que disponibiliza um levantamento sobre a implementação dessa política em cada uma das localidades.
Só no Brasil, foram listadas onze cidades. No estado do Rio, Porto Real e Silva Jardim já contavam com a iniciativa. Maricá adotou a medida em dezembro de 2014. É a primeira com mais de 150 mil habitantes (número estimado para este ano). Com 362km² de área, o mesmo que Niterói e São Gonçalo juntos, a prefeitura ignorou pressões e criou a Empresa Municipal de Ônibus (EPT), autarquia que passou a gerir o transporte local.
Segundo dados oficiais, foram investidos cinco milhões de reais na compra de dez ônibus. Divididos em quatro linhas, atendem as extremidades dos municípios, indo do bairro Recanto à Ponta Negra. Percorrem cerca de 55km cada linha, durante 24 horas por dia e nos fins de semana. Somente no primeiro mês de funcionamento, a EPT transportou mais de 200 mil pessoas em veículos com ar condicionado e elevador para cadeirantes. De lá para cá, a média é de cerca de 195 mil por mês.
“O custo integral do serviço gira em torno de 700 mil reais por mês, com todas as ações incluídas. É inteiramente absorvido pela municipalidade, como parte de um investimento com aplicação responsável dos royalties do petróleo em serviços essenciais, nos quais estão incluídos saúde e educação, por exemplo. Do valor aplicado no sistema, são deduzidos em torno de 400 mil referentes aos vales mensais que a Prefeitura pagava aos seus funcionários”, afirma a assessoria da Prefeitura de Maricá.
O processo de estatização do transporte tem dois objetivos oficiais: permitir que famílias possam conhecer regiões do município que antes não iriam por conta do custo de passagem e estimular empresários a contratar funcionários dentro do município sem ter de arcar com o vale- transporte.
Outro alvo é o fim do monopólio: “Há pelo menos 40 anos, apenas uma empresa domina a maior parte das linhas de ônibus da cidade. Passageiros que se deslocam internamente no município usavam suas linhas intermunicipais, cujo bilhete é bem mais caro”, afirma o município.
A empresa que ainda opera em Maricá é a Viação Nossa Senhora do Amparo. Ela faz parte da rede de Jacob Barata, o “Rei dos ônibus”, como ficou conhecido. É o fundador do Grupo Guanabara e empresário líder no ramo de transporte no Brasil. Suas empresas operam nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Ceará, Pará, Paraíba e Piauí.
Segundo denúncia do jornalista Fernando Rodrigues, do portal UOL, 31 sócios, diretores e parentes de donos de empresas de ônibus municipais do Rio de Janeiro tinham contas bancárias listadas no HSBC da Suíça nos anos de 2006 e 2007. Uma dessas famílias é a de Barata, que manteve 17,6 milhões de dólares em contas do banco. O município de Porto Real, no Sul Fluminense, implementou o passe livre por meio de parceria com empresas locais. Não apenas aboliu a tarifa de 50 centavos por trajeto, em 2011, mas aumentou as linhas de ônibus que atendem sua população. Com 16 mil habitantes, estima-se que três mil deles façam uso do sistema diariamente.
Em Silva Jardim, a política de Tarifa Zero vigora desde fevereiro de 2014, quando a prefeitura adquiriu dez veículos novos, que circulam em oito linhas, todos os dias da semana. Com uma população de aproximadamente 22 mil habitantes e cerca de 938km², Silva Jardim é o quinto maior município do estado. Há distritos afastados até 40km do centro da cidade, fazendo com que boa parte das famílias usem o transporte público local. Antes da medida, o transporte era terceirizado e a tarifa custava um real.
No Brasil, famílias gastam com transporte o mesmo que com alimentação
O transporte público urbano é utilizado diariamente por aproximadamente 60 milhões de brasileiros. O segmento ônibus representa 92% dessa demanda. Outros 37 milhões não podem utilizar o transporte público de forma regular por absoluta impossibilidade de pagar a tarifa. Os dados constam do documento “Desoneração dos custos das tarifas do transporte público urbano e de característica urbana”, de abril de 2009, realizado pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).
A maioria desses 37 milhões de não usuários são indivíduos de baixa renda ou que moram longe dos centros urbanos. As consequências são zonas de exclusão dentro da cidade e aumento do déficit na renda familiar.
Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009, realizada pelo IBGE, demonstram que as famílias brasileiras gastam, em média, 19% do orçamento familiar com o transporte. O valor é quase igual ao gasto com a alimentação. Neste caso, transporte inclui gastos com ônibus, táxi, metrô, integração, trem, barca, transporte alternativo, bonde e plano inclinado.
Segundo o documento da NTU, o transporte público é um direito essencial. Essa também é a posição defendia pelo Movimento Passe Livre (MPL). Para Fábio Campos, militante do MPL-RJ, “o maior desafio é mostrar para a população que a tarifa zero é possível de ser implementada. Conseguir que as pessoas não vejam a Tarifa Zero como algo utópico, mas como um direito que nos é negado diariamente e que é preciso ser conquistado”.
A discussão sobre a não cobrança da tarifa no transporte público no Brasil vem do fim da década de 1980. Tomou novo fôlego durante as manifestações de junho de 2013, convocadas, em um primeiro momento, pelo MPL. Para o movimento, “o transporte é um serviço público essencial, direito fundamental que assegura o acesso das pessoas aos demais direitos como, por exemplo, a saúde e a educação”.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o artigo 13 estabelece que “todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado”. No Brasil, esse direito está expresso na Constituição Federal de 1988, artigo 5°, inciso XV: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.
Viabilidade financeira e escolha política
A decisão do valor da tarifa é tomada entre o governo local e as empresas que operam o transporte por meio de concessões públicas na cidade. Os reajustes são anuais. As planilhas de custo de operação, porém, não são divulgadas ou debatidas com a população.
“É fato que, pelo que pagamos, o transporte como um todo é de péssima qualidade. Todo o transporte da cidade foi e é planejado sem haver uma grande consulta às reais necessidades da população. Não temos nenhuma ingerência sobre o que será feito para nós. E temos também a má qualidade dos ônibus e metrôs, além dos constantes acidentes, especialmente nos trens e BRTs”, afirma Campos, para quem a existência da tarifa é uma escolha política, não financeira.
A prefeitura de Maricá, da mesma forma, garante que “a escolha é política, porque há a decisão de contrariar e enfrentar interesses poderosos que possuem capacidade de pressão. O modelo de Tarifa Zero de Maricá está funcionando justamente por ser completamente impermeável às formas de atuação e de controle de mercado que fizeram as empresas privadas de transporte público serem atores fortíssimos em qualquer discussão sobre políticas públicas”.
Segundo números do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgados pelo economista Carlos Henrique Carvalho logo após as manifestações de 2013, o custo para a implementação da Tarifa Zero nas cidades brasileiras estaria na ordem de 50 bilhões de reais por ano, se a demanda se mantivesse. Na região metropolitana do Rio, a tarifa zero custaria anualmente cerca de 13 bilhões, segundo estimativas iniciais da Agência Metropolitana de Transportes Urbanos do Estado do Rio de Janeiro.
O ForumRio.org entrou em contato com a Secretaria Municipal do Rio e a Secretaria Estadual de Transporte para saber os valores designados para transporte público entre os anos de 2012 à 2015, mas as respectivas assessorias não disponibilizaram as informações até o fechamento da reportagem.
Primeiros passos de uma longa caminhada
Para Fábio Tergolino, representante do Fórum Permanente de Mobilidade Urbana da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e ex-funcionário do Metrô, um dos primeiros passos em um longo e complexo processo para a Tarifa Zero é avaliar a tarifa pela quilometragem.
“É necessário alterar a estrutura modal do Rio de Janeiro, pois, como todos sabem, a cidade é baseada no modal rodoviário. O transporte que tem o quilômetro mais barato e eficiente é o sobre trilhos”, afirma Tergolino, que relembra a época em que a população pagava pelo quilômetro percorrido no ônibus. “Era época das fichinhas coloridas. Você não pagava o trajeto todo, e sim somente a distância que precisava”, completa.
Outras possibilidades no caminho para adoção da Tarifa Zero são levantadas por especialistas. Na cidade de São Paulo, em 1990, a Prefeitura elaborou proposta de implementação da política para o transporte público da cidade tendo como base a redistribuição de renda, criando o Fundo de Transporte. O recurso seria oriundo da ampliação das alíquotas do IPTU, de modo que a sua receita pudesse cobrir o gasto com a Tarifa Zero. A maior parte do IPTU era pago pelas empresas que possuíam os edifícios mais valiosos da cidade, juntamente com os detentores de terrenos vagos e de moradias de alto luxo.
Outro formato já testado é o pagamento de uma taxa mensal para usar o transporte. A cidade de Talinn, capital da Estônia, implementou a Tarifa Zero no transporte coletivo em 2013, tornando-se a primeira grande cidade europeia a adotar o esquema. Para utilizar a rede completa, que inclui trens, ônibus e bondes, basta que o usuário apresente um cartão registrado na prefeitura pagando uma taxa de dois euros.
Ibase
Nenhum comentário:
Postar um comentário