Maurício Moraes
As comunidades terapêuticas nasceram como uma solução para o tratamento do vício em drogas, mas se tornaram uma versão moderna dos manicômios
Tidos como solução para recuperar viciados em drogas, as CTs falham ao ser aparelhadas por pastores
Em um momento de ajuste fiscal, onde há corte em vários lados, um setor verá triplicado seus investimentos pelo governo neste ano. Tratam-se das Comunidades Terapêuticas, essas casas e fazendas usadas no “tratamento de dependentes de drogas”. Antes de falar delas, deixo que um próprio detento conte sua história, com sua grafia e gramática particular.
“Temos mais de 50 pessoas em cárcere privado onde a família não quer em casa e os colocaram confinados como coelhos e estão todos amontoados. Ainda como o pior de tudo somos chamados de lixo, esquesitos, mocorongos, bicha, vagabundos, lesados e outros diseres pelo dono, que acaba de vez com nós. Sei que a nossa família paga um bom preço para nós estarmos aqui internado, necessitamos de ajuda mas do jeito que vai não dá.”
O email, com o título “Ajuda Pelo amor de Deus”, triste e ironicamente, chegou em minha caixa postal na mesma semana em que as CTs foram regulamentadas no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça . Venceu o lobby das CTs e da Frente Parlamentar das CTs, contra os que defendem uma moderna abordagem de saúde pública.
O que nasceu como tentativa genuína de “solução” para o “vício nas drogas”, quando foram criadas há algumas décadas, tornou-se a versão século 21 dos manicômios. Virou também um negócio lucrativo que envolve religiosos e políticos - alguns desavisados e bem intencionados, grande parte deles picaretas.
O email me fez lembrar o filme Bicho de Sete Cabeças, de Lais Bodansky, que conta a história de um “maconheiro” internado pelos pais, vivida pelo ator Rodrigo Santoro. O enredo se baseia em fatos reais passados em um manicômio.
Nos tempos atuais, o que se vê nas CTs é uma abordagem obsoleta junto a pessoas com uso problemático de drogas. Especialistas de saúde convergem para políticas como a do CAPS, os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas do SUS, que funcionam na rede pública, em Unidades de Acolhimento ou em ambulatórios de rua.
Nas políticas de saúde pública prevalece uma abordagem de redução de danos, que se baseia no fundamento de que o usuário não deixará necessariamente a droga do dia para a noite e que se trata de uma adição química que precisa ser tratada como tal. Ou seja, encurralar e tentar curar à força não funciona.
Falando em números, com a regulamentação as CTs passarão a receber cerca de R$ 300 milhões no próximo biênio, o maior orçamento da história da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), três vezes mais de tudo que já receberam (lembremos que hoje já é um bom negócio!). Enquanto o movimento antiproibicionista ainda engatinha rumo à uma revisão da política de drogas no Brasil, os fundamentalistas e a bancada do negócio fazem à festa às custas de pessoas que precisam de ajuda especializada.
Em muitas CTs, os internos são submetidos à tortura proselitista, sobretudo de pastores evangélicos que tentam curá-los do “vício” com a mesma determinação que tentariam curar um gay se assim o pudessem. Neste caso, ainda cobram, já que muitas famílias gastam boa parte de sua renda na tentativa de “salvar” os filhos.
Mas apenas donos de CTs não teriam poder suficiente para conquistar tamanha façanha (lembrando que, neste caso, setores do próprio governo foram críticos à regulamentação no Conad, caso do Ministério da Saúde e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República).
A regulamentação só passou no Conselho porque teve apoio da Frente de Defesa das Comunidades Terapeuticas no Congresso, composta por deputados como Celso Russomano, Delegado Éder Mauro, Bruno Covas, Delegado Edson Moreira, Mário Negromonte, Pastor Eurico e Sérgio Reis. Há gente de todos os partidos na tal frente, dos PQualquerCoisa ao PSOL, passando por PSDB e PT.
Na seara da esquerda, surpreende que deputados como Alessandro Molon (PT), Luiza Erundina (PSB), Edmilson Rodrigues (PSOL) e Jô Moraes (PCdoB) andem apoiando esta história. Confira a lista completa.
Como bem colocou em nota o Conselho Regional de Serviço Social de MG, a palavra é “retrocesso”. Agora, o que resta é a redução de danos.
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*Maurício Moraes é militante de direitos humanos, da causa LGBT e do antiproibicionismo. É filiado ao PT e secretário de governo de Araçoiaba da Serra (SP).
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Carta Capital
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