segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Eagleton: Marx estava Certo


Prefácio da edição brasileira

Contra a caricatura: do estilingue à bomba atômica
Luiz Felipe Pondé

Marx estava certo? Não sou marxista, por isso acho que a resposta a esta pergunta é “nem sempre”. Este livro de Terry Eagleton, que você tem em mãos, é um esforço para dizer que ele acertou em tudo. Para além do fato de se Marx acertou em tudo que disse, coisa sobre a qual discordamos Eagleton e eu, não há dúvida de que Marx é indispensável para entendermos o mundo em que vivemos. Sem ele, somos, de certa forma, cegos.


Nesse sentido, Eagleton está coberto de razão ao escrever um livro que combate a caricatura do pensamento de Marx, nos oferecendo uma compreensão do grande crítico do capitalismo, para além de simplificações a serviço do debate empobrecido. O autor nos dá
uma “lupa” para enxergarmos para além da caricatura feita, muitas vezes, por críticas apressadas, e, por isso, trata-se de uma obra que serve tanto a marxistas quanto a não marxistas. Dessa forma, é um texto formador, servido aos homens de boa vontade — sem eles, não haveria mundo.


Formar alguém é dar a esta pessoa as ferramentas necessárias para ela compreender melhor o mundo em que vive e poder, no mínimo, sofrer nomeando as razões de seu sofrimento. E desde a Bíblia hebraica, hebraica como o velho Marx (como reconhece o próprio Eagleton ao nomear Marx “um profeta judeu”), sabe-se que nomear as coisas do mundo é um mandamento divino que faz de nós humanos.


O “melhor” Marx, em minha opinião, é o Marx que nos ajuda a nomear nosso sofrimento no mundo contemporâneo, no qual tudo que é sólido desmancha no ar. Ao lado, talvez, do diagnóstico de Freud acerca do mal-estar na civilização, eu não conheço outra
maior verdade sobre nossa vida contemporânea do que essa dissolução da vida diante da lógica absoluta do dinheiro, dinheiro este que nos olha com olhos vermelhos cheios de sangue como um deus monstruoso e implacável. Dinheiro este que desejamos como o néctar dos deuses, mas que nos consome como um vampiro consome sua vítima.


Dirão os não marxistas (como eu) que sempre sangramos. Mas direi, como os marxistas (que não sou), que é imperativo identificar sempre as novas faces do sofrimento humano. E, nesse sentido, Marx é urgente. Portanto, se você quiser aprofundar de modo atento e claro o pensamento do grande crítico do capitalismo Karl Marx, leia Eagleton.


O autor organiza sua desconstrução da caricatura de Marx a partir de dez capítulos que discutem, cada um deles, uma crítica comum ao pensamento de Marx. Eagleton, na minha opinião, acerta em muitas de suas respostas as críticas que seleciona como exemplo da caricatura de Marx, mas nem sempre escapa da devoção que todo intelectual, que escolhe uma teoria como sua, costuma cair. Os vícios da devoção em qualquer situação na vida são sempre muitos, mas seguramente o autor tem aqui muito mais virtudes do que vícios. Um exemplo dos efeitos de sua devoção a Marx é quando ele tenta negar que existam traços de “profetismo utópico” em Marx e que ele, Marx, acima de tudo, era um investigador do presente e não um oráculo do futuro. Apesar de que isto seja, em grande parte, verdade incontestável (ele dá inúmeros exemplos em sua argumentação contra o “Marx oráculo”), não há como negar os estremecimentos proféticos em Marx quando ele imagina um mundo sem um Estado que represente uma classe em detrimento
da outra, portanto, não autoritário. Minha dúvida, para além de se Marx era ou não alguém que via a si mesmo como oráculo, é em que medida a assimilação de seu pensamento pelos marxistas não é também efeito de caricaturas, na medida em que a maioria deles, parece-me, treme de louvor diante do “mundo melhor” que o marxismo nos legaria se aceitássemos sua “práxis”.


A pergunta que fica é: a desconstrução da caricatura de Marx não serviria como antídoto, não apenas para não marxistas, mas também para os próprios marxistas mais devotos?


A seguir, as críticas que Eagleton enfrenta. O marxismo acabou e só serviu para criticar um capitalismo de chaminés inglesas no século XIX. O marxismo só serve na teoria porque na prática só serviu para realizar a violência em grande escala. Portanto, ser marxista hoje é ser iludido historicamente ou simplesmente uma falha de caráter. O marxismo é apenas mais uma forma de determinismo que faz de homens e mulheres seres autômatos, dominados pela “História econômica” do mundo. O marxismo é um delírio utópico e, como toda utopia, um desastre histórico. O marxismo reduz tudo à economia e nega todas as outras dimensões humanas, como a psicologia, a biologia, a espiritualidade, a arte, laços sociais não econômicos, enfim, toda e qualquer forma humana que não seja condicionada pelos laços e interesses econômicos. O marxismo é um materialismo filosófico que nega tudo que não seja átomos e por isso reduz os homens à condição ontológica de pedras. O marxismo é obcecado pela luta de classes e a história não é luta de classes apenas. Por exemplo, como deduzir o amor da luta de classes ou um acidente de carro? O marxismo prega a política da violência e, portanto, é moralmente cruel e desumano. O marxismo acredita num Estado todo-poderoso que determina todas as dimensões da vida. O marxismo nada tem a ver com os movimentos sociais mais
importantes das últimas décadas porque não foi a inspiração do feminismo, do ambientalismo, do movimento gay e de outros.


Enfim, o marxismo seria uma teoria ultrapassada que fez mais mal do que bem e qualquer que seja o “bem” que tenhamos conseguido nos planos políticos e sociais não são devedores do marxismo.


Deixo ao leitor o prazer de acompanhar Eagleton em seu enfrentamento teórico da caricatura do marxismo que ele mesmo desenha na abertura de cada capítulo. Mas adianto que, seguindo um dos maiores marxistas do século XX, Theodor Adorno, citado pelo próprio Eagleton, parece-me evidente que um dos grandes ganhos do marxismo é escapar dos fetiches do mundo moderno burguês e sua crença rasa na razão iluminista e na tecnociência progressista. E reafirmo, com Eagleton e Adorno, que a história humana não é uma simples história que vai das ideias falsas, como as ideias religiosas, a ideias claras e distintas do racionalismo burguês, mas sim, que a história humana é muito mais uma
ópera de sangue que, como dizia o próprio Adorno, vai do estilingue à bomba atômica.



Luiz Felipe Pondé é professor da PUC-SP e da FAAP, professor convidado da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, pesquisador da Fapesp e professor convidado da Universidade de Marburg, da Universidade de Sevilla.

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