Michel Zaidan Filho - Fevereiro 2007
1. A institucionalização da Ciência Política no ambiente universitário brasileiro deu-se com uma dicção anglo-saxã, através das diversas modalidades da teoria da Escolha Racional (rational choice) ou da teoria dos jogos, como também é conhecida pela difusão da Escola de Chicago, tão bem representada pela obra de Adam Przeworski. A ampla aceitação dessa teoria nos departamentos das ciências sociais e aplicadas da Universidade brasileira tem a ver certamente com a extraordinária eficácia de sua aplicação em pesquisas empíricas relacionadas ao comportamento eleitoral, à avaliação de políticas públicas e do jogo parlamentar nas casas legislativas.
A enorme influência dessa nova modalidade de positivismo veio neutralizar a presença do marxismo, do estruturalismo francês ou da Escola de Frankfurt no meio acadêmico, criando uma espécie de “pensamento único”, extremamente útil, aliás, para políticos gerentes, políticos reguladores ou simplesmente salesmen — como chama ironicamente a revista inglesa The Economist essa safra de estadistas da “reforma do Estado”.
A contraposição a esse “pensamento único” nos centros de pós-graduação de Ciência política vem sendo feita, penosamente, com elementos e pressupostos teórico-filosóficos para uma nova teoria de base normativa da política, cujos antecedentes mais remotos encontram-se na noção aristotélica de zoon politikon e de comunidade da ação e da palavra (a democracia ateniense, na versão romântica de Hannah Arendt). Passa pela figura exponencial de Hegel, sobretudo o de Iena, e sua noção de eticidade, por Habermas e sua teoria da ação comunicativa, para finalmente encontrar uma primeira sistematização em Axel Honneth e na sua famosa “teoria crítica do reconhecimento” — a gramática moral das sociedades contemporâneas.
Na verdade, os elementos filosóficos para uma teoria política que, em vez dos interesses e do individualismo possessivo, tomasse a luta pelo reconhecimento como motor da evolução social, representam a outra grande vertente do pensamento social moderno, oposta à linha que começa com Tucídides, passa por Maquiavel, Hobbes, Locke, Marx, Lenin, Foucault e os neoliberais contemporâneos. Ou seja, a idéia de que a sociedade é o resultado de interações individual-egoísticas, e a política é a maximização dos interesses dos indivíduos. Não caberia, portanto, nenhum juízo de valor sobre que estratégias são virtuosas ou imorais. O êxito é o critério de verdade dessa política dos interesses. Em muitos casos, o sucesso e o poder de sedução de uma tal teoria seriam o resultado direto da racionalização de situações de fato da política contemporânea, sobretudo depois do defaut do socialismo.
É contra esse exercício de racionalização nas ciências sociais que se levanta esse esforço teórico destinado a dotar a política e o pensamento político de novas bases normativas, ainda que se valendo dos conflitos como motor da evolução moral da sociedade. Neste ponto será útil considerar a obra de J. Habermas como uma encruzilhada do pensamento político contemporâneo, ao tentar conciliar a matriz liberal dos interesses com a herança aristotélica e hegeliana da comunidade política de cidadãos livres e iguais. Assim, Habermas apresenta-se como interlocutor válido tanto da grande tradição liberal anglo-saxã, como da tradição greco-moderna representada por Hegel, Marx, Gramsci, Althusser, Hannah Arendt, etc.
2. Como se pode resumir o diálogo habermasiano com essas duas tradições? Através de uma nova idéia do “procedimentalismo” kelseniano e, sobretudo, bobbiano. Ao desidratar a política e a própria democracia de qualquer resquício de essencialismo, de substancialismo, o procedimentalismo enfatiza as chamadas “regras do jogo” democrático, na tentativa de se obter um consenso generalizado em torno da idéia de democracia — sem adjetivação.
O regime democrático é uma disputa de interesses ou de grupo de interesses regida por um conjunto mínimo de regras ou procedimentos, sem prejuízo dos ideais mais amplos dos grupos vencedores. Cumpridas as regras do jogo, os vencedores serão legítimos, independentemente das idéias professadas por eles. Essa versão desencantada da política democrática — acusada por muitos de elitista e manipulatória — seria o minimum político aceitável pelas diversas correntes de pensamento.
A contribuição de J. Habermas a essa teoria procedimental da democracia reside na incorporação daquilo que Hannah Arendt chama de “espaço público” ou “esfera pública”. Só que, ao contrário da pensadora alemã, a originalidade de Habermas reside no uso racional das regras do discurso argumentativo à disposição dos cidadãos-vox, e não numa qualidade republicana inata (a virtude cívica) em cada participante da assembléia política. A noção de “espaço público” na filósofa judia é eminentemente republicana, no sentido de que os cidadãos que integram a arena dos dicursos já possuem a virtude cívica, e é isto o que os habilita a participar da assembléia através da palavra e da ação.
Habermas questiona a existência dessa qualidade inata, que, para ele, não preexiste ao “espaço público” e se constitui a partir do uso racional das regras do discurso, no quadro agonístico das disputas retóricas ou argumentativas em busca do consenso. Neste aspecto, Habermas não se diz republicano, mas discursivo ou procedimentalista-discursivo. Seria essa a junção entre a vertente liberal dos interesses e a vertente comunicativa.
A teoria da ação comunicativa — apontada por alguns como uma das últimas grandes sistematizações do pensamento ocidental — recebeu contribuições importantes de dois discípulos norte-americanos de Habermas (Andrew Arato, Jean Cohen), que ajudaram a desdobrá-la numa teoria com acento e inflexão política: a teoria da democracia deliberativa, a partir de uma ressignificação do conceito de sociedade civil.
Ligado, agora, à noção de “mundo da vida” ou de “racionalidade comunicativa”, o antigo conceito hegeliano passou a designar a institucionalização de direitos e garantias, sem os quais não haveria possibilidade do exercício de uma razão discursiva, apoiada no bom argumento ou no chamado “consenso pós-convencional”. Temas como direito de expressão, liberdade de pensamento, liberdade de associação, etc., passaram a integrar o novo conceito de “sociedade civil” — como a dimensão institucional do “mundo da vida”.
A partir da contribuição de seus discípulos norte-americanos, Habermas reelaborou sua suma filosófica e nos legou um grande estudo sobre Direito e Democracia, incluindo uma teoria discursiva do Direito, mas também propôs uma variante da teoria democrática, que ele chama de “deliberativa”, para se distinguir da “liberal” e da “republicana”.
Em que consiste essa variante? Consiste num edifício de três andares, sendo o primeiro o mundo da vida e as demandas e reclamações espontâneas que se originam aí. Não são ainda políticas, são pré-políticas. Um segundo andar seria a esfera da tematização política propriamente dita dessas demandas e reclamações, através de assembléias e fóruns da chamada sociedade civil, onde, por meio da formação democrática (argumentativa ou discursiva) da vontade política dos cidadãos-vox, se daria a criação de consensos em torno de determinadas questões ou problemas sociais. Um terceiro andar é representado pelas câmaras legislativas, onde são decididos ou deliberados os pontos advindos dos consensos “argumentativos” provindos da sociedade civil, através de seus conselhos e assembléias.
Habermas mantém claramente a separação entre o momento espontâneo (mundo da vida), o momento argumentativo (sociedade civil e espaço público) e o momento deliberativo (as instâncias formais de decisão). Também parece deixar claro que tipo de demandas pode ser objeto do processo argumentativo pelos cidadãos-vox. E finalmente, que tipo de públicos participa do processo democrático-discursivo.
Por isso, há muitas objeções a esta concepção procedimental-discursiva por parte dos autores e autoras ligados à teoria do reconhecimento. Desde logo, aponta-se um inescapável acento etnocêntrico, europeu, anglo-saxão, branco, masculino e cristão nesta teoria: ela pressupõe formas de comunicação e linguagem padronizadas que excluem uma série de outros elementos ou características presentes em outros discursos ou racionalidades, como, por exemplo, a saudação, o desejo ou a mera narrativa. A chamada razão comunicativa de Habermas pressupõe uma forma de linguagem e argumentação assépticas, infensas a qualquer indício de emoção, vontade, calor humano, empatia ou formas de vida diferentes dos locutores logocêntricos ocidentais.
Autoras como Mary Young ou Nancy Fraser têm investido contra a idéia de espaço público e democracia deliberativa, por conta de seu caráter excludente tanto de formas argumentativas diferentes, como de tipo de público capaz de integrar esse espaço público. Dessa forma, estariam fora dele várias minorias, povos e grupos sociais que não se encaixariam nos pré-requisitos racionais ou discursivos habermasianos. O que teria levado o autor da teoria da razão comunicativa a dizer que sua obra se aplica apenas a uma determinada parte da Europa Ocidental, não ao mundo todo.
De todo jeito, o diálogo da teoria da ação comunicativa com a diferença ou a política das identidades, ou ainda os contrapúblicos, tem sido muito difícil. Tem sido mais fácil para Habermas debater com J. Rawls e sua justiça distributiva ou C. Taylor e sua política de reconhecimento do que com autoras feministas ou ligadas a movimentos raciais ou sexistas. Quem quiser avaliar o esforço de filósofo para incorporar os diferentes, leia o livro Para a inclusão do outro, bem como a réplica dos autores comentados.
3. O passo seguinte nessa vertente do pensamento político foi dado por um discípulo de J. Habermas, Axel Honneth, em sua obra A luta pelo reconhecimento, uma ambiciosa tentativa de desenvolver e sistematizar as idéias de Hegel, Habermas, G.H. Mead, C. Taylor e outros, sobre a chamada luta pelo reconhecimento. Metade desse livro é sobre o pensamento social de Hegel, do jovem Hegel e seus escritos do período de Iena. Honneth toma como ponto de partida as anotações de seu orientador, Habermas, registradas em Trabalho e interação, onde se afirma que havia nos escritos de jovem Hegel as sementes para uma teoria social alternativa à tradição liberal: a noção de comunidade ética (eticidade).
Segundo a interpretação habermasiana, o sistema hegeliano pode ser entendido como uma totalidade ética dilacerada pelo criminoso ou o amante. Só que o responsável pela ruptura é tão dependente e necessitado do outro a quem ele prejudica ou ofende, como a vítima da agressão ou da ofensa. Neste sentido, tanto o agressor como as vítimas estão inter-relacionados e fazem desta relação o motor do seu aprendizado moral.
Esta visão interativa da sociedade teria sido abandonada por Hegel em favor de uma filosofia do sujeito ou da consciência, centrada no trabalho ou na liberdade, e seus discípulos não teriam dado continuidade àquela reflexão seminal de Iena (Marx, Lukács, Sartre, etc.). Urgiria, então, retomar este pensamento do ponto em que ele teria sido interrompido e dotá-lo de bases empíricas para torná-lo uma verdadeira teoria política contemporânea, de bases normativas. O que fará o autor (Axel Honneth) a partir da Psicologia de H.G. Mead.
Acompanhando os passos da investigação empírica desse psicólogo americano, Honneth distingue três etapas da luta pelo reconhecimento nas sociedades contemporâneas: a etapa da família (autoconfiança), a etapa do direito (auto-respeito) e a etapa da sociedade (dignidade ou reconhecimento social). A primeira caracteriza-se pela conquista da segurança psicológica: a segunda, pela conquista dos direitos positivos: e a terceira, pela estima social. Cada uma dessas etapas tem o seu correlato em atitudes de desrespeito ou de desestima, o que afeta o chamado “eu reflexivo” — isto é, a maneira como os outros me percebem e que é introjetada na minha consciência. A política do reconhecimento ou da identidade está relacionada a visibilidade, estima social, reconhecimento jurídico.
O grande problema desta teoria, não resolvido pelo autor, é saber como transformar as ofensas e agressões a cada uma daquelas etapas de reconhecimento numa luta pelo reconhecimento, que modifique os preconceitos, a invisibilidade, a desestima social, etc. Na obra, não se vislumbra como passar da experiência do desrespeito para a luta em prol da autoconfiança, auto-estima, dignidade, etc. Outro ponto fraco é como vislumbrar a luta entre nações e povos em prol do reconhecimento, já que a teoria só trabalha com lutas e conflitos recognoscitivos dentro de uma mesma sociedade. Embora se diga que a luta pelo reconhecimento é o conflito paradigmático dos nossos dias, não está demonstrado como se faz a tradução política da experiência da exclusão moral ou subjetiva para a política do reconhecimento propriamente dita.
Chegados a este ponto, seria útil acrescentar a visão de Nancy Fraser e C. Taylor sobre esse tema. Fraser é uma prestigiada ensaísta que vem discutindo formas e tipos de reconhecimento na sociedade americana, a partir de uma nova agenda política pós-socialista. Segunda esta autora, a crise das sociedades do Leste tornou evidente uma série de demandas que ela chama de “pós-materiais”: liberdade de expressão, de pensamento, de organização, de modos de subjetivação, comportamento sexual, de gênero, raça, etc. É como se as questões redistributivas da política socialista tivessem ficado agora no segundo plano, e as questões relacionadas à identidades passassem para o primeiro plano.
Mas, segundo Fraser, haveria políticas de reconhecimento conservadoras (liberais) e políticas de reconhecimento transformadoras (socialistas). As primeiras são as políticas de ação afirmativas ou de cotas, tendentes a manter as polaridades atuais através de remanejamento de recursos e benefícios para os grupos discriminados. As segundas seriam mais radicais porque conjugariam uma desconstrução das polaridades de gênero, orientação sexual ou de raça, substituindo-as por identidade móveis e voláteis, com remédios socialistas no que diz respeito à redistribuição dos recursos. Movimentos identitários puros (como o dos homossexuais) receberiam só remédios desconstrutivos, movimentos híbridos (como o das mulheres e negros) receberiam os remédios redistributivos e desconstrutivos. Proposta muito radical para o ambiente político americano — centrado nas políticas de ação afirmativas e concessões trabalhistas e previdenciárias para minorias discriminadas.
Finalmente, chegamos a Charles Taylor, um hegeliano que trata a questão do reconhecimento a partir das “fontes do Self”. Segundo Taylor, toda a política moderna do indivíduo, da liberdade, da dignidade, da auto-responsabilidade e da ética do trabalho tem suas fontes morais implícitas. Ao contrário do liberalismo político, que ignora os pressupostos morais dessas idéias-guia do pensamento moderno, a identidade do mundo ocidental deita suas raízes num subsolo cultural, sem o qual a idéia do “self” ou do “eu reflexivo” não teria o menor sentido.
Neste ponto, o autor faz uma arqueologia do pensamento filosófico ocidental para recolher na noção agostiniana de “interioridade”, “na liberdade de consciência” de Lutero e na “ética protestante” de Weber as bases dessa identidade moderna, hoje em crise pela ausência de sua referência obrigatória a essas fontes morais. Daí o positivismo das ciências sociais contemporâneas, que tomam o “self” como uma natureza desvinculada de suas fontes culturais. Uma política e uma psicologia atomísticas, que supõem um “eu naturalizado”, sem vínculos com suas fontes morais. Crise que teria gerado todo um pensamento anticultural, anticivilizatório, cuja matriz é o expressivismo de Rousseau, da contracultura e dos filósofos antiiluministas.
A conclusão a que se chega é que temos inúmeras variantes do pensamento social moderno e contemporâneo que procuram alargar o paradigma do conceito de político e de política. Contudo, sua eficácia está muito a depender de sua tradutibilidade política. Enquanto não for resolvido o problema da transformação dos sentimentos e atitudes de indignação e revolta em formas de socialização política, as teorias da escolha racional vão continuar durante um longo tempo mantendo a sua hegemonia no meio acadêmico e universitário.
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Michel Zaidan Filho é professor da Universidade Federal de Pernambuco.
Referências
Avritzer, Leonardo. A moralidade da democracia. São Paulo: Perspectiva, 2000.
Costa, Sérgio. As cores de Ercília. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
Fraser, Nancy. Justiça interrompida. Brasília: Ed. UnB, l998.
Habermas, J. Conhecimento e interesse. Porto: Martins Fontes, l995.
__________. Para a inclusão do outro. São Paulo: Loyola, 2001.
__________. Teoria da ação comunicativa. Buenos Ayres: Tecnos, l996.
Honneth, Axel. A luta pelo reconhecimento. São Paulo: Editora 34, l995.
__________. A teoria crítica do reconhecimento. São Paulo: Editora 34, l995.
Taylor, Charles. As fontes do Self. São Paulo: Loyola, l999.
Young, Mary. Da democracia deliberativa para a democracia comunicativa. Brasília: Ed. UnB, 1999.
Gramsci e o Brasil.
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