sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Spinoza: teologia, filosofia e política


César Benjamin

Pensadores importantes costumam manter laços profundos com seus respectivos povos. Pascal é francês. Fichte é alemão. Dostoiévski é russo. Cada um deles expressa elementos étnicos, históricos, políticos e culturais específicos, claramente discerníveis. Spinoza, não.

Era português, com raízes católicas, porque seus pais emigraram nessa condição e porque aprendeu a língua portuguesa na infância. Era judeu por sua ascendência, por ter sido acolhido na comunidade judaica da Holanda e por ter recebido educação rabínica. Era holandês porque nasceu em Amsterdã e morreu em Haia.

Se quisermos fixar sua origem, devemos enfatizar que era marrano. Nação e religião, para ele, não foram fatos da vida, mas questões a serem enfrentadas. Não teve sequer uma língua materna que sentisse como genuinamente sua.

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Os antepassados judeus de Spinoza viveram na atual Espanha desde a época do Império Romano. Ao longo do tempo, em busca de proteção, converteram-se ao cristianismo, mas retornaram ao judaísmo depois que o Islã conquistou a maior parte da região no ano 711 e lhes devolveu, por sete séculos, liberdade de culto. A situação mudou, gradativamente, com a progressiva reconquista dos territórios pelos cristãos.

A partir de 1492, expulsos os árabes, os reis católicos Fernando e Isabel começaram a construir a unidade nacional da Espanha moderna por meio da religião, impondo aos judeus uma nova conversão ou o exílio. Em seguida, Portugal fez o mesmo.

Os cristãos-novos, mantidos sob suspeição, passaram a ser chamados, pejorativamente, de marranos. Nas gerações seguintes, por medo da Inquisição, por espírito empreendedor ou por nostalgia do judaísmo, muitos partiram para Amsterdã, a grande metrópole da época, onde não havia perseguição: a primeira constituição dos Países Baixos, promulgada em 1579, garantia liberdade de culto.

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Os antepassados diretos de Spinoza, como seu nome indica, eram originários da cidade castelhana de Espinosa de los Monteros. Emigraram para Portugal em 1492 e converteram-se ao catolicismo em 1498. O pai dele nasceu cerca de cem anos depois na aldeia portuguesa de Vidigueira, mas já estava em Amsterdã em 1616.

Lá, em 1632, Baruch Spinoza nasceu. Recebeu esmerada educação religiosa, passando a dominar com erudição a cultura judaica. Estudou profundamente a Bíblia e seus comentadores.

Seu talento logo foi percebido, e ele se tornou a grande esperança das autoridades da sinagoga. Surpreendentemente, porém, buscou um caminho próprio, de uma forma que prenunciava o nascimento da era moderna: o jovem exigia que a tradição fosse submetida ao teste do seu juízo e da sua razão pessoais.

Recusava-se a aceitar verdades ou mandamentos que não fossem compatíveis com sua própria consciência, orientada pelas diretrizes da razão universal. E fez-se crítico: as ordenações do judaísmo pareciam-lhes arbitrárias e meramente históricas, sem relação com as leis de Deus.

Estabelecido o impasse, foi excomungado em 1656, com 24 anos de idade, num processo traumático para ambos os lados.

A sentença de excomunhão foi duríssima: “Banimos, expulsamos, condenamos e maldizemos Baruch Spinoza [...]. Maldito seja ele de dia e maldito seja de noite. Maldito seja ele ao dormir e maldito seja ao levantar. Maldito seja ele ao sair e maldito seja ao entrar. Que o Altíssimo jamais o perdoe. Que o Altíssimo faça arderem sobre esse homem Sua ira e Seu desfavor, e que lance sobre ele todas as maldições escritas no Livro da Lei. Que seu nome seja destruído sob os céus e que, para sua desgraça, ele seja separado de todas as tribos de Israel, com tudo o que é amaldiçoado no Livro da Lei. [...] Certificai-vos de que nenhum de vós se dirija a ele, nem de viva voz nem por escrito; que nenhum de vós lhe conceda nenhum favor; que nenhum de vós permaneça sob o mesmo teto que ele; que ninguém fique a uma distância de menos de quatro côvados dele, e que ninguém leia nada que ele tenha escrito ou transcrito.”

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Expulso do judaísmo, Spinoza mudou-se para uma aldeia remota, onde durante alguns anos encontrou abrigo em uma seita protestante minoritária, uma comunidade religiosa silenciosa e sem clero, que praticava uma severa pureza moral. Mas também entre os cristãos enfrentou resistências.

Furioso porque Spinoza adotara o nome Benedictus, tradução latina do hebraico Baruch, o teólogo Christian Kortholt escreveu: “Ele mais deveria ter-se chamado Maledictus, pois, de acordo com a maldição divina no primeiro livro de Moisés, a terra espinhosa [Spinoza terra] nunca produziu homem mais amaldiçoado que esse Spinoza, cuja obra é salpicada de inúmeros espinhos [spinis]. Primeiro o homem foi judeu, mas, excomungado pela sinagoga, finalmente, por meio de não sei que intrigas e ardis, infiltrou-se entre os cristãos e passou a se chamar pelo nome deles.”

O teólogo exagerava. Apesar de suas amizades, Spinoza não se filiou a nenhuma outra religião, contrariando a forma tradicional de inserção das pessoas na sociedade. Todos pertenciam a grupos — corporações, igrejas, guildas — que faziam a mediação com a entidade política mais ampla, o Estado.

Em uma época em que ainda não se reconheciam indivíduos livres, ele optou por uma vida independente, simples, pacata e recolhida, dedicada à filosofia, sem poderes, sem cargos, sem atividade pública, sem aderir a uma comunidade específica, sem acumular bens.

Já dominava diversas línguas, inclusive o latim, e conhecia praticamente toda a cultura humanista e científica então disponível. Aprendeu o ofício de polir lentes ópticas, ocupação que parece havê-lo atraído por lhe propiciar a oportunidade de pensar continuamente, sozinho, em silêncio.

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De todas as acusações que recebeu, a mais dolorosa foi a de ateísmo, pois era um homem reconhecidamente embriagado pela ideia de Deus. Sempre reiterou que acompanhava as religiões no princípio do amor e da obediência, e as considerava necessárias, mas recusava o antropomorfismo das representações humanizadas da divindade.

Lançou-se, por isso, a criar uma doutrina original, fonte dos seus dissabores. Ela está expressa em sua obra-prima, a Ética demonstrada à maneira dos geômetras, publicada postumamente. É ali que propõe a sua teologia da imanência.

Para existir, tudo o que nos cerca depende de uma causa externa. Isso lança o pensamento no abismo de uma regressão ao infinito, quando pretende explicar o Universo: cada coisa remete a outra coisa, indefinidamente, sem que se consiga estabelecer um ponto de partida ou de chegada.

O Universo só se torna inteligível se concebemos, na origem, algo que seja causa de si mesmo, que tenha em si o seu fundamento, algo cuja essência pressupõe a própria existência. É o que Spinoza chama de substância: “Por substância entendo o que é em si e se concebe por si; aquilo cujo conceito, para ser formado, não requer o conceito de outra coisa.”

Como a substância existe necessariamente, ela é eterna. Como é o ser entendido, pura e simplesmente, como ser, ela é indeterminada. Como é concebida como existente por si, não conhece nenhum limite, ou seja, é infinita. Como seu conceito “não requer o conceito de outra coisa”, é una, pois, se houvesse uma pluralidade delas, o conceito de cada uma remeteria de algum modo — mesmo que por negação — ao conceito das demais.

O nosso espírito, porém, não retrocede naturalmente à origem das coisas e, sendo finito, só concebe objetos finitos. Conhece ideias particulares, não a totalidade. Não vê o Universo, mas corpos singulares, coisas isoladas. Por isso, tudo o que conseguimos perceber da substância una e total são alguns de seus atributos.

Nossa experiência do dia a dia conduz a essa visão fragmentada, enquanto a experiência específica de Deus, para Spinoza, é a da unidade do mundo.

Se a substância do mundo é una, o ser supremo não é um ser transcendente, como dizem o judaísmo e o cristianismo. Ele é o ser de todo ser, inerente ao mundo. O filósofo propõe nada menos que a imanência de Deus, que se confunde com o próprio Universo. As leis de Deus não estão na Bíblia, são as leis da natureza.

Na equivalência mais famosa que formulou — Deus é Natureza —, a realidade adquire um estatuto divino, o que representa uma rejeição das religiões tradicionais muito mais profunda do que o ateísmo vulgar. Compreende-se a sua excomunhão.

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Spinoza viu que ocorreria uma irremediável cisão na cultura se religião e ciência se separassem. Foi um homem de ciência em seu tempo — matemático, físico, químico, médico —, mas sabia que as ciências também devem buscar a felicidade suprema, que só a união com Deus pode oferecer. Nunca renunciou aos fins espirituais da mística religiosa, mas considerou que só a razão é capaz de atingi-los.

Reconhecia três tipos de conhecimento: a imaginatio [imaginação], que é o conhecimento confuso, adquirido pela percepção sensorial elementar, por associação, por ouvir dizer e processos afins; a ratio [razão], o conhecimento das leis universais da natureza e da razão; e, enfim, acima de todos, a scientia intuitiva [conhecimento intuitivo], uma apreensão sinóptica das essências e de uma cadeia imanente de causas. Nela, os saberes se fundem. A ratio, que todos nós conhecemos, é apenas o grau inferior da razão, incapaz de transformar a personalidade do indivíduo, de revolucionar sua vida e de produzir o amor intelectual a Deus. A scientia intuitiva, o grau mais elevado, deve conduzir à beatitude, à eternidade e ao amor: enquanto o Deus transcendente manifesta-se na revelação, o Deus imanente manifesta-se na intuição.

Assim, a razão deixa de ser meramente analítica e discursiva. Passa a buscar não só conhecimento, mas também os supremos objetivos éticos e espirituais, tradicionalmente associados às religiões.

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A ênfase de Spinoza nas virtudes da razão, como se vê, era perfeitamente coerente com sua religiosidade. Mas ele sabia que a grande maioria dos homens jamais alcançará a ratio nem, muito menos, a scientia intuitiva. Permanecerá sujeita à imaginatio e à psicologia das massas, com conflitos, discórdias, fanatismo e violência.

Por isso, além da teologia e da filosofia, refletiu também sobre a política, pois era preciso filosofar sobre a multidão. Buscou maneiras racionais de engendrar condutas socialmente benéficas por meio de mecanismos mentais e institucionais que transformassem a imaginação em uma imitação exterior da razão, usando o poder do Estado e as religiões populares como veículos de um processo civilizatório.

Sua teoria da política está em dois textos, o Tratado teológico-político, publicado anonimamente em 1670, e o Tratado político, que ficou inacabado. Neles, estuda três formas de governo — a monarquia, a aristocracia e a democracia —, insistindo em que cada uma delas enfrenta perigos específicos: o abuso da monarquia é a tirania; o abuso da aristocracia é a oligarquia; o abuso da democracia é a desordem. Para cada uma delas, propõe medidas corretivas.

Considera que o Estado é um corpo soberano, independente de qualquer outra autoridade normativa, no qual o cidadão ou súdito deve ser reconhecido por sua identidade individual e não por qualquer qualidade coletiva adquirida. Defende que o indivíduo subordine-se rigorosamente à soberania do Estado, mas goze de completa liberdade de consciência e de expressão.

Os decretos do Estado, ele dizia, devem limitar-se aos atos exteriores de cada um, pois a ação estatal é impotente diante da faculdade subjetiva de julgar: é impossível “fazer amar o que se detesta ou detestar o que se ama”. Sendo impossível, isso é também ilegítimo, pois — eis uma ideia forte em Spinoza — não há direito sem poder.

O Estado pode se fazer obedecer, mas não pode alterar as subjetividades. Age sobre a conduta, mas não domina a consciência. Ignora os sentimentos íntimos, de modo que o cidadão, mesmo forçado a obedecer à lei, continua, em espírito, soberano para aprová-la ou desaprová-la.

Por isso, a vida moral e intelectual deve estar isenta da ingerência e da jurisdição estatal: “O fim do Estado não é transformar os homens razoáveis em animais ou em máquinas, mas, ao contrário, fazer com que seu espírito e seu corpo cumpram em paz as suas funções, façam uso da razão livre, sem rivalidades de ódio, de cólera ou de astúcia, sem violências injustas. O fim do Estado é a liberdade.”

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Spinoza morreu de tuberculose em 21 de fevereiro de 1677, em Haia, com 44 anos, na presença de um só amigo. Estava no sótão em que vivia. Em dezembro do mesmo ano, publicaram-se em Amsterdã suas obras póstumas, escritas em latim e só depois de sua morte traduzidas para o holandês. Todas aparecem agora em português, mais a correspondência do filósofo e a biografia escrita por um contemporâneo, em edição da Perspectiva, em quatro volumes, organizada por J. Guinsburg, Newton Cunha e Roberto Romano — nomes que dispensam apresentação e elogios. Só podemos lhes agradecer, mais uma vez.



Gramsci e o Brasil.


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