Pode ser uma inverdade, mas neste terreno a especulação tem força de lei.
Diz-se que a terra contaminada que ocupava a área na qual foi construído o Novo Templo de Salomão, mais recente edificação religiosa da Igreja do Bispo Edir Macedo, foi removida para o aterro no qual se estabeleceu a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, a EACH. Desta maneira a assim chamada USP-Leste anda pelas areias do deserto, qual Moisés em busca da terra prometida, sem lugar para continuar seu projeto inovador, enquanto se inaugura, na mesma cidade, o mais imponente santuário da fé.
Seria só mais um caso desta mistura crônica entre descaso, imprevidência e precariedade, com o qual temos tratado a educação em geral e as universidades em particular. Contudo, há algo mais forte e insinuante nesta metáfora. A terra contaminada, sob a qual se ergue o templo religioso, lugar, sagrado, santo e purificado, é transportada para dar fundamento, em sentido objetivo e arquitetural, a um novo campus laico, profano e comum, que prenunciava uma nova era de expansão do acesso a este bem simbólico crucial que é a universidade. Menos do que uma inépcia dos responsáveis pelo sistema de higienização, do que um deslize do departamento de controle de resíduos, ou do horizonte ecológico da operação, há neste desterro, um toque de ironia.
O Templo de Salomão, erigido em 1004 a.c. e destruído em 586 por Nabucodonosor II, dando origem à diáspora judaica, foi construído para abrigar a arca da aliança. A construção não podia ser erigida pelo próprio Rei Davi, mentor da ideia, porque ele havia derramado sangue demais na terra, com suas campanhas militares. Por isso coube a seu filho, um homem de paz, construir por meios pacíficos, o lugar que guardaria o símbolo da aliança entre um povo e seu Senhor. A expressão “símbolo da aliança” já é em si redundante porque o símbolo é antes de tudo pacto, aliança e promessa para com o outro (alio).
É por isso que soa tão ofensiva a imagem da terra impura sendo transportada, quiçá indevida e ilegalmente, do centro para a periferia, do sagrado para o profano, do privado para o público. A ideia de assentar uma nova universidade nos escombros tóxicos de uma obra suntuosa e rica coroa uma espécie de injustiça salomônica praticada contra aquela que é uma das instituições residuais mais importantes de nosso espaço público. Algo nos diz que a religião deveria celebrar a pobreza e o decoro, enquanto que para a educação superior deveríamos reservar nossos melhores recursos. Talvez seja por isso que neste caso o universal do Reino de Deus e o universal da Universidade dos Homens parecem estar em uma relação invertida. Lembremos da árvore universal do conhecimento, proposta por Descartes. Ela tinha em seus ramos a moral, a medicina e a mecânica, no tronco a física e nas raízes a metafísica. O que vemos agora, nesta espécie de árvore liberal do conhecimento, são os ramos da ciência apoiarem-se diretamente sob o lixo tóxico, enquanto as raízes metafísicas saem por aí voando de helicóptero.
O argumento liberal afirma que tudo o que o Estado faz ele faz mal. A iniciativa privada faria melhor, mais barato e mais eficiente. Em que pese a controvérsia definicional, a vasta e complexa forma de vida que chamamos de neoliberalismo, traduz-se pela aplicação desta ideia às áreas antes consideradas reservadas (ou sagradas?) pelo liberalismo clássico: educação, saúde e assistência social.
Foi assim que pusemos à prova esta espécie de abertura dos portos para a aventura privatista da educação universitária no Brasil, a partir dos anos 1990. A ideia de Paulo Renato parecia plausível. Liberaríamos o investimento em universidades públicas, atraindo verbas de conglomerados educacionais internacionais e estimulando o investimento de nossas universidades particulares. Deixaríamos o espírito do ensino apostilado, modulado e pré-fabricado, expandir-se livremente e assim livremente associar-se com as demandas do mercado. Cada universidade estará livre também para escolher seu destino: pesquisa, extensão, educação. Assim aliviaríamos o Estado de investir tão pesadamente em uma área de alto custo e de retorno eleitoral incerto ou difuso. Ao mesmo tempo criamos um sistema inédito e bem aparelhado de controles, de métricas de resultados, de regras de produtividade, fiscalização e excelência. Bastaria garantir certos limites, por exemplo, quanto ao número mínimo de doutores e mestres por universidade, quanto ao processo e seus meios elementares, aferidos por meio de procedimentos como o Enem e o Enade.
A multiplicação de alternativas aumentaria liberdade de escolha do consumidor e as melhores universidades se destacarão pela lei da concorrência aplicada ao ensino universitário. Lentamente isso formaria um cenário de competição virtuosa por melhores padrões de ensino e pesquisa. Saneando a corrupção epidêmica do Conselho Nacional de Educação, fixando marcos regulatórios e criando normas firmes, que impediriam exageros e deformações, a universidade brasileira se capilarizaria ao custo quase zero. Tais ações seriam suficientes para incluir um número substancial de pessoas, aumentando o acesso “universal” à educação de qualidade, ademais criando novas “ilhas de excelência” comparáveis ao que se obtinha por tradição no dispendioso ensino público.
Um plano perfeito de justiça salomônica. Como se sabe a astúcia jurídica do filho de Davi podia reconhecer a importância da renúncia como verdadeiro traço de amor. Diante das duas mães que lutavam para ter a posse de uma criança, Salomão decretou que se dividisse a criança ao meio e se desse a metade para cada uma das pleiteadoras. Diante da iminência da morte do filho, a mãe verdadeira, renuncia à sua posse entregando-o para a falsária. Ao perceber este gesto de renúncia Salomão, em sua infinita sabedoria, faz justiça entregando a criança à sua legítima mãe.
Mas no caso das universidades paulistas parece que quem ganhou a contenda foi a mãe falsária. Dividindo a criança ao meio, a expansão massiva das universidades brasileiras fez-se sem nenhum critério de qualidade. Seu grande conceito aproveitável veio do mundo das finanças, o Prouni, não do mundo da academia. As universidades ruins não fecharam, as exigências quanto ao número de doutores foram retiradas e eles mesmos retirados em massa (porque mais caros) das universidade privadas. As comparações e métricas nos permitem ver, agora com mais clareza, a expansão do abismo que separa a excelência da sub-universidade. Legitima-se a exploração dos professores horistas, que são mais lucrativos quando não se lhes permite tempo para a pesquisa ou estudo.
As antigas e boas universidades “médias” agora não tem mais lugar, nem apoio, nem incentivo. No mundo de Salomão é tudo ou nada. E tem que ser assim para convocar a mão invisível que vai regular a barbárie. Por isso quando o milagre não veio já era tarde demais. O livre empreendorismo em educação não foi capaz de produzir universidades de qualidade. As excelências continuaram a ser as de sempre, agora respaldadas por resultados surpreendentes em rankings mundiais, obtidos por USP e Unicamp. Elas conseguem competir com universidades de 5.000 ou 10.000 alunos como Harvard, Yale, ou mesmo a Universidade Católica do Chile que contam com orçamentos per capta infinitamente mais caros.
Até aqui deveríamos aprender com fracassos, reconhecendo alguns ganhos, apesar do erro geral de conceito. O que realmente surpreende é que em vez de reverter o equívoco, salta aos olhos na recente crise da USP, que se trata mesmo é de redobrar o princípio da gestão e do “negócio universitário”. É assim que, surpreendentemente, a USP aparece como uma espécie de espelho invertido do que se passa no Novo Templo de Salomão. Como se estivéssemos a ouvir, às vezes de seu próprio reitor e porta voz:
“Seus 6.000 professores vivem como fariseus, ensinando a falsa lei da esquerda às crianças, com seus nababos salários de 5.000 reais (em média). Eles são a prova de que o verdadeiro milagre universitário ainda não veio: fazer uma universidade de qualidade, sem ter que pagar por isso.
Seus funcionários deleitam-se na luxúria do ócio sindical. Quando se trata de fazer justiça com eles não é Salomão, mas Talião invertido que é convocado: acusação com provas forjadas, denuncia sem piedade, crime e castigo de forma exemplar, para criar temor. Afinal é a USP, esta casa da bagunça e lugar dos ricos que deve ser saneada pela força.
Seus 40.000 alunos filistinos deviam envergonhar-se por onerar o erário público quando procedem de altas castas dirigentes. Estes também bestas feras que praticam o trote, que fumam a erva do diabo, que incitam a violência.
Mesmo tendo dado à luz aos dois partidos, hoje majoritários no país, há anos este espaço, agora impuro, não recebe a visita de Dilma ou Alckmin. São bárbaros com quem não se fala, não se negocia, não se partilha problemas ou soluções. E quando surgem greves ou ocupações isso só comprova que são ímpios querendo privilégios como se fossem o verdadeiro povo escolhido.
Seu espaço aberto, público e gratuito é uma torre de marfim. Seus experimentos com segurança, autonomia e gestão interna são óbvios privilégios que devem ser cassados, para que não exista ninguém acima ou abaixo da lei.”
Da lei universal da falsa universalidade.
Há algo muito propositalmente equivocado em retratar a USP como um elefante branco, suntuoso e “fora do mundo”. Esta imagem deixa no ar que este tal templo deveria ser partido ao meio – parte produtiva e parte improdutiva – e vendido para a iniciativa privada, incluindo seus marajás e o marfim de suas torres. Se esta ideia surge fácil, na imagem invertida e na retórica da purificação da USP, é porque ela é uma espécie de ícone do Estado que deu certo e ao mesmo tempo de um modelo de gestão que deu errado. Um símbolo do que a iniciativa privada, mesmo lhe sendo dadas as melhores condições, não conseguiu fazer.
Ou seja, não apenas desconhecemos como choque de gestão, associado com falta de transparência e anacronismo institucional, causou o problema, como queremos solucioná-lo com medidas ainda menos transparentes (cadê as contas da USP?), mais anacrônicas (cortar o ponto de grevistas com quem não se quis conversar?) e mais gerenciais (cortar funcionários terceirizados de limpeza?). Na hora de indicar o reitor agimos segundo a velha teologia política dos amigos de Salomão, mas na hora em que temos que colher os frutos de sua gestão desastrosa 0% de reajuste salarial será um castigo bem aplicado aos pródigos esbanjadores.
A crise na USP parece cada vez mais uma crise fabricada. Uma espécie de exagero do problema para vender uma solução, neste caso requentar uma solução. Menos do que um assunto local no qual se partilham recursos, mais ou menos escassos, o que está em jogo é o próprio tratamento da desigualdade e dos meios mais seguros para sua transformação em equidade. Mas em vez de reconhecer o caráter púbico deste bem simbólico e de concorrer para melhorar seus fins, o que encontramos nesta imagem invertida é uma versão desta maneira bem brasileira de inverter privilégios estimulando o ressentimento social, derrogar alianças próprias ao pacto público que é a educação e perseguir falsas aparências em inimigos internos feitos às pressas.
Enquanto a USP afunda nas areias do deserto formado pelo resíduo de outras terras sem lei, o Templo de Salomão continua a resplandecer em todo o seu poder e glória.
Facebook ,Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário