quinta-feira, 4 de julho de 2013

Religião, Direito e Política na Atualidade



Alysson Leandro Mascaro


O recrudescimento do reacionarismo religioso em nossos dias é tanto um grito desesperado quanto um projeto político específico. O grito vem dos abandonados do capitalismo e das periferias do mundo aos quais não são ofertadas sistematicamente as possibilidades de portar as armas da razão contestadora e da esperança de ações transformadoras.

O projeto político é o acoplamento da regressão intelectual à regressão das condições do capitalismo. De um arco que vai da resistência à Revolução Francesa ao neoliberalismo, passando pelo fascismo, pelo nazismo e pelo macarthismo, nos séculos XIX, XX e XXI o capitalismo opera uma luta por padrões máximos de exploração e conservação das redes de opressão, chamando a religião em seu apoio.

O pensamento crítico, o Iluminismo, os socialismos, a libertação sexual, o bem-estar social e os direitos sociais, as revoluções comunistas e de libertação colonial, todos os movimentos libertários da Idade Contemporânea encontraram numa específica junção de capital e religião seus contendores e antípodas.

Em sentido contrário, os últimos séculos conheceram dois grandes movimentos de libertação no que tange ao campo específico das religiões. No primeiro caso, com o Iluminismo e o marxismo – liberalismo e socialismo –, tratava-se de forjar um mundo novo. O movimento das luzes o fazia segundo a aposta em transformações

suficientes nas próprias individualidades. Com indivíduos novos e racionais, todas as religiões seriam superadas em favor de uma religião natural. Já o marxismo levantava a necessidade de um combate estrutural às dimensões da exploração social, nas quais as religiões cumpriam papel nodal. O pulso que sustentava o conservadorismo da religião vinha tanto do religioso quanto da sociedade. Se a aposta do Iluminismo é no homem novo, a do marxismo é na sociedade nova. De qualquer modo, o impessoal do liberalismo e o maternal do socialismo se punham a vencer o patriarcalismo das instituições religiosas. O Iluminismo radical e o marxismo, aos seus modos, mais do que buscar a conciliação entre as religiões dadas, pressupunham sim a sua superação.

Na Idade Contemporânea, no chão das revoluções, o que resta de melhor da religião passará a ser imanente: a atualização da promessa, o amanhã hoje. No solo do reino no mundo, político e social, se construirá a ecumene. Tratando de Schelling, Ari Marcelo Solon diz sobre “um novo conceito de justiça no presente: o Reino de Deus imerso na história viva, impregnado de temporalidade. É um conceito messiânico, revolucionário e explosivo que começa m 1789: liberação e redenção na história e por meio da política”. [1]

Se, na alvorada da contemporaneidade, o liberalismo e o marxismo se incumbem de tratar da religião de fora para dentro, será apenas no século XX que as religiões apresentam, enfim, uma face progressista como mote próprio. Num mundo que poderia, de fato, superá-las, as religiões se põem a construir a sua própria movimentação atualizadora, inovando e conservando. Para suas vertentes progressistas, se há algo de universal no fenômeno religioso, este será o amor. No solo já tão arraigado do legalismo religioso, é preciso fazer ressaltar o elemento amoroso da fraternidade plena, de que os séculos vêm se esquecendo em favor do poder e das instituições. As variadas teologias da libertação correspondem a esse processo de fazer ressaltar, do que aí já está das religiões, o que pode ser. A religião progressista contemporânea se faz como atualização das possibilidades do ser religioso. O ecumenismo daí resultante é a somatória das possíveis partes comuns de todo fenômeno religioso. Diferentemente até da religião natural dos iluministas – que se possuir algo em comum com as religiões estabelecidas, isto é apenas um acaso – as teologias da libertação insistem numa abertura a partir de um motor interno. Deste mote íntimo se forjaram muitos cristãos progressistas na segunda metade do século XX.

Na atualidade, no entanto, a ofensiva do capital contra o socialismo e contra a libertação dos costumes e do pensamento encontrou nas instituições religiosas reacionárias um apoio simbiótico, que se acresce do posicionamento dos grandes meios formadores de consciência – a educação formal e os meios de comunicação

– na mesma sintonia. Empresa, igreja, meio de comunicação de massa, escola e universidade vão se decantando no sentido da sacralização do capital e da crença.

Para a política e o direito, o resultado das últimas décadas é somente regressivo. A política é colocada como solo da disputa religiosa direta. Isto não chega a ponto de tratar da mudança da forma política e jurídica do capitalismo. O Estado continua laico, formalmente apartado das religiões especificamente dadas, na medida em que necessita albergar em seu solo o indivíduo atomizado da reprodução do capital. Para tanto, ele garante o contrato e o capital de sujeitos sob quaisquer crenças.

Se sempre sob essa mesma forma, a alteração que a regressão religiosa procede no campo político-jurídico é de conteúdo. Neste sentido, o mesmo Estado universalista ora nega direitos aos divorciados, aos homossexuais, às mulheres, às praticantes de aborto, aos estrangeiros, aos diferentes dos costumes ou aos das religiões reprimidas, dentre tantas outras categorias de vítimas do preconceito de nosso tempo. Trata-se de uma regulação por menos da quantidade de direitos subjetivos da forma jurídica e estatal capitalista, similar à regulação por menos que se faz às quantidades de direitos subjetivos sociais, como os do direito do trabalho e da seguridade social. A forma jurídica garante o capital. A sua regressão quantitativa em face de determinados grupos sociais garante a exacerbação da exploração neoliberal.

Na atualidade, o desamor a outros, como grupos variados, constitui o cerne das posições religiosas reacionárias. Como é bem verdade que não se esgotam nessas posições as possibilidades de vida religiosa, então mais uma vez nosso tempo necessita resgatar energias revolucionárias a partir de um solo que tem sido constantemente salgado para que nele não brotasse esperança nem razão nem libertação. Tirado da órbita do reacionarismo e do estranhamento em que majoritariamente se encontra hoje, o melhor do impulso religioso deve ser reafirmado no campo do amor, e não no ódio ou no reforço da diferença. Somente assim, conforme já Ernst Bloch apontava, as energias fraternas dos religiosos poderão se encontrar com as energias utópicas socialistas, em busca da sociedade amorosa de um novo tempo.

No que tange às religiões, o sentido da escatologia do amor nas sociedades contemporâneas pode ser compreendido de duas maneiras: ou a partir da persistência das suas identidades no seio de um mero totalizante quantitativo ou no sentido da construção de uma totalidade qualitativamente distinta. No primeiro caso, tratar-se-á de um arranjo “civilizado” dentro da mesma lógica liberal e capitalista contemporânea. No segundo caso, tratar-se-á da ação revolucionária e socialista da construção da nova sociedade.

O amor religioso contemporâneo, num encaminhamento conduzido pelo seu aspecto liberal e conservador, passa a ser entendido como tolerância, ou, no máximo, compaixão. No que tange à tolerância, o direito e o Estado são chamados a instituir o espaço garantido do direito subjetivo do outro. Neste caso, trata-se do mundo do capitalismo que se presume civilizado e estabilizado sob as melhores condições jurídicas liberais. No que tange à compaixão, à tolerância se soma o amor ao do capitalismo que se presume civilizado e estabilizado sob as melhores condições jurídicas liberais. No que tange à compaixão, à tolerância se soma o amor ao distinto, como forma de ressaltar ou uma recôndita esfera comum – e daí o problema das religiões é o ressaltar a base unitária oculta entre todas elas (a compaixão é a paixão comum por algo) – ou um bem-querer pelo que não é igual – e daí a exigência pelo máximo desapego do amor (a compaixão é o lançar-se à paixão pelo outro que é estranho).

No entanto, tomando-se pelo seu sentido progressista, o amor religioso contemporâneo há de se dissolver e se resolver no todo do mundo, tomado como processo.

Neste sentido, o amor é a fecundação do novo. Trata-se da dialética superadora, apoiando-se mais na mirada da síntese que numa pretensa conciliação dos termos antitéticos. O amor é o novo porque ainda não reina a igualdade entre todos, e portanto não se estabeleceu a plena irmandade. No campo teológico, até mesmo o pedido por tolerância e compaixão ainda se revela como a persistência da falta da profunda fraternidade, na medida em que tais virtudes só se estabelecem porque persistem na identificação das diferenças. O amor como constituição do novo não é a tolerância com o outro, é a comunhão com o outro, que até então era estranho, agora tornado próximo e igual. O amor pleno não é a conciliação dos velhos termos nem apenas sua tolerância; é, sim, a revolução.

Para tanto, mesmo as melhores prédicas progressistas do Iluminismo encontram no marxismo um horizonte ainda maior da necessidade transformadora do nosso tempo. A constituição das subjetividades que superem a identidade conflituosa das religiões não se dá apenas pelo abrir-se individual em busca do amor comum.

Trata-se também e fundamentalmente de uma construção social. Há o cultivo das religiões, no plural, porque a multiplicidade sustenta a oposição geral de tudo e todos. O aparato da sociedade cindida em classes necessita da noção do outro como forma de dar sentido à divisão no seio do todo. Para o capitalismo, o outro religioso é valioso mais pela noção de outro do que de religião. A identificação do outro é a do concorrente. O sujeito de direito, que circula mercadorias e é também a principal mercadoria do capitalismo, entende-se como igual ao outro juridicamente para as trocas, e com isso ele se limita, no máximo, à tolerância jurídica ao distinto. A igualdade formal é aparato para a desigualdade real, como a tolerância com o distinto é valiosa pela própria manifestação da distinção. Se há, legitimamente, diferentes religiões, há diferentes classes. O desejo capitalista e conservador pode ser trocar de classe ou trocar de religião, mas não de acabar com elas. Por isso, mais além, o desejo do amor universal só é pleno sob forma de um processo de nova forja. Não meramente da junção – tolerância –, mas sim da fundição do velho é que resultará o novo.

Alguns acusam uma nova sociedade amorosa universal, socialista e estruturalmente fraterna, de correr risco de perder a identidade das religiões específicas. O amor universal, se é verdade que conduz a identidade religiosa a algo externo a si própria, ao mesmo tempo faz com que todas as religiões passem a ser respeitadas como cultura, albergadas num grande repositório universal das experiências históricas a serem respeitadas.

Se o Iluminismo apostou que os indivíduos eram capazes dessa libertação que ao final faria a união em uma plena igualdade, isto se deve ao fato de considerarem a subjetividade a usina cuja forja do novo poderia ser por todos replicada. Da soma das fundições individuais se fariam os novos homens. Ocorre que o Iluminismo não deu conta da contradição das próprias estruturas sociais, que impedem o homem objetivamente de se superar. A constituição da subjetividade capitalista é a todo tempo trabalhada e reposta no sentido de desejar a separação, o consumo da mercadoria exclusiva e a condição de privilégio, distinção e oposição. O capitalismo cria desejo e seu mecanismo é excludente, e isso advém de uma imensa teia das relações sociais, nas quais os indivíduos são formados e por onde circulam. Por isso, mais do que uma soma de pequenas forjas individuais voluntárias e livres, é preciso entender que a forja do capitalismo advém de uma totalidade social. Há uma constante siderúrgica social em marcha no capitalismo. Somente a mudança estrutural da sociedade é capaz de criar a nova fundição, permitindo aos indivíduos inclusive, também, a sua forja individual possível sob novas condições que não a da disputa identitária e opositora sob forma de mercadoria. A crítica, resgatando os melhores desejos do novo, sem estar atrelada aos compromissos ou aos confortos da reconciliação do velho, é o melhor sentido do amor pleno que nem as religiões podem oferecer. Se já há uma teologia da libertação das religiões, que hoje é combatida e vilipendiada pelos reacionários, ela deve, mais que tudo, ser plena: não é apenas o que nos une em razão e afeto, mas o que ainda não nos une que nos deve orientar o sentido da ação. O eventual gozo religioso subjetivo pelo sentimento de fraternidade profunda dos homens se soma à revolução, pois são as estruturas sociais que nos constituem que ainda não nos deixam gozar fraternalmente.

Notas:

[1] SOLON, Ari. Direito e tradição. O legado grego, romano e bíblico. Rio de Janeiro, Elsevier, 2009, p. 157

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