Marilena, Chauí
Esperamos ter oferecido alguns elementos para esclarecer porque, no Brasil, uma política cultural torna-se inseparável da invenção de uma cultura política nova e que assinalem as dificuldades ou o desafio para implantá-la. Como suscitar nos indivíduos, grupos e classes a percepção de que são sujeitos sociais e políticos? Como tornar evidente que carências, privilégios, exclusões e opressão não são naturais nem impostas pela Providência divina?
No caso específico da política cultural, não é possível deixar na sombra o modo como a tradição oligárquica autoritária opera com a cultura, a partir do Estado, se se quiser inventar urna nova política.
Quatro tem sido as principais modalidades de relação do Estado com a cultura, no Brasil.
A liberal, que identifica cultura e belas-artes, estas últimas consideradas a partir da diferença clássica entre artes liberais e servis. Na qualidade de artes liberais, as belas-artes são vistas como privilégio de uma elite escolarizada e consumidora de produtos culturais.
A do Estado autoritário, na qual o Estado se apresenta como produtor oficial de cultura e censor da produção cultural da sociedade civil.
A populista, que manipula uma abstração genericamente denominada cultura popular, entendida como produção cultural do povo e identificada com o pequeno artesanato e o folclore, isto é, com a versão popular das belas-artes e da indústria cultural.
A neoliberal, que identifica cultura e evento de massa, consagra todas as manifestações do narcisismo desenvolvidas pela mass midia, e tende a privatizar as instituições públicas de cultura deixando-as sob a responsabilidade de empresários culturais.
Do lado dos produtores e agentes culturais, o modo tradicional de relação com os órgãos públicos de cultura é o clientelismo individual ou das corporações artísticas que encaram o Estado sob a perspectiva do grande balcão de subsídios e patrocínios financeiros.
Face a esse conjunto de práticas, nossa experiência realizou-se na contra-corrente, como crítica do estabelecido e proposta de inovação.
Contra a visão liberal, propusemos alagar o conceito de cultura para além do campo das belas-artes, tomando-o no sentido antropológico mais amplo de invenção coletiva de símbolos, valores, idéias e comportamentos, de modo a afirmar que todos os indivíduos e grupos são seres culturais e sujeitos culturais.
Contra a visão autoritária, negamos que o Estado deva ser produtor de cultura, procurando, para isso, diferenciar entre estadismo cultural (cultura oficial) e dimensão pública da cultura (o Estado estimula a criação cultural da sociedade).
Contra a visão populista, recusamos a redução da cultura à polaridade entre popular e de elite, enfatizando que a diferença na criação cultural passa por outro lugar, qual seja, entre a experimentação inovadora e crítica e a repetição conservadora, pois tanto uma quanto outra podem estar presentes tanto na produção dita de elite quanto na chamada popular.
Contra a visão neoliberal, procuramos enfatizar o caráter público da ação cultural do Estado, a abertura de campos de atividade não submetidos ao poderio dos padrões fixados pela mass midia recusando, portanto, a fashion culture, e definir o papel do poder público na prestação de serviços culturais (como bibliotecas e escolas de arte) e no financiamento de produções culturais propostas pela sociedade.
Além da face negativa ou crítica, nossas propostas possuíam uma face positiva: a cultura foi pensada como direito dos cidadãos e a política cultural como cidadania cultural. Em outras palavras, procuramos marcar, desde o início, que a política cultural visava também a uma cultura política nova.
Que direitos procurávamos afirmar?
Do lado dos produtores e agentes culturais, o modo tradicional de relação com os órgãos públicos de cultura é o clientelismo individual ou das corporações artísticas que encaram o Estado sob a perspectiva do grande balcão de subsídios e patrocínios financeiros.
Face a esse conjunto de práticas, nossa experiência realizou-se na contra-corrente, como crítica do estabelecido e proposta de inovação.
Contra a visão liberal, propusemos alagar o conceito de cultura para além do campo das belas-artes, tomando-o no sentido antropológico mais amplo de invenção coletiva de símbolos, valores, idéias e comportamentos, de modo a afirmar que todos os indivíduos e grupos são seres culturais e sujeitos culturais.
Contra a visão autoritária, negamos que o Estado deva ser produtor de cultura, procurando, para isso, diferenciar entre estadismo cultural (cultura oficial) e dimensão pública da cultura (o Estado estimula a criação cultural da sociedade).
Contra a visão populista, recusamos a redução da cultura à polaridade entre popular e de elite, enfatizando que a diferença na criação cultural passa por outro lugar, qual seja, entre a experimentação inovadora e crítica e a repetição conservadora, pois tanto uma quanto outra podem estar presentes tanto na produção dita de elite quanto na chamada popular.
Contra a visão neoliberal, procuramos enfatizar o caráter público da ação cultural do Estado, a abertura de campos de atividade não submetidos ao poderio dos padrões fixados pela mass midia recusando, portanto, a fashion culture, e definir o papel do poder público na prestação de serviços culturais (como bibliotecas e escolas de arte) e no financiamento de produções culturais propostas pela sociedade.
Além da face negativa ou crítica, nossas propostas possuíam uma face positiva: a cultura foi pensada como direito dos cidadãos e a política cultural como cidadania cultural. Em outras palavras, procuramos marcar, desde o início, que a política cultural visava também a uma cultura política nova.
Que direitos procurávamos afirmar?
Direito de acesso e de fruição dos bens culturais por meio dos serviços públicos de cultura (bibliotecas, arquivos históricos, escolas de arte, cursos, oficinas, seminários, gratuidade dos espetáculos teatrais e cinematográficos, gratuidade das exposições de artes plásticas, publicação de livros e revistas etc.), enfatizando o direito à informação, sem a qual não há vida democrática;
Direito à criação cultural, entendendo a cultura como trabalho da sensibilidade e da imaginação na criação das obras de arte e como trabalho da inteligência e da reflexão na criação das obras de pensamento; como trabalho da memória individual e social na criação de temporalidades diferenciadas nas quais indivíduos, grupos e classes sociais possam reconhecer-se como sujeitos de sua própria história e, portanto, como sujeitos culturais.
Direito a reconhecer-se como sujeito cultural, graças à ampliação do sentido da cultura, criando para isso espaços informais de encontro para discussões, troca de experiências, apropriação de conhecimentos artísticos e técnicos para assegurar a autonomia dos sujeitos culturais, exposição de trabalhos ligados aos movimentos sociais e populares.
Direito à participação nas decisões públicas sobre a cultura, por meio de conselhos e fóruns deliberativos nos quais as associações artísticas e intelectuais, os grupos criadores de cultura e os movimentos sociais, através de representantes eleitos, pudessem garantir uma política cultural distanciada dos padrões do clientelismo e da tutela.
O projeto cultural colocou-se, portanto, na perspectiva da democratização da cultura como direito à fruição, à experimentação, à informação, à memória e à participação. Contra a violência visível e invisível dissimuladas pela mitologia da não-violência, demos prioridade a programas de compreensão crítica da sociedade e da história brasileiras.
Contra o universo da mass midia, demos ênfase ao caráter expressivo, experimental e diversificado da criação cultural como trabalho. Contra o populismo, procuramos expandir a rede de serviços culturais que garantisse às camadas populares o acesso à informação e às formas mais avançadas da produção cultural. Contra o elitismo oligárquico, procuramos desenvolver não só projetos de memória social, mas sobretudo tornar visível que somos todos sujeitos culturais, mesmo que não sejamos todos criadores de obras de arte e de pensamento.
Os programas visavam à formação (escolas e oficinas, seminários e cursos), à informação (bibliotecas, discotecas, arquivos históricos, videotecas, acesso a teatros, museus e cinemas), à reflexão crítica (memória oral, memória social e política), ao lazer e à solidariedade social (grandes eventos de música e dança ao ar livre), à garantia de acesso aos bens culturais e à criação cultural (ampliação e extensão para a periferia mais pobre da cidade da rede de bibliotecas, videotecas, discotecas, escolas de arte, teatros, centros culturais e casas de cultura, museus e casas históricas).
Recusamos a prática da animação cultural, substituindo-a pela ação cultural das comunidades, dos movimentos sociais e populares. Recusamos a celebração oficial, substituindo-a pela comemoração sócio-política, isto é, pela memória social como elemento crítico do presente e do passado da sociedade brasileira. Recusamos o clientelismo, graças à discussão pública (em conselhos e fóruns de cultura) dos orçamentos públicos de cultura e das prioridades da política cultural.
A cidadania cultural teve em seu centro a desmontagem crítica da mitologia e da ideologia: tomar a cultura como um direito foi criar condições para tornar visível a diferença entre carência, privilégio e direito, a dissimulação das formas da violência, a manipulação efetuada pela mass midia e o paternalismo populista; foi a possibilidade de tornar visível um novo sujeito social e político que se reconheça como sujeito cultural. Mas foi, sobretudo, a tentativa para romper com a passividade perante a cultura - o consumo de bens culturais - e a resignação ao estabelecido, pois essa passividade e essa resignação bloqueiam a busca da democracia, alimentam a visão messiânica-mineralista da política e o poderio das oligarquias brasileiras.
Em suma, fizemos um esforço político para desenraizar as fundas raízes do mito fundador. Alguns dizem, pejorativa ou positivamente, que fomos... radicais.
Estud. av. vol.9 no.23 São Paulo Jan./Apr. 1995
Recusamos a prática da animação cultural, substituindo-a pela ação cultural das comunidades, dos movimentos sociais e populares. Recusamos a celebração oficial, substituindo-a pela comemoração sócio-política, isto é, pela memória social como elemento crítico do presente e do passado da sociedade brasileira. Recusamos o clientelismo, graças à discussão pública (em conselhos e fóruns de cultura) dos orçamentos públicos de cultura e das prioridades da política cultural.
A cidadania cultural teve em seu centro a desmontagem crítica da mitologia e da ideologia: tomar a cultura como um direito foi criar condições para tornar visível a diferença entre carência, privilégio e direito, a dissimulação das formas da violência, a manipulação efetuada pela mass midia e o paternalismo populista; foi a possibilidade de tornar visível um novo sujeito social e político que se reconheça como sujeito cultural. Mas foi, sobretudo, a tentativa para romper com a passividade perante a cultura - o consumo de bens culturais - e a resignação ao estabelecido, pois essa passividade e essa resignação bloqueiam a busca da democracia, alimentam a visão messiânica-mineralista da política e o poderio das oligarquias brasileiras.
Em suma, fizemos um esforço político para desenraizar as fundas raízes do mito fundador. Alguns dizem, pejorativa ou positivamente, que fomos... radicais.
Estud. av. vol.9 no.23 São Paulo Jan./Apr. 1995
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