sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
Quando as crianças são o alvo
O afã de destruição total de uma mulher (pelo seu marido ou companheiro) corporizado no assassinato de um filho, fornece uma prova cabal de que infância e gênero devem ser abordados de uma forma integral. Não se pode trabalhar com problemáticas da infância perdendo de vista a perspectiva de gênero. E não se pode construir o caminho da consciência de gênero se não se leva em conta que há outras vítimas, além das mulheres. O artigo é de Cristina Fernández, no Página/12.
Cristina Fernández (*) - Página/12
(*) Artigo publicado originalmente no jornal Página/12.
Não é possível fazer uma análise profunda e exaustiva da violência de gênero se não se leva em conta como ela afeta meninos, meninas e adolescentes, ao mesmo tempo que atinge as mulheres adultas.
Primeiro caso: tinha 17 anos e um pai violento. Vivia em uma província conservadora do interior. A família pertencia a uma comunidade na qual a violência de todo tipo era moeda corrente e aceita. Cinco meses antes de completar os 18 anos ela fugiu de casa. Juízes ainda chamados “de menores”, um anacronismo desde a vigência da Lei 26.061 de Proteção Integral de Direitos de Meninos, Meninas e Adolescentes, a devolveram para sua casa. Os juízes agiram com forças policiais provinciais, para quem a “fuga de casa” é quase um delito penal. A adolescente esperou pacientemente, entre surras, os cinco meses que faltavam para atingir a maioridade e, quando atingiu os 18, ninguém nunca mais soube dela.
O segundo caso começa com um soco.
- Você é uma puta! – disse o marido à mulher. E o soco arrancou-lhe o dente.
Cansada, humilhada, longe de seu país, pegou seu bebê de um ano e foi embora. Com a desculpa de buscar seu filho, o agressor argumentou impedimento de contato perante a Justiça. Mas nunca a encontrou. E ela, mais forte e mais segura porque estava longe dele, pediu ajuda ao Estado e salvou sua vida.
Terceiro caso: não conseguiu interpretar os inumeráveis alertas que se produziram. Talvez porque nunca tenha pensado que o pai de seu filho menor poderia ser capaz de semelhante crueldade quando prometia bater nela, e bater forte. Seu filho maior, nascido de um casamento anterior, apareceu morto em um descampado. Ele conseguiu dar-lhe o golpe mais certeiro.
Naquilo que os militantes do coletivo feminista chamam de “femicídio vinculado”, a agressão masculina alcança seu ponto máximo de violência contra as mulheres sem chegar à eliminação física. Mas como o assassinato é cometido contra o filho ou a filha para produzir um dano explícito à mulher, no femicídio vinculado a relação infância-gênero se torna mais nítida. É um grito que deve ser escutado sem os preconceitos que vêm do patronato e do patriarcado.
O patronato é a instituição que estabelece que as pessoas menores de idade são consideradas “objetos de proteção” e não “sujeitos de direitos”. O patriarcado é a instituição segundo a qual as mulheres devem ser consideradas “objetos de proteção” e não “sujeitos de direitos”. Na fundamentação de ambas, como doutrinas e como práticas sociais, está a suposta proteção de “seres inferiores”, incapazes por si mesmos de exercer plenamente seus direitos.
Se patriarcado e patronato andam de mãos dadas, se a origem é o “pater”, se o patronato priva meninos, meninas e adolescentes de direitos e o patriarcado priva as mulheres de direitos, se as sociedades patriarcais são aquelas que consideram o patronato como a forma de “proteger” os “menores” e a submissão como a forma de “silenciar” as mulheres, então as respostas institucionais à violência de gênero devem percorrer também os caminhos da infância. De nenhuma maneira, essas duas dimensões podem ficar separadas.
As adolescentes que abandonam voluntariamente seus lares sempre o fazem em função da arbitrariedade patriarcal, que chega aos extremos da violência física. Às vezes a violência não é só física, mas nem por isso é menos violenta. As mulheres que conseguem fugir levando junto seus filhos ou filhas escapam da violência patriarcal, que se manifesta de várias formas distintas: simbólica, sexual, física ou econômica. “Para que eu ia ficar se ele me tirava todo o dinheiro?”, dizia ela em estado de pânico. “Não queria que meu filho passasse pela mesma coisa”. Em resposta a essa violência que não se vê, muitas mulheres começam a divisar a possibilidade da sobrevivência própria e a de seus filhos.
O “caso Tomás” foi um exemplo de femicídio vinculado que chegou aos meios de comunicação. Mas não é o único. O afã de destruição total de uma mulher, corporizado no assassinato de um filho, fornece uma prova cabal de que infância e gênero devem ser abordados de uma forma integral. Não se pode trabalhar com problemáticas da infância perdendo de vista a perspectiva de gênero. E não se pode construir o caminho da consciência de gênero se não se leva em conta que há outras vítimas, além das mulheres. O perfil da violência no âmbito do privado sempre toca meninos, meninas e adolescentes.
A maternidade é uma construção social. A infância e o gênero também o são. A resistência à violência doméstica deve ser construção de um coletivo único, feminista e não feminista, cuja única bandeira deve ser a proteção de direitos.
(*) Coordenadora do Registro Nacional de Informação de Pessoas Menores Perdidas, da Secretaria de Direitos Humanos, da Argentina.
Tradução: Katarina Peixoto
Carta Maior
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