sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
Dez dias de conflito na cracolândia: o que dizem os especialistas?
Para debater a operação, apontar erros e mostrar acertos, o 'Estado' entrevistou dez personalidades
Adriana Ferraz, Bruno Paes Manso e Guilherme Russo
SÃO PAULO - Nesta sexta faz dez dias que a Polícia Militar cercou a região da cracolândia. Do dia 3 até as 17h de quinta, 69 pessoas foram presas - a maioria microtraficantes -, 152 usuários de drogas foram encaminhados a tratamento e 3.607 passaram por revistas. No total, policiais apreenderam 0,63 kg de crack e funcionários da Prefeitura retiraram 78 toneladas de lixo. Do ponto de vista operacional, esse é o resumo da ação.
Mas, mais do que colecionar números, a operação fez São Paulo voltar a discutir um território degradado e até então quase autônomo bem no coração da metrópole. Opiniões favoráveis e contrárias se amontoaram no período, principalmente quando os viciados começaram a vagar por ruas do centro para fugir da polícia.
A estratégia da operação - de dificultar o acesso dos usuários ao crack e, por meio de "dor e sofrimento", forçar que procurem tratamento - também virou motivo de debate,
assim como a revelação feita pelo Estado no sábado de que o início da operação foi precipitado por uma decisão de segundo escalão do governo e da PM - o cerco foi deflagrado sem nem mesmo o governador Geraldo Alckmin (PSDB) e o prefeito Gilberto Kassab (PSD) saberem. Já durante a semana, o Ministério Público e a Secretaria de Segurança Pública trocaram farpas publicamente.
Para fazer um balanço desses primeiros dez dias, o Estado entrevistou advogados, urbanistas, sociólogos, políticos e integrantes de entidades paulistanas. Suas opiniões formam uma espécie de panorama de acertos e erros até aqui e indicam caminhos a seguir.
GILBERTO KASSAB (PSD), PREFEITO DE SÃO PAULO
Esse problema não se resolve em curto prazo
O crack é um problema que não dá para ter solução neste ano, não é de curto prazo. Senão, todas as outras cidades já teriam resolvido. Mas é um problema que está no mundo inteiro. Existe uma grande expectativa de melhoria, com o Estado mais presente. Na medida que o trabalho se intensifica, os resultados em número de tratamentos melhoram. Estamos nos esforçando muito e vamos criar mais leitos quanto forem necessários. Constatamos o quanto as ações têm que ser integradas com polícia, saúde e assistência social, por sua magnitude.
GUARACY MINGARDI, DOUTOR EM CIÊNCIAS POLÍTICAS E PESQUISADOR DA FGV
Ação só mudou o endereço dos usuários de crack
Por enquanto, só o endereço dos usuários mudou. Não vejo como essa operação pode ter outro resultado, se ela ocorre de forma totalmente desarticulada. Imagine que nem a Polícia Civil, que tem preparo para realizar o trabalho de inteligência necessário para combater o tráfico, foi chamada para participar da operação. E, pior, a PM está agindo com violência, o que é desnecessário. Até armas que disparam balas de borracha já foram utilizadas. Acho que vamos continuar vendo só repressão policial, que não gera resultado para essa população.
ALBERTO ZACHARIAS TORON, ADVOGADO CRIMINALISTA
Para desarticular o tráfico é preciso inteligência
É um equívoco utilizar a polícia na primeira fase da operação. O Estado Democrático de Direito não pode usar o sofrimento como método de ação nem submeter a população a maus-tratos. O ideal seria primeiro fortalecer a rede de saúde pública, porque esse é fundamentalmente o problema. Para desarticular o tráfico de crack é preciso inteligência e investigação, não policiamento ostensivo. O resultado disso é uma criminalização mal disfarçada dos miseráveis, que acabou servindo apenas para dispersar pessoas da cracolândia. É um paliativo com resultados inócuos.
MARCOS FUCHS, DIRETOR ADJUNTO DA ONG CONECTAS - DIREITOS HUMANOS
O problema deveria ser tratado com mais respeito
A ação é errada. Impedir alguém de permanecer em um lugar afronta o direito básico de ir e vir. A polícia fica fazendo rondas e, quando os usuários estão juntos, são cercados por viaturas. Esse é um problema de saúde pública que deve ser tratado com muito mais carinho, mais respeito. O atrativo empresarial e imobiliário é o que motiva as autoridades a promover esse deslocamento. O Estado tem de tratar dessa questão com menos covardia, não pode atropelar cidadãos com veículos, cassetetes e balas de borracha; nem algemar e levar presas essas pessoas.
JOSÉ VICENTE DA SILVA, CORONEL DA RESERVA DA POLÍCIA MILITAR
Presença policial deve ser permanente na região
Essa operação é mais do que necessária, até tardia. Com a concentração de usuários cada vez maior da região, a PM deve mesmo marcar território por lá. E a ação não deve ter como foco apenas o combate ao tráfico, mas a outros problemas que ocorrem paralelamente, como pequenos furtos e roubos e casos de agressão. Há um grupo extremamente resistente a qualquer tipo de ajuda, mas outro que pode ser sensibilizado pelos agentes sociais e de saúde. Vale a tentativa. Mas, é claro, o resultado depende de um trabalho integrado com a Prefeitura.
DARTIU XAVIER, PSIQUIATRA DA UNIFESP
Operação é só paliativa, não resolve o problema
Pelo o que tenho observado, nada mudou desde o começo da operação policial. Os atores que a promoveram, ou seja, os representantes do poder público, continuam defendendo essa ação como solução para a cracolândia. Mas, na minha opinião, é só uma falácia, só mais uma forma paliativa de tratar a questão. Mesmo que a polícia fique por lá seis meses ou mais, ela só vai conseguir espalhar as pessoas, que, depois, vão voltar para o mesmo lugar. Assim como a internação compulsória, que gera taxas altíssimas de reincidência, a repressão policial não resolve.
PADRE JÚLIO LANCELLOTTI, COORDENADOR DA PASTORAL DO POVO DE RUA
Sumir com os usuários só agrava a situação
O que está acontecendo na cracolândia é tortura. Eu e alguns integrantes da Defensoria Pública estamos lá todos os dias e observamos como está sendo feita a operação. Os policiais estão jogando o carro contras as pessoas, que estão limitadas no seu direito de ir e vir. Tem gente sendo levada para a delegacia só por não ter documento. É um absurdo, é muita truculência. Sumir com os usuários sem oferecer tratamento adequado não vai resolver o problema. Pelo contrário, é um retrocesso e agrava a situação social dessas pessoas.
MARGARETH MATIKO UEMURA, URBANISTA DO INSTITUTO PÓLIS
Problema não é só policial, é também de saúdeA Prefeitura é a principal culpada por essas pessoas estarem nesse local. Desde 2005 (quando a gestão José Serra iniciou as operações na cracolândia), não houve ação efetiva de atendimento a essa população. Com aquela intervenção, a Prefeitura retirou o atendimento social que havia, sem substituí-lo. A intervenção recente é pontual. Tem de haver um atendimento social. A ação da polícia só faz com que elas se espalhem. E depois retornam. O problema não é só policial. Somente essa resposta não vai resolver o problema, que é também de saúde.
ALEXANDRE FERREIRA, DIRETOR DO CENTRO 11 DE AGOSTO, DA FACULDADE DE DIREITO DA USP
Não está claro se São Paulo tem estrutura
O erro ocorre tanto na concepção quanto na aplicação. Seu plano de saúde pública é obscuro. Não está claro se São Paulo tem estrutura e condições para tratar essas pessoas. Colocar o combate ao tráfico de drogas em primeiro plano é um erro. A questão é de saúde pública. É possível conciliar segurança com direitos humanos. Não é uma intervenção policial que vai solucionar esse problema. Os movimentos sociais têm de ser chamados durante a elaboração dessas políticas e não apenas quando elas dão errado.
ANA CECÍLIA MARQUES, PSIQUIATRA DA UNIFESP
PM deve ficar, mas sem atrapalhar os agentes
Ninguém questiona a presença da polícia na cracolândia. Se é um local de tráfico de drogas, a PM deve ficar lá mesmo e para sempre. O que precisamos buscar saber a partir de agora é o destino dos usuários que aceitaram ser tratados para avaliarmos a eficácia dessa ação. Para onde foram? Estão em casas de acolhimento? Continuam internados? A dispersão dessa população pode ajudar a combater o crack, mas também pode atrapalhar a ação dos agentes de saúde, o que é preocupante. E mais um detalhe: policial não deve abordar usuário, para não intensificar a sensação de medo.
Estadão
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