Guilherme Alves Coelho - de Lisboa
São muitos e variados os tipos e meios de manipulação em que a ideologia burguesa se foi alicerçando ao longo do tempo. Um dos tipos mais importantes são os mitos.
Trata-se de um conjunto de falsas verdades, mera propaganda que, repetidas à exaustão, sem qualquer questionamento, ao longo de gerações, tornam-se verdades insofismáveis aos olhos de muitos. Foram criadas para apresentar o capitalismo de forma crível perante as massas e obter o seu apoio ou passividade. Os seus veículos mais importantes são a informação mediática, a educação escolar, as tradições familiares, a doutrina das igrejas, etc*.
Um comentário amargo, e frequente após os períodos eleitorais, é o de que “cada povo tem o governo que merece”. Trata-se de uma crítica errônea, que pode levar ao conformismo e à inércia e castiga os menos culpados. Não existem maus povos. Existem povos iletrados, mal informados, enganados, manipulados, iludidos por máquinas de propaganda que os atemorizam e lhes condicionam o pensamento. Todos os povos merecem sempre governos melhores.
A mentira e a manipulação são hoje armas de opressão e destruição em massa, tão eficazes e importantes como as armas de guerra tradicionais. Em muitas ocasiões são complementares destas. Tanto servem para ganhar eleições como para invadir e destruir países insubmissos.
São muitos e variados os tipos e meios de manipulação em que a ideologia capitalista se foi alicerçando ao longo do tempo.
Apresentam-se neste texto, sucintamente, alguns dos mitos mais comuns da mitologia capitalista.
• No capitalismo, qualquer pessoa
pode enriquecer à custa do seu trabalho
Pretende-se fazer crer que o regime capitalista conduz automaticamente qualquer pessoa a ser rica desde que se esforce muito.
O objetivo oculto é obter o apoio acrítico dos trabalhadores no sistema e a sua submissão, na esperança ilusória e culpabilizante em caso de fracasso, de um dia virem a ser também, patrões de sucesso.
Na verdade, a probabilidade de sucesso no sistema capitalista para o cidadão comum é igual a ganhar na loteria. O “sucesso capitalista” é, com raras exceções, fruto da manipulação e da falta de escrúpulos dos que dispõem de mais poder e influência. As fortunas em geral derivam diretamente de formas fraudulentas de atuação.
Este mito de que o sucesso é fruto de uma mistura de trabalho duro, alguma sorte, uma boa dose de fé e depende apenas da capacidade empreendedora e competitiva de cada um, é um dos mitos que tem levado mais pessoas a acreditar no sistema e a apoiá-lo. Mas também, após as tentativas falhadas, a resignarem-se pelo aparente fracasso pessoal e a esconderem que acreditam na indiferença. Trata-se dos tão apregoados empreendedorismo e competitividade.
• O capitalismo gera riqueza e bem-estar para todos
Pretende-se fazer crer que a fórmula capitalista de acumulação de riqueza por uma minoria dará lugar, mais tarde ou mais cedo, à redistribuição da mesma.
O objetivo é permitir que os patrões acumulem indefinidamente sem serem questionados sobre a forma como o fizeram, nomeadamente sobre a exploração dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, mantêm nestes a esperança de mais tarde serem recompensados pelo seu esforço e dedicação.
Na verdade, Marx já havia concluído em seus estudos que o objetivo final do capitalismo não é a distribuição da riqueza, mas a sua acumulação e concentração. O agravamento das diferenças entre ricos e pobres nas últimas décadas, nomeadamente após o neoliberalismo, provou isso claramente.
Este mito foi um dos mais difundidos durante a fase de “bem-estar social” pós-guerra, para superar os estados socialistas. Com a queda do adversário soviético, o capitalismo deixou também cair a máscara e perdeu credibilidade.
• Estamos todos no mesmo barco
Pretende-se fazer crer que não há classes na sociedade, pelo que as responsabilidades pelos fracassos e crises são igualmente atribuídas a todos e, portanto pagas por todos.
O objetivo é criar um complexo de culpa junto dos trabalhadores que permita aos capitalistas arrecadar os lucros enquanto distribuem as despesas por todo o povo.
Na verdade, o pequeno número de multimilionários, porque detém o poder, é sempre autobeneficiado em relação à imensa maioria do povo, quer em impostos, quer em tráfico de influências, quer na especulação financeira, quer em off-shores, quer na corrupção e nepotismo etc. Esse núcleo, que constitui a classe dominante, pretende assim escamotear que é o único e exclusivo responsável pela situação de penúria dos povos e que deve pagar por isso.
Este é um dos mitos mais ideológicos do capitalismo ao negar a existência de classes.
• Liberdade é igual a capitalismo
Pretende-se fazer crer que a verdadeira liberdade só se atinge com o capitalismo, através da chamada autorregulação proporcionada pelo mercado.
O objetivo aí é tornar o capitalismo uma espécie de religião em que tudo se organiza em seu redor e assim afastar os povos das grandes decisões macro-econômicas, indiscutíveis. A liberdade de negociar sem amarras seria o máximo da liberdade.
Na verdade, sabe-se que as estratégias político-económicas, muitas delas planejadas com grande antecipação, são quase sempre tomadas por um pequeno número de pessoas poderosas, à revelia dos povos e dos poderes instituídos, a quem ditam as suas orientações. Nessas reuniões, em cúpulas restritas e mesmo secretas, são definidas as grandes decisões financeiras e econômicas conjunturais ou estratégicas de longo prazo. Todas, ou quase todas essas resoluções, são fruto de negociações e acordos mais ou menos secretos entre os maiores empresas e multinacionais mundiais. O mercado é, pois, manipulado e não autorregulado. A liberdade plena no capitalismo existe de fato, mas apenas para os ricos e poderosos.
Este mito tem sido utilizado pelos dirigentes capitalistas para justificar, por exemplo, intervenções em outros países não submissos ao capitalismo, argumentando não haver neles liberdade, porque há regras.
• Capitalismo igual a democracia
Pretende-se fazer crer que apenas no capitalismo há democracia.
O objetivo deste mito, que é complementar ao anterior, é impedir a discussão de outros modelos de sociedade, afirmando não haver alternativas a esse modelo e todos os outros serem ditaduras. Trata-se mais uma vez da apropriação pelo capitalismo, falseando-lhes o sentido, de conceitos caros aos povos, tais como liberdade e democracia.
Na realidade, estando a sociedade dividida em classes, a classe mais rica, embora seja ultraminoritária, domina sobre todas as demais. Trata-se da negação da democracia que, por definição, é o governo do povo, logo, da maioria. Esta “democracia” não passa, pois de uma ditadura disfarçada. As “reformas democráticas” não são mais que retrocessos, reações ao progresso. Daí deriva o termo reacionário, o que anda para trás.
Tal como o anterior, este mito também serve de pretexto para criticar e atacar os regimes de países não-capitalistas.
• Eleições igual a democracia
Pretende-se fazer crer que o ato eleitoral é o sinônimo da democracia e esta se esgota nele.
O objetivo é denegrir ou diabolizar e impedir a discussão de outros sistemas político-eleitorais em que os dirigentes são estabelecidos por formas diversas das eleições burguesas, como por exemplo, pela idade, experiência, aceitação popular etc.
Na verdade, é no sistema capitalista, que tudo manipula e corrompe, que o voto é condicionado e as eleições são atos meramente formais. O simples fato de a classe burguesa minoritária vencer sempre as eleições demonstra o seu carácter não-representativo.
O mito de que, onde há eleições há democracia, é um dos mais enraizados, mesmo em algumas forças de esquerda.
• Partidos alternantes igual a alternativos
Pretende-se fazer crer que os partidos burgueses que se alternam periodicamente no poder têm políticas alternativas.
O objetivo deste mito é perpetuar o sistema dentro dos limites da classe dominante, alimentando o mito de que a democracia está reduzida ao ato eleitoral.
Na verdade, este aparente sistema pluri ou bipartidário é um sistema monopartidário. Duas ou mais facções da mesma organização política, partilhando políticas capitalistas idênticas e complementares, alternam-se no poder, simulando partidos independentes, com políticas alternativas. O que é dado escolher aos povos não é o sistema que é sempre o capitalismo, mas apenas os agentes partidários que estão de turno como seus guardiões e continuadores.
O mito de que os partidos burgueses têm políticas independentes da classe dominante, chegando até a ser opostas, é um dos mais divulgados e importantes para manter o sistema a funcionar.
• O eleito representa o povo e
por isso pode decidir tudo por ele
Pretende-se fazer crer que o político, uma vez eleito, adquire plenos poderes e pode governar como quiser.
O objetivo deste mito é iludir o povo com promessas vãs e escamotear as verdadeiras medidas que serão levadas à prática.
Na verdade, uma vez no poder, o eleito autoassume novos poderes. Não cumpre o que prometeu e, o que é ainda mais grave, põe em prática medidas não enunciadas antes, muitas vezes em sentido oposto e até inconstitucionais.
Frequentemente, são eleitos por minorias de votantes. Ao meio dos mandatos, já atingiram índices de popularidade mínimos. Nestes casos de ausência ou perda progressiva de representatividade, o sistema não contempla quaisquer formas constitucionais de destituição. Esta perda de representatividade é uma das razões que impede as “democracias” capitalistas de serem verdadeiras democracias, tornando-se ditaduras disfarçadas.
A prática sistemática deste processo de falsificação da democracia tornou este mito um dos mais desacreditados, sendo uma das causas principais da crescente abstenção eleitoral.
• Não há alternativas à política capitalista
Pretende-se fazer crer que o capitalismo, embora não sendo perfeito, é o único regime político-econômico possível e, portanto, o mais adequado.
O objetivo é impedir que outros sistemas sejam conhecidos e comparados, usando todos os meios, incluindo a força, para afastar a competição.
Na realidade, existem outros sistemas político-económicos, sendo o mais conhecido o socialismo cientifico. Mesmo dentro do capitalismo, há modalidades que vão desde o atual neoliberalismo aos reformistas do “socialismo democrático” ou socialdemocrata.
Este mito faz parte da tentativa de intimidação dos povos de impedir a discussão de alternativas ao capitalismo, a que se convencionou chamar o pensamento único.
• A austeridade gera riqueza
Pretende-se fazer crer que a culpa das crises econômicas é originada pelo excesso de regalias dos trabalhadores. Se estas forem retiradas, o Estado poupa e o país enriquece.
O objetivo é fundamentalmente transferir para o setor público, para o povo em geral e para os trabalhadores, a responsabilidade do pagamento das dividas dos capitalistas. Fazer o povo aceitar a pilhagem dos seus bens na crença de que dias melhores virão mais tarde. Destina-se também a facilitar a privatização dos bens públicos, “emagrecendo” o Estado, logo “poupando”, sem referir que esses setores eram os mais rentáveis do Estado, cujos lucros futuros se perdem desta forma.
Na verdade, constata-se que estas políticas conduzem, ano após ano, a um empobrecimento das receitas do Estado e a uma diminuição das regalias, direitos e do nível de vida dos povos, que antes estavam assegurados por elas.
• Estado menor, Estado melhor
Pretende-se fazer crer que o setor privado administra melhor o Estado do que o setor público.
O objetivo dos capitalistas é “dourar a pílula” para facilitar a apropriação do patrimônio, das funções e dos bens rentáveis dos Estados. É complementar do anterior.
Na verdade o que acontece em geral é o contrário: os serviços públicos privatizados não apenas se tornam piores, como as tributações e as prestações são agravadas. O balanço dos resultados dos serviços prestados após passarem a privados é quase sempre pior que o anterior. Na ótica capitalista, a prestação de serviços públicos não passa de mera oportunidade de negócio. Este mito é um dos mais “ideológicos” do capitalismo neoliberal. Nele está subjacente a filosofia de que quem deve governar são os privados e o Estado apenas dá apoio.
• A atual crise é passageira e
será resolvida para o bem dos povos
Pretende-se fazer crer que a atual crise econômico-financeira é mais uma crise cíclica habitual do capitalismo e não uma crise sistêmica ou final.
O objetivo dos capitalistas, com destaque para os financeiros, é seguir na pilhagem dos Estados e na exploração dos povos enquanto puderem. Tem servido ainda para alguns políticos se manterem no poder, alimentando a esperança junto dos povos de que melhores dias virão se continuarem a votar neles.
Na verdade, tal como previu Marx, do que se trata é da crise final do sistema capitalista, com o crescente aumento da contradição entre o carácter social da produção e o lucro privado, até se tornar insolúvel.
Alguns, entre os quais os “socialistas” e sociais-democratas, que afirmam poder manter o capitalismo, embora de forma mitigada, afirmam que a crise deriva apenas de erros dos políticos, da ganância dos banqueiros e especuladores ou da falta de ideias dos dirigentes ou mecanismos que ainda falta resolver. No entanto, aquilo a que assistimos é ao agravamento permanente do nível de vida dos povos sem que esteja à vista qualquer esperança de melhoria. Dentro do sistema capitalista já nada mais há a esperar de bom.
Nota final
O capitalismo há de acabar, mas se for por ele mesmo isso ocorrerá muito lentamente e com imensos sacrifícios dos povos. Terá que ser empurrado. Devem ser combatidas as ilusões, quer daqueles que julgam o capitalismo reformável, quer daqueles que acham que quanto pior melhor, para o capitalismo cair de podre. O capitalismo tudo fará para vender cara a derrota. Por isso, quanto mais rápido os povos se libertarem desse sistema injusto e cruel, mais sacrifícios inúteis se poderão evitar.
Hoje, mais do que nunca, é necessário criar barreiras ao assalto final da barbárie capitalista, e inverter a situação, quer apresentando claramente outras soluções políticas, quer combatendo o obscurantismo pelo esclarecimento, quer mobilizando e organizando os povos.
(*) Os mitos criados pelas religiões cristãs têm muito peso no pensamento único capitalista e são avidamente apropriados por ele para facilitar a aceitação do sistema pelos mais crédulos. Exemplos: “A pobreza é uma situação passageira da vida terrena.” “Sempre houve ricos e pobres.” “O rico será castigado no juízo final.” “Deve-se aguentar o sofrimento sem revolta para mais tarde ser recompensado.”
Guilherme Alves Coelho é jornalista.
Publicado originariamente no jornal português O diário
Um comentário amargo, e frequente após os períodos eleitorais, é o de que “cada povo tem o governo que merece”. Trata-se de uma crítica errônea, que pode levar ao conformismo e à inércia e castiga os menos culpados. Não existem maus povos. Existem povos iletrados, mal informados, enganados, manipulados, iludidos por máquinas de propaganda que os atemorizam e lhes condicionam o pensamento. Todos os povos merecem sempre governos melhores.
A mentira e a manipulação são hoje armas de opressão e destruição em massa, tão eficazes e importantes como as armas de guerra tradicionais. Em muitas ocasiões são complementares destas. Tanto servem para ganhar eleições como para invadir e destruir países insubmissos.
São muitos e variados os tipos e meios de manipulação em que a ideologia capitalista se foi alicerçando ao longo do tempo.
Apresentam-se neste texto, sucintamente, alguns dos mitos mais comuns da mitologia capitalista.
• No capitalismo, qualquer pessoa
pode enriquecer à custa do seu trabalho
Pretende-se fazer crer que o regime capitalista conduz automaticamente qualquer pessoa a ser rica desde que se esforce muito.
O objetivo oculto é obter o apoio acrítico dos trabalhadores no sistema e a sua submissão, na esperança ilusória e culpabilizante em caso de fracasso, de um dia virem a ser também, patrões de sucesso.
Na verdade, a probabilidade de sucesso no sistema capitalista para o cidadão comum é igual a ganhar na loteria. O “sucesso capitalista” é, com raras exceções, fruto da manipulação e da falta de escrúpulos dos que dispõem de mais poder e influência. As fortunas em geral derivam diretamente de formas fraudulentas de atuação.
Este mito de que o sucesso é fruto de uma mistura de trabalho duro, alguma sorte, uma boa dose de fé e depende apenas da capacidade empreendedora e competitiva de cada um, é um dos mitos que tem levado mais pessoas a acreditar no sistema e a apoiá-lo. Mas também, após as tentativas falhadas, a resignarem-se pelo aparente fracasso pessoal e a esconderem que acreditam na indiferença. Trata-se dos tão apregoados empreendedorismo e competitividade.
• O capitalismo gera riqueza e bem-estar para todos
Pretende-se fazer crer que a fórmula capitalista de acumulação de riqueza por uma minoria dará lugar, mais tarde ou mais cedo, à redistribuição da mesma.
O objetivo é permitir que os patrões acumulem indefinidamente sem serem questionados sobre a forma como o fizeram, nomeadamente sobre a exploração dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, mantêm nestes a esperança de mais tarde serem recompensados pelo seu esforço e dedicação.
Na verdade, Marx já havia concluído em seus estudos que o objetivo final do capitalismo não é a distribuição da riqueza, mas a sua acumulação e concentração. O agravamento das diferenças entre ricos e pobres nas últimas décadas, nomeadamente após o neoliberalismo, provou isso claramente.
Este mito foi um dos mais difundidos durante a fase de “bem-estar social” pós-guerra, para superar os estados socialistas. Com a queda do adversário soviético, o capitalismo deixou também cair a máscara e perdeu credibilidade.
• Estamos todos no mesmo barco
Pretende-se fazer crer que não há classes na sociedade, pelo que as responsabilidades pelos fracassos e crises são igualmente atribuídas a todos e, portanto pagas por todos.
O objetivo é criar um complexo de culpa junto dos trabalhadores que permita aos capitalistas arrecadar os lucros enquanto distribuem as despesas por todo o povo.
Na verdade, o pequeno número de multimilionários, porque detém o poder, é sempre autobeneficiado em relação à imensa maioria do povo, quer em impostos, quer em tráfico de influências, quer na especulação financeira, quer em off-shores, quer na corrupção e nepotismo etc. Esse núcleo, que constitui a classe dominante, pretende assim escamotear que é o único e exclusivo responsável pela situação de penúria dos povos e que deve pagar por isso.
Este é um dos mitos mais ideológicos do capitalismo ao negar a existência de classes.
• Liberdade é igual a capitalismo
Pretende-se fazer crer que a verdadeira liberdade só se atinge com o capitalismo, através da chamada autorregulação proporcionada pelo mercado.
O objetivo aí é tornar o capitalismo uma espécie de religião em que tudo se organiza em seu redor e assim afastar os povos das grandes decisões macro-econômicas, indiscutíveis. A liberdade de negociar sem amarras seria o máximo da liberdade.
Na verdade, sabe-se que as estratégias político-económicas, muitas delas planejadas com grande antecipação, são quase sempre tomadas por um pequeno número de pessoas poderosas, à revelia dos povos e dos poderes instituídos, a quem ditam as suas orientações. Nessas reuniões, em cúpulas restritas e mesmo secretas, são definidas as grandes decisões financeiras e econômicas conjunturais ou estratégicas de longo prazo. Todas, ou quase todas essas resoluções, são fruto de negociações e acordos mais ou menos secretos entre os maiores empresas e multinacionais mundiais. O mercado é, pois, manipulado e não autorregulado. A liberdade plena no capitalismo existe de fato, mas apenas para os ricos e poderosos.
Este mito tem sido utilizado pelos dirigentes capitalistas para justificar, por exemplo, intervenções em outros países não submissos ao capitalismo, argumentando não haver neles liberdade, porque há regras.
• Capitalismo igual a democracia
Pretende-se fazer crer que apenas no capitalismo há democracia.
O objetivo deste mito, que é complementar ao anterior, é impedir a discussão de outros modelos de sociedade, afirmando não haver alternativas a esse modelo e todos os outros serem ditaduras. Trata-se mais uma vez da apropriação pelo capitalismo, falseando-lhes o sentido, de conceitos caros aos povos, tais como liberdade e democracia.
Na realidade, estando a sociedade dividida em classes, a classe mais rica, embora seja ultraminoritária, domina sobre todas as demais. Trata-se da negação da democracia que, por definição, é o governo do povo, logo, da maioria. Esta “democracia” não passa, pois de uma ditadura disfarçada. As “reformas democráticas” não são mais que retrocessos, reações ao progresso. Daí deriva o termo reacionário, o que anda para trás.
Tal como o anterior, este mito também serve de pretexto para criticar e atacar os regimes de países não-capitalistas.
• Eleições igual a democracia
Pretende-se fazer crer que o ato eleitoral é o sinônimo da democracia e esta se esgota nele.
O objetivo é denegrir ou diabolizar e impedir a discussão de outros sistemas político-eleitorais em que os dirigentes são estabelecidos por formas diversas das eleições burguesas, como por exemplo, pela idade, experiência, aceitação popular etc.
Na verdade, é no sistema capitalista, que tudo manipula e corrompe, que o voto é condicionado e as eleições são atos meramente formais. O simples fato de a classe burguesa minoritária vencer sempre as eleições demonstra o seu carácter não-representativo.
O mito de que, onde há eleições há democracia, é um dos mais enraizados, mesmo em algumas forças de esquerda.
• Partidos alternantes igual a alternativos
Pretende-se fazer crer que os partidos burgueses que se alternam periodicamente no poder têm políticas alternativas.
O objetivo deste mito é perpetuar o sistema dentro dos limites da classe dominante, alimentando o mito de que a democracia está reduzida ao ato eleitoral.
Na verdade, este aparente sistema pluri ou bipartidário é um sistema monopartidário. Duas ou mais facções da mesma organização política, partilhando políticas capitalistas idênticas e complementares, alternam-se no poder, simulando partidos independentes, com políticas alternativas. O que é dado escolher aos povos não é o sistema que é sempre o capitalismo, mas apenas os agentes partidários que estão de turno como seus guardiões e continuadores.
O mito de que os partidos burgueses têm políticas independentes da classe dominante, chegando até a ser opostas, é um dos mais divulgados e importantes para manter o sistema a funcionar.
• O eleito representa o povo e
por isso pode decidir tudo por ele
Pretende-se fazer crer que o político, uma vez eleito, adquire plenos poderes e pode governar como quiser.
O objetivo deste mito é iludir o povo com promessas vãs e escamotear as verdadeiras medidas que serão levadas à prática.
Na verdade, uma vez no poder, o eleito autoassume novos poderes. Não cumpre o que prometeu e, o que é ainda mais grave, põe em prática medidas não enunciadas antes, muitas vezes em sentido oposto e até inconstitucionais.
Frequentemente, são eleitos por minorias de votantes. Ao meio dos mandatos, já atingiram índices de popularidade mínimos. Nestes casos de ausência ou perda progressiva de representatividade, o sistema não contempla quaisquer formas constitucionais de destituição. Esta perda de representatividade é uma das razões que impede as “democracias” capitalistas de serem verdadeiras democracias, tornando-se ditaduras disfarçadas.
A prática sistemática deste processo de falsificação da democracia tornou este mito um dos mais desacreditados, sendo uma das causas principais da crescente abstenção eleitoral.
• Não há alternativas à política capitalista
Pretende-se fazer crer que o capitalismo, embora não sendo perfeito, é o único regime político-econômico possível e, portanto, o mais adequado.
O objetivo é impedir que outros sistemas sejam conhecidos e comparados, usando todos os meios, incluindo a força, para afastar a competição.
Na realidade, existem outros sistemas político-económicos, sendo o mais conhecido o socialismo cientifico. Mesmo dentro do capitalismo, há modalidades que vão desde o atual neoliberalismo aos reformistas do “socialismo democrático” ou socialdemocrata.
Este mito faz parte da tentativa de intimidação dos povos de impedir a discussão de alternativas ao capitalismo, a que se convencionou chamar o pensamento único.
• A austeridade gera riqueza
Pretende-se fazer crer que a culpa das crises econômicas é originada pelo excesso de regalias dos trabalhadores. Se estas forem retiradas, o Estado poupa e o país enriquece.
O objetivo é fundamentalmente transferir para o setor público, para o povo em geral e para os trabalhadores, a responsabilidade do pagamento das dividas dos capitalistas. Fazer o povo aceitar a pilhagem dos seus bens na crença de que dias melhores virão mais tarde. Destina-se também a facilitar a privatização dos bens públicos, “emagrecendo” o Estado, logo “poupando”, sem referir que esses setores eram os mais rentáveis do Estado, cujos lucros futuros se perdem desta forma.
Na verdade, constata-se que estas políticas conduzem, ano após ano, a um empobrecimento das receitas do Estado e a uma diminuição das regalias, direitos e do nível de vida dos povos, que antes estavam assegurados por elas.
• Estado menor, Estado melhor
Pretende-se fazer crer que o setor privado administra melhor o Estado do que o setor público.
O objetivo dos capitalistas é “dourar a pílula” para facilitar a apropriação do patrimônio, das funções e dos bens rentáveis dos Estados. É complementar do anterior.
Na verdade o que acontece em geral é o contrário: os serviços públicos privatizados não apenas se tornam piores, como as tributações e as prestações são agravadas. O balanço dos resultados dos serviços prestados após passarem a privados é quase sempre pior que o anterior. Na ótica capitalista, a prestação de serviços públicos não passa de mera oportunidade de negócio. Este mito é um dos mais “ideológicos” do capitalismo neoliberal. Nele está subjacente a filosofia de que quem deve governar são os privados e o Estado apenas dá apoio.
• A atual crise é passageira e
será resolvida para o bem dos povos
Pretende-se fazer crer que a atual crise econômico-financeira é mais uma crise cíclica habitual do capitalismo e não uma crise sistêmica ou final.
O objetivo dos capitalistas, com destaque para os financeiros, é seguir na pilhagem dos Estados e na exploração dos povos enquanto puderem. Tem servido ainda para alguns políticos se manterem no poder, alimentando a esperança junto dos povos de que melhores dias virão se continuarem a votar neles.
Na verdade, tal como previu Marx, do que se trata é da crise final do sistema capitalista, com o crescente aumento da contradição entre o carácter social da produção e o lucro privado, até se tornar insolúvel.
Alguns, entre os quais os “socialistas” e sociais-democratas, que afirmam poder manter o capitalismo, embora de forma mitigada, afirmam que a crise deriva apenas de erros dos políticos, da ganância dos banqueiros e especuladores ou da falta de ideias dos dirigentes ou mecanismos que ainda falta resolver. No entanto, aquilo a que assistimos é ao agravamento permanente do nível de vida dos povos sem que esteja à vista qualquer esperança de melhoria. Dentro do sistema capitalista já nada mais há a esperar de bom.
Nota final
O capitalismo há de acabar, mas se for por ele mesmo isso ocorrerá muito lentamente e com imensos sacrifícios dos povos. Terá que ser empurrado. Devem ser combatidas as ilusões, quer daqueles que julgam o capitalismo reformável, quer daqueles que acham que quanto pior melhor, para o capitalismo cair de podre. O capitalismo tudo fará para vender cara a derrota. Por isso, quanto mais rápido os povos se libertarem desse sistema injusto e cruel, mais sacrifícios inúteis se poderão evitar.
Hoje, mais do que nunca, é necessário criar barreiras ao assalto final da barbárie capitalista, e inverter a situação, quer apresentando claramente outras soluções políticas, quer combatendo o obscurantismo pelo esclarecimento, quer mobilizando e organizando os povos.
(*) Os mitos criados pelas religiões cristãs têm muito peso no pensamento único capitalista e são avidamente apropriados por ele para facilitar a aceitação do sistema pelos mais crédulos. Exemplos: “A pobreza é uma situação passageira da vida terrena.” “Sempre houve ricos e pobres.” “O rico será castigado no juízo final.” “Deve-se aguentar o sofrimento sem revolta para mais tarde ser recompensado.”
Guilherme Alves Coelho é jornalista.
Publicado originariamente no jornal português O diário
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