Questão nordestina ? |
Marcelo Diana
Texto publicado um pouco antes da sua prisão, pela polícia fascista na Itália, em 1926, A questão meridional de Antonio Gramsci pode ser lido como um artigo de conjuntura, escrito no calor da hora pelo autor (à semelhança de Marx, cujo 18 de Brumário assim o fora também); porém, pode ser retomado, hoje, como uma análise seminal de sociologia política que parece resistir ao quase um século do seu aparecimento [1]. Com efeito, a sociologia política pode ser uma outra chave de leitura para este importante texto, que não pereceu ao tempo, que não se perdeu no encadeamento de fatos que a análise de Gramsci apresenta, e é precisamente esta chave que nos interessará aqui. Com ela, Gramsci expressa, em boa conta, a importância das massas camponesas do Sul da Itália nas definições de rumos e posições de um possível regime socialista na península, além de destacar a relação que os estratos intelectuais podem estabelecer com a classe dominante.
O texto de Gramsci é, em seu primeiro sentido, uma resposta aos problemas que o partido socialista (PSI) enfrentava ao não considerar, em alguma escala, a questão meridional como um problema político e nacional da Itália. Seu texto inicia com uma caracterização das “fórmulas mágicas” imaginadas pelos jovens de Turim “que conhecem perfeitamente, em suas linhas gerais, o problema meridional” (GRAMSCI: 405, grifos do texto).
Portanto, não é à toa que o texto se inicia com a discussão da “fórmula mágica” que resolveria de maneira automática e instantânea a questão meridional. O “perfeitamente” e as “linhas gerais” grifados pelo autor apontam especialmente para o erro de escala em que os “jovens” turinenses, dado o seu “despreparo e diletantismo superficial”, teriam incorrido na avaliação da questão agrária na história e na política italianas.
A “fórmula mágica”, na análise de Gramsci, revela este erro de análise, ao resolver, pela simples repartição do latifúndio entre os trabalhadores do campo, a ação que deveria ser comandada a princípio pelo proletariado das fábricas; ao contrário, para Gramsci, se houvesse uma fórmula para a Itália, ela recairia sobre o que há de mais essencial na definição da questão: a necessidade de composição de uma aliança entre o campo e a cidade, a fim de afastar a burguesia do poder do Estado.
Se os jovens turinenses estavam corretos na divisão do latifúndio entre os trabalhadores do campo, não estavam, de igual modo, conscientes de que essa ação não se daria apenas enquanto comando e orientação da sua classe operária urbana, porém deveria vir acompanhada e até mesmo sustentada por uma aliança que levasse em conta a ação conjunta dos trabalhadores do campo. A importância dessa aliança e a guerra de posições que nela repercute constituiriam, esta sim, uma “fórmula mágica”, da qual os jovens turinenses teriam se aproximado, sem, contudo, saber ao fundo o seu sentido.
[...] o que importa observar aqui é que o conceito fundamental dos comunistas turinenses não era a ‘fórmula mágica’ da divisão do latifúndio, mas a aliança política entre os operários do Norte e os camponeses do Sul, com o objetivo de afastar a burguesia do poder de Estado (GRAMSCI: 407).
Sob a direção do proletariado, a revolução iniciada nas fábricas, a partir da tomada de poder dos operários, deveria ser estendida, também, até o campo, por meio não apenas de uma divisão da terra entre os trabalhadores do Sul, mas enquanto aliança operário-camponesa, que constituiria uma frente nacional dos setores “subalternos”. A concepção de uma “hegemonia do proletariado” somente poderia reivindicar este título se estivesse atenta para esta específica questão de classe na Itália, para a aliança que deveria ser feita entre os seus estratos, entre este elo subalterno do campo com o operário da cidade.
A questão meridional diz respeito, então, ao “sistema de alianças de classe que permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora” (GRAMSCI: 408). Este constitui, para Gramsci, o cerne da questão meridional, uma vez que a ação do proletariado de fábrica, se realizada descolada da adesão e da formação de um consenso com aquele do campo, poderia ser falha na conquista do poder e na tomada do Estado pela sua classe.
A conquista da “hegemonia proletária” deveria ser buscada não apenas nos setores operários que firmam a sua luta política nas fábricas, mas também no interior daqueles grupos que, na história da Itália, poderiam ser (e não raras vezes o foram) cooptados pelo Estado e pelo poder da burguesia.
Avalia Gramsci, neste sentido, que a classe dirigente não governa sem o apoio dos camponeses e dos intelectuais, o que torna a conquista do Estado uma luta a ser travada não apenas no interior das fábricas, porém, de igual via, nas distintas esferas da cultura e da sociedade. Ao invés de desprezar e dar reduzida atenção às demandas camponesas ou ao papel do intelectual na história italiana, a classe dirigente, composta pelo proletariado urbano, deveria considerar e granjear a adesão de uma maioria desses grupos para que pudesse melhor articular a sua luta contra o poder burguês. O que diz Gramsci com isso, em um mesmo sentido, é que a ação das fábricas deveria ser replicada em ações no campo no Sul da Itália e na cultura representada pelos intelectuais.
A tomada do Estado, como exemplo dessa sociologia, implicaria uma guerra de posições que envolvesse não apenas Estado e classe operária, mas também os outros estratos sociais que historicamente laboraram conjuntamente com a burguesia e a classe dominante para a conservação do poder. Somente lidando com essa complexidade da luta social é que o proletariado poderia se tornar a classe dirigente e substituir o poder burguês, ao se pensar “como operários membros de uma classe que tende a dirigir os camponeses e os intelectuais, de uma classe que só pode vencer e construir o socialismo se for ajudada e seguida pela grande maioria destes estratos sociais” (GRAMSCI: 416).
Assim o autor demonstra na sua análise de conjuntura — que, não obstante o afastamento do tempo, ainda guarda alguma reserva de sentido, se for do nosso interesse compreender as democracias contemporâneas — que a burguesia percebeu que não mais poderia governar isoladamente, por uma ditadura “exclusivista, violenta e direta” (GRAMSCI: 417). Para governar, a classe dominante deveria mudar sua estratégia e governar em blocos de classes.
No novo século [Gramsci se refere aqui ao século XX], a classe dominante inaugurou uma nova política, de alianças de classe, de blocos políticos de classe, ou seja, de democracia burguesa (GRAMSCI: 417).
Destarte, acompanhando esta história de alianças, o sindicalismo na Itália nasce contra o regime solitário da burguesia no poder, forçando, no Estado, a entrada de outras demandas e estratégias políticas que não fossem de interesse estritamente burguês. Nessa senda aberta, porém, aparecem os intelectuais, estes desempenhando um importante papel na criação do sindicalismo italiano, atuando como intermediários sociais entre o Estado e os proprietários agrários. Isto daria a eles um lugar de importância para a conquista desse mesmo Estado. De fato, os estratos intelectuais compõem um importante setor para a definição da guerra de posições, uma vez que ocupam a maioria dos cargos da burocracia estatal, funcionando, além disso, como intermediários entre o poder estatal e os pequenos e médios proprietários que têm aversão ao camponês trabalhador, como destaca o autor na sua refinada análise histórica.
Embora em sua maioria expropriados, os intelectuais na Itália estavam ligados aos interesses do campo, à política agrária e à questão da terra, ou seja, estavam, na cartografia da sociedade, entre o Estado e a classe subalterna. Esta aproximação do poder, experimentada pelos intelectuais meridionalistas, teve, contudo, uma outra repercussão: levou ao fortalecimento do poder burguês, em detrimento da mobilização da ação proletária. Neste sentido, indica Gramsci, a institucionalização das ações operárias, tivessem sido elas provenientes do campo ou das cidades, levada à frente pelo Estado, “através da ação dos deputados operários, através da subordinação do partido político operário à política governamental”, empurraria os operários-sindicalistas e os intelectuais meridionalistas a uma desagradável posição na ordenação do poder (GRAMSCI: 421). Isto porque, como ressalta Gramsci, “o proletariado não mais existirá como classe independente, mas apenas como um apêndice do Estado burguês”.
Contudo, o caminho histórico que leva das cooperativas no campo para o sindicalismo operário-burguês e, por fim, deste para o corporativismo traça a perda de posição de vanguarda da classe operária na realização do seu plano socialista, incidindo, então, novamente, em uma democracia do tipo burguês, de bloco de classes, porém não mais sociais e sim políticas, alojadas no interior do Estado, nas instituições. Há uma grave crise de orientação aí, diria Gramsci. De fato, essa posição insustentável do proletariado sindical é observada por Gramsci. Na luta por uma democracia social, “o corporativismo de classe terá triunfado, mas o proletariado terá perdido sua posição e sua função de dirigente e de guia. Será visto pelas massas dos operários mais pobres como um privilegiado e, pelos camponeses, como um explorador igual à burguesia, já que a burguesia — como sempre faz — apresentará às massas camponesas os núcleos operários privilegiados como a única causa dos seus males e de sua miséria” (GRAMSCI: 421).
Ainda na caracterização do estrato intelectual meridional, Gramsci aponta para a identidade que este setor apresentava com o clero, identificado este mais como homens de negócios e usura do que religiosos ao pé do altar.
Por três elementos — quais sejam, a participação dos intelectuais na burocracia, a relação de distinção e demagogia que estabelecem com os trabalhadores camponeses e a sua atuação, no caso do clero, mais como burgueses do que semeadores de fé —, Gramsci destaca a importância desses dois estratos na definição da revolução socialista.
Somente ganhando a adesão desse partido intelectual, que não representa a grande propriedade, mas também não deixa de constantemente assentar-se na tênue fronteira entre a sua situação de cultura e a situação do camponês mais subalterno, é que a classe proletária poderia ganhar e determinar a sua posição na luta para o poder.
Também os critérios geográfico e social determinariam alguma análise a respeito dessa sociologia política na Itália. Dada a desagregação social que caracteriza o cenário sulista, os intelectuais seriam os agentes intermediários entre o poder estatal e a propriedade agrária. Convocá-los a uma luta comum, juntamente com os setores mais subalternos da Itália, consistiria em travar uma guerra de posição entre as classes dominante e a dominada. A importância do estrato intelectual como partido político de uma elite, que sabe ser reacionária quando precisa, mas também se permite usar da política quando se faz necessário, se deve ao desempenho de um papel de articulação entre um Sul desagregado politicamente e um Estado centralizado e dirigido por uma aliança burguês-sindical. A ação revolucionária deve incidir precisamente sobre esse nó que ata as massas camponesas ao Estado — os intelectuais —, dada a sua desarticulação como movimento político, de modo a constituir, naqueles, figura de relevância e peso na armação possível de um novo elo de classes.
“Intelectuais proletarizados”, portanto, seriam indispensáveis para combater a hegemonia da classe dominante no poder. Contudo, com olhar crítico, Gramsci adverte que “os intelectuais se desenvolvem lentamente [...] por causa de sua própria natureza e de sua função histórica”. O problema, desse modo, continua exposto: considerando o fato de que a formação de um partido de ideias não se faz imediatamente, ou seja, não se constrói da noite para o dia, mas, antes, parece estar dilatada num tempo lento de organização de classe e de projeção da vontade política, como fazer com que a classe proletária, ainda assim, tivesse condições de lutar pela conquista de poder, sem abrir mão desse estrato intelectual e do campo que a ele se ligaria? A este respeito, Gramsci não desconsidera os intelectuais (como Piero Gobetti), que, apesar de não terem lutado diretamente em nome da classe proletária, prestavam a ela um importante serviço, já que, como continua o autor:
[...] é também importante e útil que, na massa dos intelectuais, ocorra uma fratura de caráter orgânico, historicamente caracterizada; ou seja, que se crie, como formação de massa, uma tendência de esquerda, no significado moderno da palavra, isto é, uma tendência orientada para o proletariado revolucionário. A aliança entre proletariado e massas camponesas exige esta formação” (GRAMSCI: 434).
Na sua análise da questão meridional, o partido proletário italiano deveria, portanto, reconhecer na aliança operário-camponesa um agente de luta e desarticulação do intelectual daqueles seus compromissos reacionários de classe, conquistando-o em favor de uma outra forma de organização da classe dirigente no poder.
O êxito da ação revolucionária estaria, assim, reservado para a “capacidade de desagregar o bloco intelectual que é a armadura — flexível, porém extraordinariamente resistente — do bloco agrário” (GRAMSCI: 435). Sem sombra de dúvidas, A questão meridional é aí tornada, na sua intenção mais original sobre a sociologia de classes, um artigo presente, ainda que póstumo à sobrevivência do seu autor.
Marcelo Diana é doutorando em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (antigo Iuperj).
Gramsci
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