terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Os Direitos Humanos na Execução



Dimas Macedo

A leitura de Mazelas da Casa de Detenção (Rio, Imprelage, 1968), da desembargadora Auri Moura Costa, sobre o funcionamento do sistema penitenciário, mostra-nos que a problemática dos Direitos do Preso é, na verdade, muito mais crucial do que a fome, o desemprego e outras misérias crônicas que campeiam nos países periféricos e ameaçam a sobrevivência das camadas sociais de baixa renda.

Trata-se de registro da sua experiência de Juíza das Execuções Criminais em Fortaleza. Ela própria, visitando quase que diariamente a antiga Casa de Detenção da Rua Senador Jaguaribe, chegou à desalentadora conclusão de que é complexo o equacionamento da questão penitenciária.

Mergulhando nos porões da marginalidade do velho presídio, ali identificou seres humanos desfrutando condições subumanas, violados na sua integridade física e moral, escravizados no desempenho de seu próprio trabalho e condenados a penas tão infamantes e absurdas quanto aquelas impostas pelo homem aos seus semelhantes nas atrasadas civilizações da idade antiga.



Mazelas da Casa de Detenção não é, contudo, a constatação de um caso isolado da vida carcerária brasileira. O livro apenas destaca um exemplo daquilo que realmente existe e que é inerente aos mecanismos da execução da pena, no Brasil, onde o preso é comumente tratado como um animal irracional, como um ser sem direitos a direito algum. 

Apenado pela justiça criminal unicamente no que diz respeito à sua liberdade de locomoção, no cárcere todos os seus demais mecanismos de liberdade começam a sofrer violentas restrições, em que pese à vigência daquele princípio constitucional que assegura respeito aos direitos do preso.

Sabemos que é monstruosa a superpopulação das nossas prisões; sabemos que, nem sempre, é dado ao preso conhecer as condições sob as quais terá que cumprir sua pena; sabemos ainda que não existem nos presídios condições técnicas suficientes que possibilitem à sua administração e aos próprios detentos atualizarem-se para reivindicar aos Conselhos Penitenciários ou ao Juízo das Execuções Criminais o tão cristalino direito ao livramento condicional.

Nestas condições, vive o sentenciado uma existência torturada, sem direito a voz e sem direito a ouvir e a ser ouvido, servindo muitas vezes de cobaia a experiências científicas arriscadas, como lembra Heleno Cláudio Fragoso, em O Direito dos Presos (Rio, Forense, 1980), isto para receber ínfimas recompensas financeiras.

E se a essas experiências se submete é porque o direito à remuneração do seu trabalho lhe foi usurpado, é porque o direito ao seu próprio trabalho lhe foi criminosamente negado pela direção da casa de detenção.

E como menciona Heleno Cláudio Fragoso, na fonte acima referida, é igualmente descabida a restrição que comumente se faz à liberdade de ação política do preso, vez que a restrição aludida, no caso brasileiro, deverá incidir apenas sobre condenados a penas privativas de liberdade e não sobre o direito de qualquer pessoa recolhida à prisão.

Outra forma bárbara de violação de direito imposta pela direção dos estabelecimentos penitenciários é a censura à correspondência, a jornais, revistas e outras publicações vendidas livremente. Esta arbitrária discriminação, como se observa, põe em risco o artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal, que preceitua que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas”.

No que tange à disciplina interna dos presídios, e à sua segurança, “os regulamentos são amplos, vagos, arbitrários e desnecessariamente humilhantes e restritivos” aos direitos dos sentenciados, sendo a autoridade da sua guarda e vigilância sempre mantida, “independentemente da veracidade das suas denúncias”. É o que nos ensina Heleno Cláudio Fragoso (O Direito dos Presos, 1980), garantindo-nos que “as penas disciplinares impostas podem ter graves consequências, influindo na concessão do livramento condicional”.

Essa tormentosa questão, ao que penso, seria resolvida, através da introdução do princípio da reserva legal: a lei (e não o regulamento) deve definir as faltas e fixar a punição, de forma a que fique bem claro o que é proibido e o que é permitido. 

Na legislação penal brasileira, o direito ao trabalho aparece como parte do tratamento ou dos programas de reabilitação do condenado, porém na prática, segundo os especialistas, o assunto é tratado de forma muito diferente, ainda que o art. 29, parágrafo 1º, do Código Penal, afirme que “o sentenciado fica sujeito ao trabalho”.

Mas se ao condenado é reconhecido o direito ao trabalho, dificilmente receberá ele salário justo. Não que o salário não lhe seja destinado pelos órgãos superiores de administração do sistema penitenciário, mas porque termina nas mãos de uns espertalhões da administração do presídio, ou de falsos funcionários que gravitam na marginalidade das casas de detenção ou de instituições similares, tudo como suficientemente comprovado por Auri Moura Costa, no seu livro acima referido.

E “se o condenado é obrigado ao trabalho e se por ele recebe remuneração ínfima, que a ele não corresponde, é óbvio que o trabalho é castigo e se integra ao esquema punitivo”, não definido em lei anterior às medidas de execução aplicadas.

Embora sendo evidente a distinção entre suspeito, acusado e condenado, na prática não se tem levado em conta essa diferenciação. E como muito bem assegura Dalmo de Abreu Dallari, em O Renascer do Direito (São Paulo, José Bushatsky Editor, 1976):

“Há casos em que o simples suspeito recebe o tratamento mais rigoroso que se dispensaria ao condenado, ocorrendo casos em que a mera suspeita desencadeia uma repressão mais drástica do que aquela que podia resultar da mais pesada condenação”.

E mesmo ainda não tendo sido acusado, o cidadão comum, em face da sua condição de miséria econômica ou da sua origem racial, termina conduzido ao Juízo Criminal, envolvendo-se em processos kafkianos. E ainda assim lhe é negado o direito de escolher a sua própria defesa, que lhe é imposta, no caso, em atenção ao seu estado de pobreza, isto para que se cumpra a velha dicotomia – justiça dos pobres versus justiça dos ricos.

E a problemática da instrução criminal assim posta, como se mostra evidente, já desautorizava, por assim dizer, a vigência do parágrafo 14, do art. 153, da Constituição de 1969, como desautoriza (agora) a vigência do artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, que assegura aos presos o respeito à sua integridade física e moral.

O Estado, como muito bem salienta Roberto A. R. de Aguiar, em Direito, Poder e Opressão (São Paulo, Alfa-Ômega, 1980), “não pode torturar, mas ele mesmo, em busca da eficiência repressiva, rejeita suas próprias normas e prática e que o eufemismo oficial houve por bem denominar interrogatórios severos”.

A confissão penal no Brasil, ainda hoje, tem sido arrancada do acusado, em diversos momentos, por meio de eficientes instrumentos de tortura, sem que se permita ao mesmo esboçar qualquer argumento de defesa, segundo o magistério de vários penalistas.

Assim sendo, não raras vezes termina confessando a autoria de um crime que não cometeu e pelo mesmo acaba sendo apenado e recolhido às garras do sistema penitenciário, que a partir de marchas e contramarchas sobre a pessoa do preso, termina concorrendo para a desumanização de um ente que no caso somente estaria necessitando de ser humanizado.

Especialmente no que tange à problemática da execução das penas, embora os penalistas sejam acordes em afirmar que para a solução da mesma não existe solução à vista, no seu brilhante relato sobre a perda dos direitos dos presos, Heleno Cláudio Fragoso adianta-nos as seguintes proposições: 

a) que “os presos conservam todos os direitos que não foram afetados pela perda de liberdade”; b) que “constitui princípio fundamental em matéria de execuções criminais o de que só através da lei podem sofrer restrições os direitos de liberdade que os presos conservam e que à Constituição Federal assegura a todos”; c) que “devem ser instituídos órgãos independentes da administração penitenciária com poderes para receber queixa e reclamações dos presos e atuar junto à administração”; e d) que “todo esforço deve ser feito no sentido de afastar da prisão o criminoso primário e de bons antecedentes”; argumentando, por fim, que “o limite máximo de todas as penas impostas deve ser fixado em 30 anos para os efeitos do livramento condicional”.
 Dimas Macedo  
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