Erosão do Estado de Direito |
“A Constituição está vigente, as normas estão vigentes, mas não há garantia de que elas sejam efetivas, na medida em que inclusive dentro do Poder Judiciário há cada vez mais interpretações bastante flexíveis destas regras, em decorrência da politização do Judiciário”, alerta o professor.
Entrevista especial com Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
“O momento é muito grave”, resume Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo ao avaliar a conjuntura nacional, em entrevista por telefone à IHU On-Line. O professor caracteriza como golpe o processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff, e, em seu entendimento, reside aí a chave dos problemas mais sérios que o país tem enfrentado. “Esse fato é muito grave porque acaba alterando a nossa normalidade democrática e age para que isso aconteça criminalizando a política, mais especificamente alguns atores políticos em um contexto em que o nosso sistema político se encontra muito fragilizado e vinculado a práticas irregulares, mas que são históricas, de relação entre os setores público e privado, principalmente para o financiamento de campanhas. O sistema político, diante dessa fragilidade, é muito suscetível a um processo de criminalização e de judicialização da política”, alerta.
De acordo com o pesquisador, esse cenário contribui para o acirramento das polarizações políticas que começaram a ser construídas a partir da leitura midiática das jornadas de 2013. Na avaliação de Azevedo, as manifestações tiveram seu significado cooptado. “Em um primeiro momento, pareceram mobilizações democráticas que mostravam a fragilidade da representação política, a qual não contemplava movimentos e demandas importantes que começavam a emergir naquele período. No entanto, essas manifestações foram capturadas, talvez em virtude também desse oligopólio midiático, pois a narrativa que foi construída em torno delas acabou por direcioná-las e caracterizá-las como movimentos contra a corrupção. A partir daí houve a articulação desses protestos com a Operação Lava Jato e todos os fatos que acabaram se voltando contra o governo Dilma, que até então tinha altos índices de aprovação”, analisa.
Para o professor, os desdobramentos da trajetória desde 2013 até o andamento do processo de impeachment provocaram o que ele denomina de “erosão do Estado de direito”. Esse processo se traduz em “uma situação em que a Constituição está vigente, as normas estão vigentes, mas não há garantia de que elas sejam efetivas, na medida em que inclusive dentro do Poder Judiciário há cada vez mais interpretações bastante flexíveis destas regras, em decorrência da politização do Judiciário, que assume uma responsabilidade que não é dele de arbitramento de questões que envolvem o sistema político e que acaba tomando partido nesse âmbito de uma mudança política por fora dos mecanismos institucionais e democráticos”.
Nesta quinta-feira, 19-05-2016, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo participa do debate “Brasil, e agora, para onde vamos?”, às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, especialista em Análise Social da Violência e Segurança Pública, mestre e doutor em Sociologia pela UFRGS. Realizou pós-doutorado em Criminologia pela Universitat Pompeu Fabra, em Barcelona, e pela Universidade de Ottawa, no Canadá. Atualmente é professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, atuando nos Programas de Pós-Graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais. É coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS. Escreveu e organizou vários livros, entre os quais destacamos Crime, Polícia e Justiça no Brasil (São Paulo: Contexto, 2014), Relações de Gênero e Sistema Penal - Violência e Conflitualidade nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011) e Informalização da Justiça e Controle Social (São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2000).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz do momento sociopolítico e econômico do Brasil? Que pontos destacaria como mais preocupantes neste contexto?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Eu gostaria de começar destacando que o momento é muito grave. Estamos vivendo uma situação em que se pode caracterizar o processo político em curso como um golpe. Essa caracterização envolve o fato de que a prática de um golpe não é obrigatoriamente por meio da violência, como foi a história dos golpes na América Latina, em que o exército assumia um protagonismo e acabava alterando o jogo do sistema político. Nesse momento, o que nós temos é o uso de mecanismos institucionais para a deposição do governo, mas para isso se utilizando de um processo de impeachment sem base legal, em que a razão apontada é a prática de crime de responsabilidade fiscal pela presidente da República.
Isso só se torna viável na medida em que há uma maioria constituída de 2/3 da Câmara, como também do Senado, em oposição ao governo. No entanto, o fato de haver uma maioria contrária ao governo não significa que haja a possibilidade de que esse governo seja destituído, pois nós não estamos em um regime parlamentarista. O que acontece então é que essa maioria adota uma justificativa que não tem fundamentação jurídico-legal, que é a prática de pedaladas fiscais, para a caracterização do crime de responsabilidade e a destituição da Presidência.
Esse fato é muito grave porque acaba alterando a nossa normalidade democrática e age para que isso aconteça criminalizando a política, mais especificamente alguns atores políticos em um contexto em que o nosso sistema político se encontra muito fragilizado e vinculado a práticas irregulares, mas que são históricas, de relação entre os setores público e privado, principalmente para o financiamento de campanhas. O sistema político, diante dessa fragilidade, é muito suscetível a um processo de criminalização e de judicialização da política.
Essa prática não seria de todo inadequada, há casos em outros países como a Itália, onde houve a Operação Mãos Limpas, em que isso de alguma forma aconteceu. No entanto, o que diferencia esse momento, no Brasil, de outros países é uma extrema seletividade na escolha dos atores que serão criminalizados e na divulgação seletiva de escutas telefônicas e delações premiadas, com o claro objetivo de fragilizar o governo, mesmo considerando-se que o mesmo, especialmente a presidente Dilma, não tem responsabilidade por nenhum ilícito ou por qualquer uma das questões que estão sob o crivo da Operação Lava Jato.
Então, essa criminalização e judicialização da política, de alguma forma, também se caracterizam como uma politização da justiça. Ou seja, o Poder Judiciário adota uma perspectiva parcial, não como um todo, mas aquele setor que trata especificamente da Lava Jato. Tal esfera assume uma parcialidade que se articula com um grande contexto de oligopolização midiática, o qual também vai participar da divulgação desses vazamentos, dando grande destaque para os fatos que ocorrem dentro dessa operação. Tudo isso com um claro objetivo, que vem se desenrolando desde o processo eleitoral de 2014, de fragilizar e até de destituir o governo eleito.
Aí chegamos ao ponto culminante desse processo com as votações do impeachment na Câmara e no Senado, o qual segue adiante a partir de uma ampla mobilização social resultante dessa ação política da justiça articulada com a mídia e da constituição de uma maioria em torno da oposição ao governo formada muito em virtude de interesses que não são os mais republicanos.
Todos esses acontecimentos acabam nos levando a esse contexto em que estamos, frente a um golpe, isto é, uma quebra da normalidade democrática com a destituição da presidente eleita democraticamente e a tentativa de colocar no lugar dela um governo constituído por grupos que estavam na oposição e foram derrotados no processo eleitoral e que especialmente adotam um programa político que foi derrotado nas urnas. Tudo isso confere gravidade a esse momento do Brasil em termos de uma tentativa de implementação de um programa político com características neoliberais, mesmo quando não há respaldo popular para que isso aconteça.
IHU On-Line – De que forma interpreta o clima de polarização política que se acentuou nos últimos meses no país? Que consequências esse comportamento pode gerar na sociedade?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Essa polarização vem desde o processo eleitoral de 2014, quando houve esse acirramento. Voltando a 2013, podemos lembrar que em maio daquele ano o governo Dilma tinha em torno de 80% de aprovação popular, mas no mesmo período há o início das manifestações do Movimento Passe Livre - MPL, em São Paulo, as quais depois se estenderam para outros Estados, onde houve confrontos com a polícia e a partir daí mais pessoas acabaram aderindo às mobilizações.
Em um primeiro momento, pareceram mobilizações democráticas que mostravam a fragilidade da representação política, a qual não contemplava movimentos e demandas importantes que começavam a emergir naquele período. No entanto, essas manifestações foram capturadas, talvez em virtude também desse oligopólio midiático, pois a narrativa que foi construída em torno delas acabou por direcioná-las e caracterizá-las como movimentos contra a corrupção. A partir daí houve a articulação desses protestos com a Operação Lava Jato e todos os fatos que acabaram se voltando contra o governo Dilma, que até então tinha altos índices de aprovação.
Desse momento em diante o país começa a viver a polarização, porque a oposição se dá por conta de que há espaço para uma vitória eleitoral no pleito seguinte e vai se utilizar de todos os expedientes possíveis para que isso ocorra. vai deixar de lado, inclusive, algumas questões que são importantes para um contexto de debate democrático, como o reconhecimento dos méritos do que vinha sendo feito até então.
Apesar desse cenário, o governo se reelege em 2014. Dilma consegue uma vitória eleitoral a partir de uma pequena margem de votos e isso faz com que desde aquele momento a oposição, representada pelo senador Aécio Neves, não reconheça o resultado eleitoral. Lembrando que o PSDB entra com uma ação questionando a própria apuração das eleições e, portanto, a legitimidade do pleito, mas sem sucesso.
Articulação para o impeachment e a crise
Logo em seguida começa a articulação em torno da possibilidade do pedido de impeachment, e para isso vários argumentos foram sendo colocados ao longo do tempo, desde as questões que envolvem a responsabilidade fiscal, passando por elementos vinculados à operação Lava Jato, mas em nenhum dos casos houve a fundamentação jurídica necessária e, especialmente, a vinculação da presidente da República com quaisquer das ilicitudes apontadas.
Esse processo vai se arrastando ao longo de um período em que a oposição adota o discurso “de quanto pior melhor” e de que não há possibilidade de diálogo com o governo, sendo preciso barrar todas as suas iniciativas e aproveitar a primeira oportunidade que se abra para a destituição do governo.
Acrescenta-se a esse quadro dois outros fatores. Um deles é a crise econômica. O debate sobre isso é bastante complexo e envolve questões como:
- Em que medida há responsabilidade do governo pela condução da economia e, portanto, pela crise?
- Em que medida é uma crise mais ampla que afeta as economias no mercado global?
De qualquer maneira, o enfrentamento de uma crise exige um mínimo de unidade nacional para que medidas importantes possam ser tomadas. Essa unidade não existe, uma vez que há esse bloqueio, por parte da oposição, a qualquer iniciativa do governo para a superação das dificuldades econômicas.
Por outro lado, nós temos pela primeira vez no comando da Câmara Federal um deputado que, se teve vinculações anteriores com o governo por interesses particulares, acabou em algum momento rompendo essa ligação e capitaneando um movimento do chamado baixo clero da Câmara na tentativa de constituição de maioria contrária às iniciativas do governo.
Esse deputado está envolvido em denúncias de práticas ilícitas, que inclusive fizeram com que o Ministério Público Federal apresentasse denúncia junto ao Supremo Tribunal Federal a respeito das contas dele na Suíça, com milhões de dólares. Então, ele vai utilizar o próprio cargo e seu espaço como presidente da Câmara para barrar qualquer tentativa de apuração desses fatos e também para espezinhar o governo até o ponto em que acaba abandonando qualquer possibilidade de acordo com esse parlamentar.
A Comissão de Ética avança nas investigações que envolvem as práticas ilícitas desse deputado, que coloca em pauta o processo de impeachment, o qual até então estava engavetado aguardando os acontecimentos que foram transcorrendo.
Nova direita
Tudo isso leva a essa polarização política, que também tem em comum entre seus elementos a existência de grupos de uma nova direita, digamos assim. São grupos como o MBL, o Vem Pra Rua, o Revoltados Online, que vão pouco a pouco mobilizando setores importantes da sociedade brasileira, especialmente da classe média, descontentes com as políticas distributivas adotadas pelo governo desde o início da era Lula. Esses grupos assumem um discurso cada vez mais radicalizado, como se o Brasil fosse uma Venezuela e nós estivéssemos em uma situação de polarização política em torno de ideias comunistas, bolivarianas ou outra coisa do gênero.
Tais atitudes foram dificultando e criando cada vez mais obstáculos para um debate político racional e democrático, porque na verdade o que se cria em torno disso é uma mitologia sobre questões absolutamente descoladas da realidade, mas que são importantes e servem como justificativa para a existência dessa polarização política.
IHU On-Line – Este cenário polarizado pode ferir o direito à liberdade de expressão de algum modo? Por quê? Como?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Todo esse processo político que vem se desdobrando de 2013 para cá, e que vai se consubstanciando e se consolidando em torno da destituição da presidente da República sem que haja fundamento legal para isso, provoca o que eu tenho chamado de erosão do Estado de direito. Temos uma situação em que a Constituição está vigente, as normas estão vigentes, mas não há garantia de que elas sejam efetivas, na medida em que inclusive dentro do Poder Judiciário há cada vez mais interpretações bastante flexíveis destas regras, em decorrência da politização do Judiciário, que assume uma responsabilidade que não é dele de arbitramento de questões que envolvem o sistema político e que acaba tomando partido nesse âmbito de uma mudança política por fora dos mecanismos institucionais e democráticos.
Quando isso acontece, há uma fragilização geral do Estado de direito e isso chega inclusive a questões que envolvem, por exemplo, a violência policial. Então nós temos hoje uma situação de uma demanda por criminalização e por segurança pública, que também se relaciona evidentemente com o aumento da taxa de criminalidade, mas onde a opinião pública está cada vez mais aderindo à ideia de que as regras devem ser flexibilizadas para o combate ao crime. Quando essas regras são flexibilizadas nós não sabemos onde isso termina, pois podem ser afetados direitos e garantias individuais, que são absolutamente fundamentais na democracia.
Da mesma forma, no âmbito da opinião, o que temos neste contexto de polarização é a radicalização, muitas vezes até agressiva, dos níveis do debate. As redes sociais acabam facilitando esse processo, sendo veículo para expressão de forma até violenta em movimentos que muitas vezes estão voltados para a deslegitimação de opiniões divergentes. É uma espécie de caça às bruxas, ao estilo do macarthismo, contra o pensamento político de esquerda. Isso também tem acontecido dentro de universidades e escolas e tem afetado professores que trabalham especialmente no âmbito do debate sociológico e histórico, que vêm sendo acusados de fazer doutrinação marxista, entre outras coisas. Esses professores têm sido agredidos e atacados verbalmente em função de suas opiniões.
Portanto, há uma escala de intolerância em relação a opiniões divergentes, principalmente dirigida contra ideias de esquerda ou que têm como norte a crítica à desigualdade social, a defesa dos direitos humanos e de políticas de inclusão social e de combate à discriminação, e tudo isso vem sendo taxado como uma ideologia vinculada aos movimentos comunistas, aos países socialistas, como se houvesse relação direta entre tais ideias e essas posições ideológicas. Na verdade, por trás disso o que há é uma construção político-ideológica muito agressiva, às vezes até violenta, contra os resultados em termos de inclusão social que aconteceram no Brasil na última década.
IHU On-Line – O senhor mencionou, em algumas entrevistas, que no Brasil está acontecendo um processo de “politização da justiça”. Em que consiste esse processo? Que consequências acarretam para as esferas política e jurídica especificamente?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – O movimento de judicialização da política não é uma característica específica do Brasil, mas de um contexto mais amplo. Cada vez mais o sistema político é incapaz de resolver certas disputas e conflitos, os quais recaem para o arbitramento do Poder Judiciário. Esse fenômeno é natural na democracia, faz parte das atribuições do judiciário, que nas últimas décadas, no mundo todo, tem seu protagonismo em crescimento na administração desses conflitos que envolvem o sistema político.
No entanto, no caso brasileiro, principalmente no âmbito da Operação Lava Jato, nós podemos falar de uma politização da justiça no sentido de que não está necessariamente havendo um arbitramento de conflitos que vêm do sistema político, mas, pelo contrário, o Poder Judiciário se torna um ator do processo político incidindo sobre as escolhas eleitorais, as políticas públicas e as políticas de governo. Isso é muito característico nessa operação envolvendo outros atores como a Polícia Federal e o próprio Ministério Público Federal.
A partir da Polícia Federal há os vazamentos seletivos de determinadas provas que são coletadas nessa operação que é muito ampla e envolve a investigação de práticas antigas e também diferentes operadores políticos de diversas esferas. O que acontece é que o núcleo da Polícia Federal em torno da Operação Lava Jato se especializou no vazamento seletivo dessas informações coletadas no âmbito do inquérito policial e na amplificação delas por meio da mídia.
Da mesma forma, o juiz que comanda essas investigações, Sérgio Moro, tem uma elaboração teórica baseada na Operação Mãos Limpas, da Itália, sobre a qual ele já escreveu artigos em que sustenta a importância da articulação do Poder Judiciário com a opinião pública através da mídia, em situações como essa que envolvem casos de corrupção relevantes os quais colocam em jogo a própria normalidade democrática. Como forma de assegurar que as investigações sejam levadas à frente, se defende que o Poder Judiciário deve entrar no debate público através da mídia.
Quando isso acontece na Operação Lava Jato, podemos perceber que também há muita seletividade, ou seja, são delações que acabam sendo produzidas através de meios não necessariamente legais, ou constitucionais, como o excesso quem vem sendo utilizado na manutenção de prisões preventivas de determinados acusados. Essas prisões preventivas vão sendo levadas à frente até que o preso faça a delação e então tenha essa prisão flexibilizada, ou relaxada. Tais delações também acabam sendo divulgadas de forma bastante recortada, ou seletiva, em que geralmente são destacados elementos que podem de alguma forma fragilizar o governo, embora essas falas, em sua grande maioria, também envolvam operadores políticos que estão vinculados à oposição, porém sobre isso não é dada tanta ênfase, nem pelas divulgações da polícia, nem pela mídia.
O caso mais extremo dessa politização é o das escutas telefônicas, que de forma irregular envolveram a presidente da República e um escritório de advocacia do ex-presidente Lula, também implicado irregularmente. Quando essas escutas chegam às mãos do juiz Sérgio Moro, no mesmo dia são jogadas na mídia, sem nenhum crivo que avaliasse a legalidade das gravações, que já haviam sido suspensas do ponto de vista da ordem judicial que as determinou. Portanto, houve uma série de irregularidades que não foram consideradas e que produziram um efeito absolutamente impactante sobre o momento político que estamos vivendo.
Foi a partir desse fato que os movimentos de rua foram retomados e que a demanda pela destituição do governo ganhou novamente uma abrangência a partir dessas mobilizações, o que acabou impulsionando essa iniciativa capitaneada pelo deputado Eduardo Cunha na Câmara. Aí nós temos claramente a participação do Poder Judiciário nesse processo, a qual me parece diferente, por exemplo, da forma como o Supremo Tribunal tem se comportado, com uma prudência maior e um ritmo diferente daquele da mídia ou do próprio processo político para a sua tomada de decisões, o que acaba de alguma forma fragilizando a importância e o papel do Supremo em um contexto como esse. Deveria ser um papel mais efetivo no sentido de barrar justamente essa politização e essa entrada em cena de atores da justiça como partes do jogo, deixando de lado um papel mais adequado em um contexto democrático, que seria o de arbitramento dos conflitos que envolvem o sistema político.
O contexto de politização do judiciário é esse, não há mais como retroceder em relação a isso. Mas a expectativa é que pelo menos o Supremo Tribunal Federal possa cumprir um papel importante no sentido de impedir que se chegue a uma situação de quebra da normalidade democrática, atropelo à soberania popular do voto e destituição de um governo legítimo e democraticamente eleito.
IHU On-Line – Para que caminho está se direcionando a organização das forças políticas no país, com o afastamento do presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha e na iminência do impeachment da presidente Dilma?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Ainda há uma relativa indefinição em relação aos resultados de todo esse processo porque temos uma situação em que há uma maioria constituída, tanto na Câmara quanto no Senado, em torno da ideia da cassação do mandato da presidente Dilma e de uma recomposição política que passa pela assunção do vice-presidente Michel Temer e a composição de um governo que esteja integrado basicamente por ministros do PMDB, partido dele, mas também das demais forças políticas em torno do golpe, que envolvem o PSDB, que capitaneia a oposição, o Democratas, que também está vinculado ao PSDB historicamente desde o governo Fernando Henrique Cardoso, e outros partidos menores que deram sustentação inclusive aos governos Lula e Dilma, mas que a partir de um determinado momento acabaram se desvinculando, optando pela adesão ao movimento e processo de impeachment.
Como eu disse anteriormente, esse governo seria ilegítimo tanto pela forma como esse processo vem sendo conduzido, quanto pelo fato de que o programa apresentado pelo vice-presidente Michel Temer, chamado “ponte para o Futuro”, é claramente contrário à opção feita pelo eleitorado brasileiro na eleição de 2014, envolvendo privatização de patrimônio público, cortes de gastos sociais, perda de direitos trabalhistas e flexibilização deles em favor do capital, abertura da economia brasileira privilegiando relações comerciais com os Estados Unidos, e não mais de uma forma multilateral como vinha acontecendo até então com direcionamento aos países dos BRICS e os da América Latina, ou seja, uma série de medidas que não passaram pelo crivo do eleitorado, e quando isso aconteceu elas foram claramente derrotadas. Essa é a tendência do que se pretende colocar em prática nesses anos que restariam até uma próxima eleição.
No entanto, há alguns elementos que precisam ser considerados para avaliar se de fato esse movimento vai se consolidar e tal tendência vai ser colocada em prática. Por exemplo, no que envolve a ilegalidade flagrante de todo o processo de impeachment, na medida em que não há caracterização do crime de responsabilidade. As perguntas são:
- Até que ponto esse processo vai prosperar, já que há a demanda para que o Supremo Tribunal Federal se posicione sobre o mérito do pedido de impeachment?
- Terá o Supremo a possibilidade de barrar esse processo e afirmar o Estado de direito estabelecendo claramente quais são as balizas e os limites para um processo de destituição da presidente da República, ou não terá condições políticas para tomar uma decisão desse tipo?
Por outro lado, as mesmas acusações que pesam contra a presidente pesam também contra o vice-presidente. Ou seja, ele também praticou pedaladas fiscais, se essa for a motivação utilizada para caracterizar o crime de responsabilidade. Inclusive, da mesma forma há um pedido de impeachment contra o vice-presidente tramitando na Câmara Federal. Nesse sentido, se o que está sendo utilizado como motivação para a destituição da presidente é válido, essa razão deveria também deveria ser considerada para o vice-presidente.
Ainda, as acusações que pesam contra a presidente em relação ao seu financiamento de campanha e que estão sobre o crivo do Tribunal Superior Eleitoral, também pesariam sobre o vice-presidente, na medida em que eles formam uma chapa e que os recursos de campanha são comuns. Portanto, prosperando o impeachment e assumindo o vice, ele também estaria sob a possibilidade de um impedimento via um processo de cassação de mandato através do Tribunal Eleitoral.
Além disso, há contra o vice-presidente, e contra boa parte dos ministros que ele escolheu, acusações que também estão no âmbito da Operação Lava Jato. Há investigados, denunciados e réus entre os que estão no entorno dessa articulação política que formou esse novo governo. Haverá agilidade da justiça para que estas questões todas sejam levadas à frente, ou com a destituição da presidente Dilma o Poder judiciário mudará o ritmo da sua atuação e intervenção no processo político pela criminalização de alguns atores? Também é uma questão que ainda está em aberto.
De qualquer maneira, me parece que, pela caracterização que eu faço de um golpe em curso, de uma quebra da normalidade democrática, é preciso que em primeiro lugar tudo isso seja denunciado e apontado para a opinião pública, como vem sendo feito pela imprensa internacional, onde há um amplo consenso da gravidade do que está acontecendo no Brasil.
Espero que de alguma forma essa denúncia consiga e busque cada vez mais elementos para, dentro das instituições democráticas, especialmente do Supremo Tribunal Federal, encontrar mecanismos legais e institucionais para evitar essa quebra. Articulando com essas iniciativas que apostam nas instituições para a manutenção da integridade do processo democrático no país, é preciso também contar com as mobilizações sociais contrárias a esse processo, que são absolutamente importantes em torno da legalidade democrática. Não se trata da defesa do governo, na verdade há críticas à forma como o governo vinha sendo conduzido, no âmbito tanto das políticas econômicas, quanto das políticas sociais. Nesse momento no Brasil não se trata de defender a condução e proposta política do governo, mas sim da defesa da legalidade democrática.
O que tem acontecido no Brasil nos últimos meses tem mostrado a pujança dos movimentos em torno dessa ideia da legalidade democrática que garanta o Estado democrático de direito, a manutenção de conquistas sociais importantes das últimas décadas e a afirmação e consolidação da Carta de 1988, porque em boa medida é isso que está em jogo, ou seja, a garantia das perspectivas de um Estado democrático de direito voltado para a inclusão social, que foram abertas pela Constituição.
É a Carta Magna que está sendo atacada quando se leva adiante um processo político ilegal e ilegítimo de destituição da presidente da República, e mais do que isso, quando se põe em curso a composição de um novo governo com base parlamentar para a implantação de políticas claramente contrárias a tudo o que esse importante documento afirma em termos da garantia de direitos na esfera do trabalho, de direitos sociais e individuais, fundamentais para o exercício da democracia, que não é apenas a escolha eleitoral, mas também a possibilidade de exercer a cidadania e ter os direitos garantidos frente aos órgãos do Estado como um todo.
Por Leslie Chaves
Unisinos
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