domingo, 29 de maio de 2016

A ação política voltada para a transformação e a libertação só pode ser conduzida hoje com base na multidão”


Negri e Hardt – Multidão

A ação política voltada para a transformação e a libertação só pode ser conduzida hoje com base na multidão” – Hardt e Negri, Multidão, p. 139

A Multidão é a resposta de Negri e Hardt para o Império. Ou melhor, Antonio Negri e Michael Hardt veem na multidão o lado monstruoso que nasce dentro do Império e procura atravessá-lo. Tal conceito procura responder às manifestações políticas atuais: como pensar a política e as revoltas no mundo de hoje? Tal conceito nos faz olhar para o mundo à nossa volta e encontrar as linhas de fuga, as brechas, as potências, as novas singularidades que brotam do concreto rachado.


Espinosa foi o primeiro a falar de Multidão. Isto para se opor aos conceitos de povo e massa. O povo é um amontoado de indivíduos achatados pelo poder, é uma falsa unidade criada por dispositivos de sujeição. O contrato é feito entre o soberano e o povo, tornado unidade submetida. A massa, por sua vez, é temida como corpo irracional e perigoso. Sempre olhamos a plebe pelo olhar dos dominantes, que lhes imputa todo tipo de vício e baixeza. Mas a natureza é a mesma em todos.

Um povo impotente, amedrontado, não se reconhece como agente de sua própria vida, não percebe que está na base de todas as leis, instituições e modos de vida. Não há diferença entra a plebe e os dirigentes, todos eles precisam da arte de governar a si mesmo antes de governar os outros. A plebe está excluída não porque é incapaz, mas porque é colocada constantemente como incapaz, por uma relação de forças.

O povo é uno. A multidão, em contrapartida, é múltipla. A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, étnicas, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares” – Hardt e Negri, Multidão, p. 12

A essência da massa é a indiferença, a essência da multidão é a diferença. Na massa, no povo, as diferenças são submetidas a uma unidade formatada; já na multidão, o uno é submetido à produção constante da diferença. Negri e Hard enunciam três definições para a multidão:
 

Imanência: multidão como conjunto, multiplicidade de subjetividades, de singularidades, o indivíduo e conjunto de indivíduos é singular;
 

Classe: multidão como classe social não operária. Cada corpo é uma multidão e nenhum corpo jamais caminha só. Não é necessário negar o conceito de classes, a multidão engloba as classes sociais;
 

Potência: multidão como multiplicidade não esmagada pela massa, capaz de desenvolvimento autônomo e independente.

A multiplicidade da multidão não é apenas uma questão de ser diferente, mas também de um devir diferente. Um devir diferente daquilo que você é!” – Hardt e Negri, Multidão, p.444

A Multidão é o corpo não unificado, é um conjunto de singularidades que age, cria e transforma. Ela retoma a noção de multiplicidade como substantivo, uma diferença que se mantém diferença por sua própria potência de expressão. Corpo biopolítico coletivo que desenha novos modos de relação, novas formas de produção. Multiplicidade heterogênea, não hierárquica, centrífuga. Ela é composta de inúmeros elementos, cada um diferente dos outros, mas que encontram uma forma de se articular, se comunicam, colaboram, agem em e no comum. É importante dizer que a multidão não é uma festa, não é um “viva a diferença” pura e simplesmente, nem a constituição de uma unidade identitária. Tudo se dá entre, ela é o comum, o lugar onde a diferença se encontra e se articula.

As singularidades plurais da multidão contrastam, assim, com a unidade indiferenciada do povo” – Hardt e Negri, Multidão, p. 139


O desafio é, e sempre foi, agir em comum, mantendo as diferenças. O que impede que estas singularidades ajam em comum? Forças externas de submissão e desarticulação interna. A definição de Multidão: singularidades que agem em comum. Não há contradição aqui, porque não estamos baseados em uma lógica identitária. São fluxos, fluxos que se atravessam, singularidades que encostam suas superfícies e encontram um terreno em comum de ação, tal como operários e estudantes em maio de 68. Os autores propõe a hibridização, mestiçagem, nomadismo, contaminação, navegação. A Multidão representa assim um radical antiindividualismo político.

Não há necessidade de mediação entre as partes e o todo, porque as partes são a própria expressão do todo. A partes singulares não mais se submetem ao todo (a lei não é negativa), mas sim o todo que se submete agora às partes (a lei é regra de passagem, meio de potência). A liberdade não é mais o “império dentro do império”, o burguês dentro de seu apartamento fechado achando que pode fazer o que quiser. A liberdade negativa é a falsa liberdade “entre quatro paredes”. Espinosa desfaz esta noção trazendo um conceito positivo de liberdade, derrubando as paredes onde o homem se esconde para instituir um campo comum onde as singularidades não estão mais isoladas por finas camadas de superstição. Na busca pelo comum, as singularidades se encostam. A democracia é o resultado desta busca pelo comum. A democracia da multidão não é apenas desejável, mas tão possível quanto necessária.

A Multidão surge do interior da nova soberania imperial e aponta para além. A Multidão atua através do Império para criar uma sociedade global alternativa” – Hardt e Negri, Multidão, p. 17

A Multidão atravessa o Império, passa por dentro dele para sair do outro lado, vive dentro dele gerando constantemente o diferente. A Multidão é a linha de fuga, que faz fugir o próprio Império. É o êxodo, é a criação de um deserto. Ela é a alternativa viva que pulsa dentro do Império. Seus valores são as armas que utilizam nessa empreitada. Criatividade para se contrapor às subjetivações que criam corpos dóceis. Comunicação e cooperação para fazer rizoma com as novas formas de se relacionar. Auto-organização, não é mais necessário representar nem uma soberania para mediar as relações. A associações de indivíduos singulares cria a potência necessária para aumentar coletivamente a potência de cada um. Negar a contradição um/todos, eu/coletivo.

É extremamente difícil perseguir um enxame” – Hardt e Negri, Multidão, p. 89

Corpo da multidão não é uno, logo, a mente da multidão também não é una! O cérebro não é uno! O cérebro não é o centro de comando do corpo, ele é simplesmente um ponto de passagem de milhões e milhões de neurônios. O Uno, cérebro, não decide nada, um enxame de neurônios, uma multidão age exatamente da mesma maneira. Pensamos que esta coordenação trata-se de uma unidade, mas não. A inteligência do enxame está na comunicação. Uma inteligência coletiva toma corpo: no silício, na internet, nos livros em pdf que circulam sem preço nem códigos de barras. Como este blog conversa com outros blogs? Como entrar em contato com movimentos sociais? Como fazer o novo brotar da repetição e da monotonia de nossas vidas? E aqueles que estão isolados, podem ser convocados para o front? São todas perguntas que devem ser respondidas pela multidão. A Multidão é a liberdade tornada corpo.

É importante ter sempre em mente que um outro mundo é possível, um mundo melhor e mais democrático, e promover nosso desejo desse mundo. A multidão é um símbolo desse desejo” – Hardt e Negri, Multidão, p. 290


Razãoinadeguada

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