segunda-feira, 30 de maio de 2016
Ao passado, ao trabalho
Carla Rodrigues – Em tempos de vozes monocórdias e conversas monotemáticas, voltar ao passado ou trazer o que há de passado no tempo presente pode ser, no mínimo, um alívio ao mal-estar, senão da civilização, pelo menos da polarização. Rememorar foi o que fez o filósofo alemão Walter Benjamin quando escreveu Infância Berlinense – 1900, no momento em que previa um futuro sombrio para a humanidade e para si mesmo, a se confirmar com a sua morte prematura e com a solução final.
Benjamin faz um retorno nostálgico não apenas em direção a sua infância, mas a um tempo e a um mundo que não existiam mais. Seu olhar peculiar para o passado muitas vezes fez com que seus leitores o identificassem como um melancólico, tomando aqui essa categoria como uma indesejável incapacidade de completar um processo de luto. Seguindo mais com Benjamin do que com Freud, há melancolia porque não é possível incorporar completamente os objetos perdidos, o que faz deles sempre um pouco fantasmagóricos.
No Brasil, coube à filósofa Jeanne Marie Gagnebin a importante tarefa de ressignificar a melancolia no pensamento de Benjamin e recusar o senso comum de o pensador alemão seria um saudosista em busca do tempo perdido. Em seu livro mais recente – Limiar, aura e rememoração (Editora 34) –, ela trabalha com a ideia de que memória e rememoração funcionam em Benjamin como instrumentos políticos de resistência. Com isso, Gagnebin ajuda a pensar no que estamos vendo acontecer todos os dias: numa crise política, a disputa nunca é apenas em torno do presente, mas também ou principalmente sobre a história.
O passado nos assombra e se mostra em diferentes sintomas, o primeiro deles, o de que é possível produzir um mero esquecimento sem antes um trabalho de elaboração que passa, necessariamente, pela rememoração. Sem compreender a importância desse processo, falar do passado vira mero ressentimento, ao qual se responde com os piores clichês (a vida continua, bola pra frente, etc). Equiparado por Gagnebin a um “luto coletivo”, a elaboração de traumas históricos permitiria que “a vida em comum no presente seja possível”. Com o ocaso da vida em comum, os argumentos de Benjamin tais como lidos por Gagnebin ganham força.
Sobre o luto, Freud ensina que há três tempos para esse trabalho: no primeiro, nega-se a realidade da perda. Esta etapa me parece que já foi coletivamente vencida. No segundo momento, há uma necessidade de voltar-se para si mesmo, a fim de separar, no sujeito, aquilo que não foi perdido junto com o objeto. É uma fase difícil, na qual é preciso acreditar que aquele que morreu não levou consigo a vida do outro, na qual seria preciso acreditar que a tênue democracia brasileira não foi embora no fatídico 17 de abril. O terceiro movimento ainda estaria por vir. Se vier, será aquele em que o sujeito poderá se voltar para outros objetos de desejo, ou a outros projetos políticos. Se não vier, estaríamos de volta à melancolia de Benjamin, na qual só nos restaria pensar sobre a infância.
Se, como eu, você também já não suporta mais a crise política do presente, na sua pior dimensão de repetição de diferentes experiências de governos violentos e autoritários, passado que não cessa de nos assombrar, talvez seja preciso admitir a entrada em trabalho de luto por tudo de ruim que se apresenta. Nem tanto pelo que a crise tem de inédita na sua impressionante dimensão de ruptura institucional, mas sobretudo pela sua marca de repetição melancólica e infinita.
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Controversia
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