No
mesmo dia 4 de março que marcou o reinício da convulsão política e social nas
ruas do Brasil, motivado pela nomeação ainda inconclusa do ex-presidente Lula
para a chefia da Casa Civil, um fato que pode ter um peso histórico similar
às contendas político-partidárias passou, e continua a passar, despercebido
dos grandes debates: a sanção da Lei Antiterrorismo pelo governo Dilma. A
este respeito, publicamos entrevista com a advogada Camila Marques, da ONG
Artigo 19, um dos poucos atores sociais empenhados contra o projeto.
“O
projeto já saiu do Governo Federal com regime de urgência. Isso significou
que a sociedade não teve tempo hábil de debater sua necessidade e as
possíveis consequências de sua aprovação. Além disso, o projeto não passou
pelas comissões específicas e temáticas do Congresso, que tornariam possível
um debate mais aprofundado dos seus termos. Por todas essas razões, vemos a
aprovação da Lei Antiterrorismo com bastante preocupação”, explicou.
Trata-se,
sem dúvida, de um momento muito complexo na vida política nacional, pois
enquanto o governo Dilma vê seu processo de impeachment se encaminhar,
milhares de grupos e militantes de esquerda, dentro e fora do governismo,
bradam contra o que chamam de golpe e fazem juras à democracia. No entanto, a
aprovação dessa lei de histórico mundialmente reacionário simplesmente foi
ignorada nas manifestações de tais setores, o que acaba por ilustrar a imensa
confusão de valores e ideias que paralisa o Brasil.
“Por
mais que o texto aprovado traga algumas ressalvas de proteção aos movimentos
sociais e manifestantes, não podemos nos esquecer que quem vai aplicar a lei
é o judiciário. Ou seja, quem está envolvido na interpretação dessa lei é o
sistema de justiça: os promotores, procuradores e os próprios juízes. E
sabemos que o nosso sistema de justiça é muito conservador quando precisa
lidar com movimentos sociais”, advertiu Camila.
A
entrevista completa com Camila Marques, gravada em parceria com a webrádio
Central3, pode ser lida a seguir.
Correio
da Cidadania: Como você enxerga o projeto de lei 2016/2015, mais conhecido
como a Lei Antiterrorismo, que visa tipificar essa modalidade de crime aqui
no Brasil, algo inédito, sancionado pela presidente Dilma no mesmo dia da
polêmica nomeação de Lula para a Casa Civil?
Camila
Marques:
Nós da sociedade civil e movimentos sociais recebemos com bastante
preocupação a aprovação do projeto de Lei Antiterrorismo. O texto da lei é
extremamente vago e pode criminalizar movimentos sociais e manifestantes. Mas
para além dessas preocupações é importante dizer que o processo é marcado por
muitos abusos e arbitrariedade.
O
projeto já saiu do Governo Federal com regime de urgência. Isso significou
que a sociedade não teve tempo hábil de debater sua necessidade e as
possíveis consequências de sua aprovação. Além disso, o projeto não passou
pelas comissões específicas e temáticas do Congresso, que tornariam possível
um debate mais aprofundado dos seus termos. Por todas essas razões, vemos a
aprovação da Lei Antiterrorismo com bastante preocupação.
Correio
da Cidadania: Você acredita nas alegações das principais representações
políticas favoráveis ao projeto, algumas delas ancoradas em eventos como as
Olimpíadas ou mesmo em comparação a países estrangeiros que já tipificaram o
terrorismo? Ou você pensa que essa lei tem única e exclusivamente a intenção
de criminalizar movimentos e contestadores sociais de maior porte?
Camila
Marques:
Não digo que intenção tenha sido unicamente a criminalização dos protestos
sociais, mas acredito que o processo também foi composto por esse interesse.
Muitos organismos internacionais se manifestaram contrários ao projeto
brasileiro dizendo que era extremamente vago e poderia trazer prejuízos à
democracia. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a ONU se
manifestaram nesse sentido – e reiteraram depois de sua aprovação.
Temos
um cenário no mundo todo, mas principalmente no Brasil, com os grandes
eventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, que abrem brechas e
possibilidades para que se justifiquem a aprovação de medidas e leis muito
restritivas. Muitas vezes o Estado aprova leis de cunho intimidatório com
vistas a manter a segurança em questões relativas a grandes eventos. Mas o
que vemos é que em outros países já se deu o mesmo roteiro e o final não foi
benéfico para a sociedade, porque geralmente tais leis acabam usadas para
criminalizar os movimentos sociais internos.
Correio
da Cidadania: Mas não haveria nenhum tipo de perigo ao qual o Brasil
precisaria se precaver e que justifica de alguma maneira esse tipo de legislação?
Camila
Marques:
Um dos pontos que sempre falamos durante todo o processo, inclusive durante
sua apresentação lá no Congresso, é que o Brasil já possui normas e leis que
poderiam combater o terrorismo. Temos uma série de artigos no Código Penal,
em leis especiais e na lei que se refere a organizações criminosas. Casos de
terrorismo já poderiam estar enquadrados nesses tipos de legislação.
Portanto, defendemos que não havia a necessidade de uma legislação
específica, ainda mais feita às pressas, como a que foi aprovada agora.
Correio
da Cidadania: Considera plausível uma leitura enviesada dos aparatos de
governo e justiça, de modo a tratar de maneira discricionária uns e outros
protestos e manifestações?
Camila
Marques:
Com certeza não é de hoje, nem dessa década, que os movimentos sociais
brasileiros são criminalizados. Seja pelo Executivo, pelo Legislativo ou pelo
Judiciário. Assim, por mais que o texto aprovado traga algumas ressalvas de
proteção aos movimentos sociais e manifestantes, não podemos nos esquecer que
quem vai aplicar a lei é o judiciário. Ou seja, quem está envolvido na
interpretação dessa lei é o sistema de justiça: os promotores, procuradores e
os próprios juízes. E sabemos que o nosso sistema de justiça é muito
conservador quando precisa lidar com movimentos sociais.
Já
vimos em diversas decisões que leis são aplicadas de forma completamente
inadequadas contra movimentos sociais. Já vimos, por exemplo, o MST ser
processado pela Lei de Segurança Nacional. Vimos em São Paulo, em 2013, um
casal que participou de uma manifestação ser processado pela Lei de Segurança
Nacional, acusados de serem terroristas. Portanto, tal tipo de lei pode ser
usado como um instrumento intimidatório, além de interpretado de maneira
muito subjetiva e inadequada pelo poder judiciário.
Correio
da Cidadania: O fato de tal projeto vir do governo federal simboliza o que, a
seu ver, em relação ao PT e sua trajetória no poder central?
Camila
Marques:
Esse fato é bastante sintomático de que o Governo Federal, por meio de suas
muitas esferas e instrumentos, vem tentando sofisticar e trazer outros
instrumentos legais a fim de serem usados para barrar as críticas e a atuação
de movimentos sociais. Acredito que o Governo Federal deveria ter uma
preocupação triplicada no momento em que propôs o projeto, isto é, a respeito
de como poderá ser usado no futuro.
Correio
da Cidadania: Organizações como a Artigo 19 e similares têm aparecido com
maior frequência nos debates políticos e sociais do país. Acredita que também
acabam exercendo uma representação que antes cabia mais a partidos e
movimentos sociais mais enraizados? Você enxerga um vazio político que
inclusive explica a ofensiva conservadora em voga?
Camila
Marques:
Acredito ser muito necessária a existência de uma sociedade bastante diversa,
forte, capaz de incidir politicamente, pautar seus ideais, enfim,
sensibilizar o governo e construir políticas públicas de acordo com aquilo
que está sendo discutido de forma mais profunda com a própria sociedade.
Assim, acho saudável um ambiente de oposição e de críticas ao que está posto,
de forma muito forte e expressiva. É muito importante.
No
entanto, é claro que o Brasil vem passando por uma onda conservadora muito
grande e isso também é um ingrediente que amplia a necessidade de a sociedade
civil estar forte e enraizada na luta social para evitar retrocessos e
avançar nas suas pautas.
Correio
da Cidadania: Para onde acredita que esteja indo o Brasil, em mais um ano em
que a crise econômica, política e ética prossegue e o desemprego só aumenta,
em meio a projetos como esse que discutimos aqui?
Camila
Marques:
São tempos bastante difíceis em que vemos uma série de retrocessos nos campos
econômico e político. Vemos leis restritivas, inciativas que nos fazem voltar
às décadas de 60 e 70, além de os campos da saúde, educação e outros setores
sociais também experimentarem retrocessos.
É
um momento em que a sociedade precisa estar muito atenta para o que os atores
públicos estão fazendo. Para além disso, as crises política e econômica são
um passo para fomentar a participação da sociedade, a fim de podermos
participar de forma mais ativa da construção de políticas públicas e da
formação do Estado, de forma a realmente consolidar a democracia no Brasil.
Correio
da Cidadania: Seria uma mostra clara de que os governantes do país, de
variadas escalas, não tem projeto algum de satisfação das necessidades
essenciais da população?
Camila
Marques:
Concordo. Vejo que estamos seguindo um momento de desenvolvimento das cidades
e de políticas públicas muito militarizadas no Brasil. Independente do estado
em que a gente esteja, vemos a segurança pública ocupar um papel central nas
políticas públicas estaduais. E é uma segurança pública que vai muito no
sentido de criminalizar a população que já é marginalizada. Isso acaba por
aumentar o anseio punitivista que já existe na sociedade, ao invés de se
discutir, de fato, os problemas da segurança pública e pensar em meios mais
alternativos e eficazes de se resolver seus problemas.
Um
exemplo dessa falta de tato está na questão das manifestações de 2013, que
depois deram ensejo para que as Secretarias de Segurança Pública de São Paulo
e Rio de Janeiro pudessem se armar mais, aumentar e sofisticar seu aparato
repressor. O que vemos é que a crise, de forma geral, está aumentando a
militarização do Estado.
Gabriel
Brito é jornalista do Correio da Cidadania.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário