terça-feira, 1 de setembro de 2015

Dunker: Ressentimento de classe

Um Novo Mal Estar

A segregação que antes se fazia a distância e sem afetação direta, conforme a assepsia impessoal que vigora na violência silenciosa dos condomínios, agora perdeu a vergonha e proclama abertamente seu mal-estar contra essa proximidade indesejável dos pobres.

Christian Ingo Lenz Dunker
Em meu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma (Boitempo, 2015) examinei a transformação das formas de sofrimento no que chamei de Brasil pós-inflacionário. Meu interesse inicial era sumamente psicanalítico. Queria saber por que o percurso do tratamento de meus pacientes diferia tanto desde que comecei a atender, por volta de 1991, sem recorrer apenas às hipóteses mais óbvias e genéricas acerca do avanço da globalização econômica e seus efeitos pós-modernizantes. Para tanto escolhi descrever e analisar um sintoma social datável e concreto na realidade brasileira, a partir dos anos 1970, a que chamei de vida em forma de condomínio. Forma de vida quer dizer aqui uma maneira específica de organizar o desejo, a linguagem e o trabalho em torno de um determinado mal-estar. No caso dos enclaves residenciais brasileiros, esse mal-estar é composto por uma determinada percepção social de que o espaço público torna-se crescentemente violento e perigoso. Como exemplo da realização de um ideal de consumo para as classes médias e da aquisição de uma propriedade, o imóvel é antes de tudo o signo de uma conquista econômica. Mas uma forma de vida é muito mais do que isso; ela compreende também um capital cultural, representado por certo estilo de vida e de consumo, bem como um capital social, representado pelos contatos, alianças e partilhas que uma vida comum regrada, planejada e administrada dessa maneira permite. Um condomínio, não nos esqueçamos, é definido por muros. E estes não têm apenas a função defensiva de nos proteger; eles criam um senso de exclusividade: essa é palavra recorrente nos anúncios e propagandas de tais empreendimentos residenciais. Aliás, “empreendimento” é uma palavra que combina admiravelmente com a exigência neoliberal de que todos devemos nos individualizar como “empreendedores” de nosso próprio “capital humano”.


Além de muros, um condomínio caracteriza-se pela figura do síndico, ou do gestor, que é uma espécie de encarregado por zelar pelas regras criadas no interior desse estado de exceção, entre o espaço público e o privado. Como protótipo da figura do “gestor”, o síndico mantém um tipo de relação com a lei ao exercer sua autoridade, dissociando perfeitamente meios e fins. Cinicamente, ele administra os recursos sem se importar com a, agora na moda, “atividade-fim”. Um bom gestor em educação ou saúde pode ser alguém que desconhece completamente a prática de ensinar alunos ou cuidar de pacientes. Ele entende de repasses, de caminhos fiscais, de segurança jurídica, de desenho de negócios.


Um condomínio é estruturalmente semelhante a outros redutos cercados, como a prisão, o shopping center e a favela. Em todos esses espaços, que passaram a dominar a paisagem de nosso cinema e de nossa literatura nos anos 2000, vemos surgir síndicos e muros, mas também uma hipertrofia de regras, regulamentos e estatutos que exigem um contínuo processo de autoadequação. Em menos de trinta anos, o Brasil tornou-se um país estruturado como uma rede de condomínios. Na política, na economia, na religião, na cultura, na produção, o condomínio passou a ser uma espécie de gramática geral de nossas relações.


Isso permitiu entender por que nossos modos de sofrimento se alteraram no sentido de duas narrativas fundamentais. A primeira organiza nosso sofrimento em torno da hipótese de que sua origem está em um objeto intrusivo. Ou seja, há algo ou alguém que está a mais em nossa forma de vida e que, uma vez excluído, reequilibrará nossa experiência, aproximando-a do bem estar. Esse objeto pode ser concreto como o álcool, as drogas, mas pode ser também identificado com um “tipo de pessoa”: negro, pobre, homossexual, delinquente, e assim por diante. A fantasia do condomínio projeta que, excluídos os perigosos e formada uma sociedade reduzida de “iguais”, a felicidade será realizada. A segunda narrativa fundamental de sofrimento que o condomínio favorece gira em torno da ideia de que sofremos porque há um pacto malfeito, ou porque alguém não está cumprindo o pacto, ou ainda que esse pacto precisa ser refeito em novas bases, para que então o sofrimento seja tratado. Toda narrativa de sofrimento implicitamente indica como alguém pode e deve ser reconhecido, carregando, portanto, uma espécie de política sobre sua própria transformação. A hipertrofia dessas narrativas, objeto intrusivo e reconvenção de pactos, nos levou a um acúmulo de políticas que só sabem demandar duas coisas: mais muros e mais leis (ou muros mais altos e leis mais duras). A expansão da vida em forma de condomínio tornou o medo, que justifica os muros, e a inveja, que é o gozo secundário dos que estão dentro e fantasiam que os de fora querem entrar, nossos afetos políticos dominantes. 

Isso acentuou nossos padrões de consumo ostentatório e nosso antigo costume de que governar é manipular as regras do jogo conforme a máxima moral do síndico: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. Isso é compatível com a proliferação dos chamados novos sintomas: depressão e pânico, drogadição e anorexia. Os dois primeiros dependem do medo como uma espécie de excesso de interiorização da lei (“se algo der errado, o único culpado é você mesmo”) e os dois seguintes ligam-se ao exagero da lei como forma de invertê-la (“se a lei geral é a do consumo e da imagem perfeita, por que não levar isso ao grau máximo?”). A mutação crucial que está em jogo aqui é que passamos de sintomas gerados pelo conflito entre o proibido e o desejável para modalidades de sofrimento que oscilam da impotência à obrigatoriedade.



O poder perdeu a vergonha


Esse estado de coisas passou por uma abrupta transformação a partir do segundo mandato de Dilma Rousseff. É como se chegássemos a uma espécie de crise do padrão hegemônico da lógica de condomínio. E é na crise que conseguimos ver melhor do que uma forma de vida é feita. Emerge uma cultura que não confia mais na geografia da exclusão administrada e que, por outro lado, não se contenta apenas com “sinais de riqueza aparente”, sem uma boa história que os justifique. Há uma revolta contra o excesso de síndicos, percebida pela direita como corrupção e pela esquerda como envelhecimento de nossos esquemas de representação. 

Chegamos ao ponto terminal de nossa demanda por novos pactos, ainda que indecentemente orientados para a proteção de antigos privilégios. A segregação que antes se fazia a distância e sem afetação direta, conforme a assepsia impessoal que vigora na violência silenciosa dos condomínios, agora perdeu a vergonha e proclama abertamente seu mal-estar contra essa proximidade indesejável dos pobres. A antiga tolerância benevolente, com ou sem democracia racial, tornou-se ódio explícito. O poder perdeu a vergonha, em nome do medo e da inveja. Desaprendemos a lidar com a diferença, maltratada por anos de identidade artificialmente produzida intramuros.



Tudo isso pode ser atribuído a um desencadeamento preciso, ainda que sua causa seja completamente imaginária: a percepção social de que as classes que detinham o poder foram derrotadas nas urnas. A própria natureza condominial do poder é posta em questão. Segundo o mito que lhe corresponde, o poder entregue a Lula anos atrás, pelas classes médias, para um determinado experimento político, não foi devolvido. Isso só foi possível graças a esse estranho fenômeno brasileiro, sem equivalente europeu (como notou Jessé de Souza), que é produzir uma classe média que se entende como radical e revolucionária. Não é por outro motivo que nossos epígonos da direita de ocasião passem seu tempo a denunciar o espírito falsário, hipócrita e traidor dos sequazes do partido de Dilma. De certa forma, isso é tudo verdade. Desse ponto de vista, “as coisas não saíram como nós combinamos”; na hora de devolver o patrimônio, o síndico (ou a síndica) se apossou dele contra a vontade dos que se acreditavam donos do poder.


Portanto, o ponto nevrálgico desse novo mal-estar não é a luta de classes, mas o ressentimento de classe. A expressiva alteração de padrões de ganho e consumo que ocasionaram a passagem de milhões de pessoas da miséria faminta para a pobreza e da pobreza para a nova classe batalhadora não se fizeram acompanhar de uma alteração na distribuição dos bens simbólicos culturais e sociais. 

Lembremos que durante esses anos de crescimento, pela curva de Gini e confirmando a teoria de Thomas Piketty, os pobres ficaram mais ricos, mas os ricos ficaram ainda mais ricos. Lembremos que, para Karl Marx, a luta de classes traduz um antagonismo de interesses decorrente da divisão social do trabalho, entre os que possuem os meios de produção e os que vendem sua força de trabalho. O que temos no Brasil não é uma tensão entre capitalistas e proletários, ou uma rebelião dos desempregados pelo sistema, excluídos para fora dos muros das fábricas, mas uma espécie de ressentimento social generalizado. 

O raciocínio economicista tradicional considera que renda e padrão de consumo são suficientes para caracterizar a posição de classe. Segundo essa mesma simplificação, ascender de classe é diminuir sofrimento e no seu conjunto rumar para o estado de bem-estar social. Inversamente, cair de posição constitui o medo que rondará qualquer conquista de um indivíduo, grupo ou família. Ora, quando a nossa posição de classe se altera, ou é percebida como potencialmente alterável, isso é sempre uma ameaça ao nosso narcisismo, vale dizer, à nossa gramática de reconhecimento. Contra essa ameaça, mobilizamos formas mais simples de reasseguramento identitário, como que para confirmar que sabemos muito bem o que somos. Realizamos uma espécie de redução do tamanho do mundo, correlativa do engrandecimento do eu. Surgem assim dualismos simplificadores: negros ou brancos, ricos ou pobres, mulheres ou homens, nortistas ou sulistas, esquerdopatas ou coxinhas, inimigos necessários para nos lembrarmos, patologicamente, quem somos “nós” e onde estão “eles”.



Reencontramos aqui nosso par de afetos condominiais, o medo e a inveja. Mas agora eles podem ser pensados como motor para um ressentimento de classe, de gênero e de etnia. Essa segunda forma de ressentimento social decorre da percepção de que existem muros que não são solúveis por programas como Minha Casa, Minha Vida ou Bolsa Família. Existem muros que interiorizamos como condição de classe, diante dos quais a ascensão social pode trazer mais sofrimento, e não menos. Sigmund Freud descreveu esse estranho sofrimento daqueles que são arruinados pelo sucesso, ou seja, essa imperiosa força destruidora que se abate sobre aquele que alcança um êxito que ele mesmo não consegue reconhecer ou justificar como autêntico ou merecido. É assim que ele facilmente se cria situações, inconscientemente determinadas, para que a culpa por ter triunfado seja expiada por meio de autopunições. Dessa maneira, ele se reconcilia com os que ele teria deixado para trás em sua carreira de prosperidade, fazendo uma espécie de homenagem, imaginária e sintomática, às suas próprias origens.




Os iguais e o Outro


Uma terceira forma de ressentimento de classe acontece na vida em forma de condomínio. Nela, supostamente todos estão em condições de igualdade, ainda que artificialmente produzida, de tal maneira que as pequenas diferenças são insuportáveis. Por outro lado, as grandes diferenças são tornadas cada vez mais invisíveis, os funcionários entram pela porta dos fundos, usam uniformes, são substituíveis por empresas que administram e terceirizam os serviços domésticos de modo impessoal. Ora, para esses funcionários anônimos, é uma grande aspiração serem reconhecidos como “gente” e serem portadores de uma “dignidade moral” que está ligada ao tipo de sacrifício que a vida lhes impõe. Notemos que não está em jogo aqui apenas uma diferença de renda e capital entre patrões e empregados, mas a distância entre “ser alguém” que pode se dedicar ao autoenriquecimento, ao cultivo de si e ao bom gosto, em uma vida orientada pela busca do prazer, e a condição de “vida instrumental”, ou seja, daquele que deve se dedicar ao sacrifício em nome de uma aposta incerta em um futuro melhor, quiçá apenas para seus filhos. 

O ressentimento de classe avoluma-se dramaticamente quando os padrões de consumo, estimulados pelos governos lulistas, disseminam o acesso a bens simbólicos, antes marcas “exclusivas” da classe média, tais como viagens de avião, estudo universitário, aquisição de automóveis e moradia própria. A indeterminação relativa do valor distintivo de tais signos de classe inverte os polos condominiais da inveja e do medo. Aquele que pode viajar se ressente que não é realmente reconhecido como igual, e aqueles que garantiam suas identidades no clube restrito dos iguais se ressentem da perda do privilégio que antes tinham nos aeroportos, nas exposições de arte, nos círculos de consumo particular.


A quarta forma de ressentimento de classe, que podemos associar com a crise da lógica de condomínio, decorre da percepção, retrospectiva, de que nosso sacrifício se realizou em nome de algo em que não valia a pena acreditar. Ver o vizinho subir na vida pode ser tremendamente destruidor para os laços de classe que antes afirmavam a pertinência a uma mesma forma de vida. A tentação de interpretar que isso só foi possível porque de alguma maneira ele trapaceou as regras é muito grande. Uma classe e os grupos sociais que dela participam deveriam ser definidos também pelo tipo de sacrifício e pelas regras que tornam o merecimento de suas conquistas um fato legítimo ou iníquo. Diferentes políticas do sofrimento concorrem entre si quanto ao “em nome do que” vale a pena sofrer, e algumas são mais vitoriosas que outras. Estas adquirem força para estabelecer a fronteira entre o sofrimento que devemos aceitar, como um fato de natureza, e o sofrimento pelo qual é necessário lutar para transformar o mundo ou a nós mesmos. 

O ressentimento aparece aqui como uma patologia do reconhecimento que se baseia na suposição de que o Outro é mais poderoso e potente do que ele realmente é e que ele foi injusto conosco. Seguimos a lei e não fomos recompensados. O ressentido é no fundo alguém convicto de que a vida ou o destino lhe devem algo e que não foi em nome próprio que ele se engajou em uma rota de sacrifícios e sofrimentos, mas em nome de uma promessa que o Outro lhe fez. É basicamente pela exploração orquestrada desse tipo de ressentimento que se explica a força política da bancada da bala, reunida com a bancada da fé, agenciada por um síndico como Eduardo Cunha. Afinal, há uma longa história pela qual a teologia política determinou nossas narrativas de sofrimento.




Le Monde Diplomatique 


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