domingo, 20 de setembro de 2015

“Em 2015, Somos Todos Indígenas” ou Genocidas?


"Em 2015, e enquanto minimamente todas as terras indígenas não forem demarcadas, enquanto a saúde e a educação indígena não forem realmente diferenciadas, enquanto as crianças indígenas morrerem de desnutrição, enquanto as cestas básicas não chegarem nos acampamentos dos Guarani no Mato Grosso do Sul, enquanto este povo continuar recordista de suicídios de jovens e assassinatos de lideranças, e enquanto o Brasil permanecer destaque nas violações dos direitos indígenas fundamentais, seria vergonhoso dizer que SOMOS TODOS INDÍGENAS, ainda mais como mote desses Jogos Mundiais, melhor seria dizer: SOMOS TODOS GENOCIDAS!", escrevem Andrey Brito e Carol Hilgert, em artigo publicado no portal do Conselho Indigenista Missionário - CIMI, 18-09-2015.

Eis o artigo.

“Em 2015, somos todos indígenas”. Este é o mote dos Primeiros Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, que estão previstos para acontecer em Palmas (TO) em outubro deste ano. Por que tão poucas pessoas estão sabendo deste megaevento que acontecerá no nosso país e que contará com a presença de mais de dois mil atletas de 30 países? Por que os envolvidos estão considerando o evento “uma grande conquista dos povos indígenas?”.

A história começa antes mesmo do entusiasmo da senadora e ministra Kátia Abreu, defensora da bancada dos ruralistas no Congresso Nacional, com a realização do evento. Aliás, a ‘rainha da motosserra’ teve atuação decisiva para a escolha de Palmas como sede dos Jogos. Kátia Abreu (atual PMDB e ex-DEM) foi eleita senadora pelo Tocantins por muito pouco (apesar do que disse a mídia local), e, na sequência, foi nomeada Ministra da Agricultura e Pecuária. Além disso, ela também é presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Desde os anos 1990, esteve envolvida no esbulho de terra de pequenos produtores, como foi o caso da grilagem no Tocantins durante o governo Siqueira Campos. Na época, ela era Presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins e foi uma das beneficiadas com a grilagem.

A ministra foi uma das principais responsáveis dentro do governo pela articulação da realização dos Jogos. Conseguiu 10 milhões de reais para o evento, que foram entregues metade antes e metade depois das eleições de 2014. Um ano antes, protocolou na Casa Civil pedido de paralisação das demarcações de terras indígenas. Ela nunca escondeu que tem um lado: o do latifúndio, o do agronegócio, o da motosserra. E esse lado tem um preço: a vida de indígenas. Ninguém pode atrapalhar o “desenvolvimento econômico” emplacado pelo governo atual, nem mesmo a Constituição Federal; se for preciso, esta será alterada. Propostas como a PEC 215, as teses do “marco temporal” e a redução das terras indígenas reforçam as estratégias genocidas desse “desenvolvimento”.

No modelo adotado, os povos tradicionais aparecem como empecilho para o avanço econômico do país, como se este crescimento estivesse destinado a toda população brasileira. Este crescimento, no entanto, refere-se ao desenvolvimento do latifúndio e da exploração de minério; está, portanto, circunscrito a poucas pessoas que já detêm poder econômico. A maioria das grandes obras e dos megaeventos realizados ou pretendidos no Brasil apenas acentuam a diferença de classes. E se o povo brasileiro tem sido duramente prejudicado pelas escolhas do governo, os povos indígenas estão sendo devorados e seus ossos abafados.

As perguntas a serem feitas são: quanto do investimento nos Jogos realmente chega aos povos indígenas? Quais as reais necessidades e conflitos destes povos? Eles foram de fato consultados sobre a realização desse megaevento?

O Brasil tem caminhado na contramão dos grandes avanços na temática dos direitos indígenas na América Latina e das orientações internacionais de direitos humanos para os povos tradicionais: o marco da atualidade na questão é o respeito à diversidade cultural, à outra visão de mundo e à natureza.

Se todos recursos destinados aos povos indígenas fossem aplicados em suas comunidades, com toda certeza o Mato Grosso do Sul não seria recordista no mundo em lideranças indígenas assassinadas. Se ao menos os processos de demarcação de terras indígenas não estivessem paralisados, já seria um grande passo para os povos tradicionais. Ao invés disso, o que se tem notado é a redução dos direitos indígenas duramente conquistados na Constituinte de 1988 e no cenário internacional.

No 14º Fórum Permanente para Questões Indígenas da Organização das Nações Unidas, ocorrido em abril deste ano na cidade de Nova Iorque, houve ampla divulgação dos Jogos. A divulgação, contudo, não contou com o apoio da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (maior organização representativa dos movimentos de base indígena no país). Inclusive, representantes desta organização foram coibidos, apesar de inscritos, de se expressarem na mesa de lançamento dos Jogos.

No Fórum, o Brasil vendeu a imagem de exemplo para com os povos tradicionais, afirmando ser o país que mais demarcou terras indígenas. Blasfêmia! Mentira esta que deve ser combatida, pois os processos demarcatórios continuam paralisados e dois dos maiores povos do Brasil (os Guarani e os Terena, no Mato Grosso do Sul), sequer têm indicativo de que suas terras serão demarcadas. Por fim, a imensa parte das terras demarcadas que se encontram na região amazônica estão sem qualquer tipo de fiscalização ou proteção contra os exploradores ilegais.

O Brasil pode ter demarcado larga extensão de terra na Amazônia, mas isso não corresponde à maior parte da demanda por terra dos povos indígenas; mais de ⅔ das terras reivindicadas continuam sem uma solução ou com o procedimento demarcatório suspenso.

A demanda central dos povos indígenas é pela demarcação das Terras Indígenas e, no contexto atual, pode-se dizer que não há espaço para realização dos Jogos Mundiais. A situação chegou ao limite para os indígenas, que, com toda razão, já estão cansados de esperar e de levar bala a esmo; lhes restam quase nenhuma opção, senão as reocupações de seu Tekoha – em gerais sangrentas – e a resistência.

Agora fica até mais fácil entender porque, dentre as propostas para Palmas realizar os Jogos, está a idealização de um Museu do Índio. Se fosse pela Ministra e muitos outros envolvidos nesse evento, lá estariam todos os povos tradicionais; em memória, estáticos, não atrapalham o desenvolvimento do modelo econômico adotado pelo país.

Alguns políticos, como Ricardo Cappelli, secretário nacional de Esporte, Educação, Lazer e Inclusão Social do Ministério do Esporte, querem nos convencer de que “(…) os jogos indígenas reafirmam o Brasil como um país preocupado com a sustentabilidade e respeito ao meio ambiente e diversidade étnica”.

Não, Secretário, os jogos indígenas não afirmam nem reafirmam o Brasil como um país preocupado com a sustentabilidade e respeito ao meio ambiente e diversidade étnica. Ele mascara para o mundo os conflitos fundiários e as reais problemáticas enfrentadas pelos povos indígenas no nosso país. Se a sustentabilidade deve ser considerada uma meta, esta só poderá ser atingida se e quando houver a efetivação dos direitos dos povos indígenas. Os jogos não contribuem para isso: além de não contemplarem os anseios e demandas dos povos indígenas, estes sequer foram questionados sobre a realização do evento, quando muito lhes foi perguntado se queriam participar.

As demandas urgentes são claras: conclusão dos processos demarcatórios das terras indígenas e quilombolas e fortalecimento do conhecimento das comunidades tradicionais e de suas organizações com o fim de fazer respeitar a diversidade cultural consagrada dentro e fora do Brasil. Os indígenas poderiam ser ao menos consultados sobre os esforços e investimentos dispendidos para a realização dos Jogos, assim como dos demais megaprojetos que se apropriam ou do nome dos povos para fazer propaganda externa ou do espaço tradicional desses povos para exploração.

No Brasil o respeito à cultura originária, apenas existe, se muito, no papel da lei. Tal respeito varia conforme versar o interesse econômico. A expressão “povos indígenas” é usada quando convém para alguns interesses por muitos não-indígenas sem qualquer aproximação ou respeito para com a realidade destes povos. É dizer, quando a expressão “povos indígenas” servir para lucrar, criar-se-ão os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, quando a hidrelétrica não puder ser construída por conta da existência de “povos indígenas” no local, então os indígenas são contra o desenvolvimento econômico do país ou simplesmente são dados como inexistentes. Ainda, para dizer que são “integrados” e que não têm direito a terra, são “índios de calças jeans”.

Em um lugar onde ainda se usam práticas colonialistas e assimilacionistas, onde quem tem a pretensão de ditar o que é melhor para os povos indígenas ou o que deve ser ou não ser um povo indígena ainda são os não-indígenas, de paletó e gravata, é claro que os indígenas não têm espaço para ecoar a sua voz.

Em 2015, e enquanto minimamente todas as terras indígenas não forem demarcadas, enquanto a saúde e a educação indígena não forem realmente diferenciadas, enquanto as crianças indígenas morrerem de desnutrição, enquanto as cestas básicas não chegarem nos acampamentos dos Guarani no Mato Grosso do Sul, enquanto este povo continuar recordista de suicídios de jovens e assassinatos de lideranças, e enquanto o Brasil permanecer destaque nas violações dos direitos indígenas fundamentais, seria vergonhoso dizer que SOMOS TODOS INDÍGENAS, ainda mais como mote desses Jogos Mundiais, melhor seria dizer: SOMOS TODOS GENOCIDAS!

Ihu Unisinos 



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