quarta-feira, 23 de setembro de 2015

'Como em 1964, Brasil está em uma encruzilhada histórica', diz presidente do Ipea


Vendaval na Encruzilhada
Bruno Pavan 

Em entrevista, sociólogo Jessé Souza diz que país terá que escolher entre continuar incluindo os mais pobres ou voltar a ser 'uma sociedade dos 20%'
 
Desde o início de 2015, o professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) Jessé Souza é o responsável pelo comando do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Subordinado ao Ministério dos Assuntos Estratégicos, o instituto teve participação essencial nos últimos anos para entender a ascensão dos milhões de brasileiros ao mercado de consumo.

Em vista do novo cenário econômico, político e social brasileiro, Souza aponta que o país corre o risco de perder as conquistas sociais dos últimos anos e vê a realidade de 2015 muito parecida com a do pré-golpe em 1964. “Antes do golpe o país tinha que escolher dois caminhos: se ele seria uma sociedade de massas mais inclusiva, ou uma sociedade pra 20% - e a escolha feita com o golpe foi a escolha por essa minoria. A sociedade deve perceber o que ela tem a perder e o preço que isso envolve”, explicou.

Divulgação/Ipea

Jessé Souza, presidente do Ipea: Brasil tem que escolher entre continuar incluindo pobres ou ser uma 'sociedade dos 20%'

Jessé participou na última quarta-feira (16/09) de uma palestra na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) na qual criticou a linha de pensamento de nomes da sociologia brasileira como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Fernando Henrique Cardoso.

“A concepção dominante do Brasil moderno é pobre, superficial e conservadora. Isso começa com uma releitura de Sergio Buarque do mito nacional de Gilbeto Freyre, isso é extremamente problemático porque vem do fato de pensar que o Brasil vem de Portugal. Hoje, essas obras servem a um liberalismo extremamente mesquinho que virou prática institucional e nos torna inferiores, por definição, aos europeus, já que o brasileiro passou a se ver como 'emoção' e não 'razão'”, criticou Souza que lançará o livro “A tolice da inteligência brasileira”, que visa analisar esses pensadores.

Nessa entrevista ao Brasil de Fato, Jessé critica a corrente que acredita que há uma nova classe média no Brasil. Para ele, os milhões que ascenderam à classe c devem ser considerados uma “classe trabalhadora precarizada”. “Ela ascende ao mercado competitivo de trabalho, mas sob condições precárias. De classe média ela não tem nada”, disse.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato:- No último período houve a discussão sobre a distinção teórica entre nova classe trabalhadora e a nova classe média. O que as difere?
Jessé Souza: Isso não é só uma questão de terminologia, mas tem a ver com a narrativa de um processo e é extremamente importante porque implica a construção de um horizonte e a percepção do seu lugar na sociedade. Essa foi a transformação mais importante do Brasil nos últimos 50 anos e teve muito a ver com os programas sociais dos governos petistas e políticas como o aumento do salário mínimo, o Bolsa Família o crédito mais fácil e uma série de outras. O que houve efetivamente e o que nós vemos na nossa pesquisa foi uma ascensão do que poderíamos chamar de subproletariado, e que nós chamamos provocativamente de ralé.


Essa classe ascendente não pode ser considerada classe média, porque a classe média é uma classe de privilégios desde o nascimento, porque ela “compra” o tempo livre dos filhos para o estudo e os habilita para que eles possam acumular um capital cultural extremamente sofisticado, sejam nas áreas técnicas como economia, direito e engenharia; como também nas literárias como o jornalismo e a publicidade. Todas as funções importantes do mercado exigem conhecimento, tanto quanto exigem dinheiro, só o capital econômico não movimenta nada, tem que ter o conhecimento nisso tudo.

Por conta disso essa nova classe é muito mais uma classe trabalhadora precarizada, que ascende ao mercado competitivo de trabalho, mas sob condições precárias. De classe média ela não tem nada.

BF: Como é a inserção dessa classe trabalhadora nas organizações de classes tradicionais? Ela se vê dentro dessas delas?
JS: Tendo a achar que não, mas no Brasil a gente estuda muito pouco e quer apontar tudo no achismo, ou então a partir de dados quantitativos como renda e que, no fundo, não explicam coisa nenhuma. Já estamos preparando uma pesquisa onde isso vai aparecer, mas o que a gente pôde ver com relação a essa questão é que essa classe não tem essa filiação das organizações da classe trabalhadora tradicional. Tem muito mais relação com a igreja e com a internet, nas cidades maiores, do que com as organizações tradicionais.

BF: Você critica o discurso da corrupção como o principal mal do país. O que de mais profundo o país precisa debater? A quem serve esse discurso demonizador?
JS: O que precisa ser posto como claro desde o começo é que a transparência dos negócios públicos é uma virtude republicana fundamental e é extremamente importante que haja a investigação sobre isso. Dito isso, a gente tem que ver a que a corrupção é muitas vezes usada como manipulação política de forma seletiva e quase sempre transforma interesses extremamente privados em aparentemente públicos. A corrupção se presta a isso porque ela dá e implica uma possibilidade de angariar apoio contra algo que é visto como um bem comum e que interessa a todos. Todos tem interesse no controle do estado. Mas o tema da corrupção é extremamente mal posto.

No fundo isso tem uma ideologia liberal que vê tudo o que acontece no mercado como virtude e o que acontece no estado como corrupção e ineficiência. Isso também tem a ver com a luta entre as classes e como ela é sempre inviabilizada, tem existir uma semântica onde ela se expressa de um modo distorcido. Tanto no Brasil como em vários países isso adquire a forma de demonização do estado e a divinização do mercado. Por que isso acontece? Porque para as classes populares que não só não compreendem os mecanismos de mercado, como também não tem força pra se opor a eles, o estado é a única entidade com força suficiente pra eventualmente se contrapor a esses mecanismos. Enfraquecer o estado é enfraquecer o único meio de proteção das classes populares. Para 70% da população brasileira, o estado é a única ajuda. Essa luta de classes é mantida e é feita sobre essa forma, ou seja, esse linguajar da corrupção simplifica toda a complexa situação da política e da economia da sociedade em um vetor só e usa esse discurso manipulando as suas próprias vítimas.

BF: Hoje, nós vemos inúmeros valores burgueses como a meritocracia tomando conta do setor mais pobre da sociedade. Como fazer esse embate de ideias?
JS: O Brasil hoje está em uma encruzilhada histórica extremamente importante, assim como ele esteve em 1964. Antes do golpe o país tinha que escolher dois caminhos: se ele seria uma sociedade de massas mais inclusiva, ou uma sociedade pra 20% e a escolha feita com o golpe foi a escolha por essa minoria. A sociedade deve perceber o que ela tem a perder e o preço que isso envolve. Os governos petistas conseguiram de algum modo estimular uma ascensão social histórica no Brasil coisa que não havia acontecido antes, obviamente teve um contexto favorável a isso, mas essas condições já haviam acontecido e nada foi feito porque não havia vontade política.

A nossa encruzilhada histórica é: ou a gente volta pra uma sociedade de 20%, e o risco disso acontecer existe, ou aprofunda essa inclusão. Falta uma narrativa pra isso que mostre que esses avanços são graduais e gere uma maior conscientização disso. Eu acho que ainda espaço há pra que se crie essa alternativa, há uma luta ainda em aberto e que não está decidida e há modos de produção de uma narrativa que ofereça novas alternativas de convencimento.

(*) Publicado originalmente em Brasil de Fato

Opera Mundi


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