Vendaval na Encruzilhada |
Em entrevista, sociólogo Jessé Souza diz que país terá que escolher entre continuar incluindo os mais pobres ou voltar a ser 'uma sociedade dos 20%'
Desde o início de 2015, o professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) Jessé Souza é o responsável pelo comando do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Subordinado ao Ministério dos Assuntos Estratégicos, o instituto teve participação essencial nos últimos anos para entender a ascensão dos milhões de brasileiros ao mercado de consumo.
Em vista do novo cenário econômico, político e social brasileiro, Souza aponta que o país corre o risco de perder as conquistas sociais dos últimos anos e vê a realidade de 2015 muito parecida com a do pré-golpe em 1964. “Antes do golpe o país tinha que escolher dois caminhos: se ele seria uma sociedade de massas mais inclusiva, ou uma sociedade pra 20% - e a escolha feita com o golpe foi a escolha por essa minoria. A sociedade deve perceber o que ela tem a perder e o preço que isso envolve”, explicou.
Divulgação/Ipea
Jessé Souza, presidente do Ipea: Brasil tem que escolher entre continuar incluindo pobres ou ser uma 'sociedade dos 20%'
Jessé participou na última quarta-feira (16/09) de uma palestra na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) na qual criticou a linha de pensamento de nomes da sociologia brasileira como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Fernando Henrique Cardoso.
“A concepção dominante do Brasil moderno é pobre, superficial e conservadora. Isso começa com uma releitura de Sergio Buarque do mito nacional de Gilbeto Freyre, isso é extremamente problemático porque vem do fato de pensar que o Brasil vem de Portugal. Hoje, essas obras servem a um liberalismo extremamente mesquinho que virou prática institucional e nos torna inferiores, por definição, aos europeus, já que o brasileiro passou a se ver como 'emoção' e não 'razão'”, criticou Souza que lançará o livro “A tolice da inteligência brasileira”, que visa analisar esses pensadores.
Nessa entrevista ao Brasil de Fato, Jessé critica a corrente que acredita que há uma nova classe média no Brasil. Para ele, os milhões que ascenderam à classe c devem ser considerados uma “classe trabalhadora precarizada”. “Ela ascende ao mercado competitivo de trabalho, mas sob condições precárias. De classe média ela não tem nada”, disse.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato:- No último período houve a discussão sobre a distinção teórica entre nova classe trabalhadora e a nova classe média. O que as difere?
Jessé Souza: Isso não é só uma questão de terminologia, mas tem a ver com a narrativa de um processo e é extremamente importante porque implica a construção de um horizonte e a percepção do seu lugar na sociedade. Essa foi a transformação mais importante do Brasil nos últimos 50 anos e teve muito a ver com os programas sociais dos governos petistas e políticas como o aumento do salário mínimo, o Bolsa Família o crédito mais fácil e uma série de outras. O que houve efetivamente e o que nós vemos na nossa pesquisa foi uma ascensão do que poderíamos chamar de subproletariado, e que nós chamamos provocativamente de ralé.
Essa classe ascendente não pode ser considerada classe média, porque a classe média é uma classe de privilégios desde o nascimento, porque ela “compra” o tempo livre dos filhos para o estudo e os habilita para que eles possam acumular um capital cultural extremamente sofisticado, sejam nas áreas técnicas como economia, direito e engenharia; como também nas literárias como o jornalismo e a publicidade. Todas as funções importantes do mercado exigem conhecimento, tanto quanto exigem dinheiro, só o capital econômico não movimenta nada, tem que ter o conhecimento nisso tudo.
Por conta disso essa nova classe é muito mais uma classe trabalhadora precarizada, que ascende ao mercado competitivo de trabalho, mas sob condições precárias. De classe média ela não tem nada.
BF: Como é a inserção dessa classe trabalhadora nas organizações de classes tradicionais? Ela se vê dentro dessas delas?
JS: Tendo a achar que não, mas no Brasil a gente estuda muito pouco e quer apontar tudo no achismo, ou então a partir de dados quantitativos como renda e que, no fundo, não explicam coisa nenhuma. Já estamos preparando uma pesquisa onde isso vai aparecer, mas o que a gente pôde ver com relação a essa questão é que essa classe não tem essa filiação das organizações da classe trabalhadora tradicional. Tem muito mais relação com a igreja e com a internet, nas cidades maiores, do que com as organizações tradicionais.
BF: Você critica o discurso da corrupção como o principal mal do país. O que de mais profundo o país precisa debater? A quem serve esse discurso demonizador?
JS: O que precisa ser posto como claro desde o começo é que a transparência dos negócios públicos é uma virtude republicana fundamental e é extremamente importante que haja a investigação sobre isso. Dito isso, a gente tem que ver a que a corrupção é muitas vezes usada como manipulação política de forma seletiva e quase sempre transforma interesses extremamente privados em aparentemente públicos. A corrupção se presta a isso porque ela dá e implica uma possibilidade de angariar apoio contra algo que é visto como um bem comum e que interessa a todos. Todos tem interesse no controle do estado. Mas o tema da corrupção é extremamente mal posto.
No fundo isso tem uma ideologia liberal que vê tudo o que acontece no mercado como virtude e o que acontece no estado como corrupção e ineficiência. Isso também tem a ver com a luta entre as classes e como ela é sempre inviabilizada, tem existir uma semântica onde ela se expressa de um modo distorcido. Tanto no Brasil como em vários países isso adquire a forma de demonização do estado e a divinização do mercado. Por que isso acontece? Porque para as classes populares que não só não compreendem os mecanismos de mercado, como também não tem força pra se opor a eles, o estado é a única entidade com força suficiente pra eventualmente se contrapor a esses mecanismos. Enfraquecer o estado é enfraquecer o único meio de proteção das classes populares. Para 70% da população brasileira, o estado é a única ajuda. Essa luta de classes é mantida e é feita sobre essa forma, ou seja, esse linguajar da corrupção simplifica toda a complexa situação da política e da economia da sociedade em um vetor só e usa esse discurso manipulando as suas próprias vítimas.
BF: Hoje, nós vemos inúmeros valores burgueses como a meritocracia tomando conta do setor mais pobre da sociedade. Como fazer esse embate de ideias?
JS: O Brasil hoje está em uma encruzilhada histórica extremamente importante, assim como ele esteve em 1964. Antes do golpe o país tinha que escolher dois caminhos: se ele seria uma sociedade de massas mais inclusiva, ou uma sociedade pra 20% e a escolha feita com o golpe foi a escolha por essa minoria. A sociedade deve perceber o que ela tem a perder e o preço que isso envolve. Os governos petistas conseguiram de algum modo estimular uma ascensão social histórica no Brasil coisa que não havia acontecido antes, obviamente teve um contexto favorável a isso, mas essas condições já haviam acontecido e nada foi feito porque não havia vontade política.
A nossa encruzilhada histórica é: ou a gente volta pra uma sociedade de 20%, e o risco disso acontecer existe, ou aprofunda essa inclusão. Falta uma narrativa pra isso que mostre que esses avanços são graduais e gere uma maior conscientização disso. Eu acho que ainda espaço há pra que se crie essa alternativa, há uma luta ainda em aberto e que não está decidida e há modos de produção de uma narrativa que ofereça novas alternativas de convencimento.
(*) Publicado originalmente em Brasil de Fato
Opera Mundi
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