terça-feira, 29 de setembro de 2015

Teoria política da corrupção


A igualdade jurídica não elimina a desigualdade sócio-econômica

Armando Boito (*)
 

A questão da corrupção está na ordem-do-dia nos países da América Latina. O uso político conservador e moralista desse tema tem sido feito, em graus distintos, pelas oposições de direita aos governos superficialmente reformistas do Partido dos Trabalhadores no Brasil e do Partido Justicialista na Argentina e aos governos reformistas mais ambiciosos como o de Rafael Correa no Equador. Na conjuntura atual, é no Brasil que a questão da corrupção e do seu uso político adquiriram uma importância maior. Apoiados em manifestações massivas da camada superior da classe média, os partidos da oposição de direita – PSDB, DEM, PPS e Solidariedade – definiram como estratégia obter algum tipo de condenação por crime de corrupção ou aparentado do Governo Dilma Roussef para poderem abrir um processo de impeachment contra a presidenta da República.


O que é a corrupção?

Corrupção e Estado burguês


Como é mais que sabido, a ideologia dominante situa a corrupção num quadro moral. Os analistas e observadores progressistas costumam contrapor a essa caracterização moral uma idéia de corrupção socialmente determinada. Essa ideia não é suficiente para romper com o discurso moralista. Isso porque tais analistas e observadores tomam a ideia de corrupção na forma que os moralistas a apresentam. O que é preciso mostrar, contudo, é que a própria ideia de corrupção é parte da ideologia política burguesa. Aí sim a ruptura com a problemática moralista estará consumada. Eis o que deve ser compreendido: corrupção é uma noção ideológica, típica do modo de produção capitalista, e produzida pelo aparelho do Estado burguês.


Correndo o risco de levantar teses que exigiriam um conhecimento histórico maior que aquele que logrei amealhar, eu diria que nos períodos históricos que antecederam o capitalismo, a ideia de corrupção era inconcebível e que inexistiam os valores que tal ideia mobiliza. Isso era assim porque, diferentemente do que ocorre no modo de produção capitalista, no qual as instituições do Estado estão formalmente abertas aos indivíduos egressos de todas as classes sociais, no modo de produção escravista e no modo de produção feudal, os postos do Estado eram monopólio dos indivíduos pertencentes à classe dominante. Somente homens livres e, muitas vezes, somente os estamentos superiores da ordem dos homens livres, podiam aceder aos postos e cargos do Estado. Isso vale para as instituições repressivas, administrativas e representativas dos Estados escravista e feudal (Poulantzas, 1968).


Ora, se é a ordem superior – os homens livres – e, preferencialmente, os estamentos superiores – aristocracia, patrícios, nobres, clérigos – que monopolizam os postos do Estado, esses postos tornam-se, na verdade, monopólio da classe dominante. É certo que a situação jurídica de ordem e de estamento e a situação econômica de classe são situações distintas. Contudo, embora entre os integrantes da ordem superior possamos encontrar um número significativo de indivíduos pertencentes às classes populares – artesãos e camponeses livres na Grécia Antiga, na Roma Antiga e na Europa feudal – é muito mais raro encontrá-los nos estamentos superiores da ordem dos homens livres. Esses estamentos, no geral, abarcavam indivíduos pertencentes à classe dominante – o patriciado romano era composto, majoritariamente, de grandes latifundiários (Croix, 1997, p. 332-336) e os nobres no período medieval eram, majoritariamente, os próprios senhores feudais (Lemarchand, 1978).


Em decorrência da norma que estabelecia o monopólio dos postos de Estado pela classe dominante, norma característica dos Estados pré-capitalistas, os recursos materiais e financeiros desses Estados não se encontravam separados dos recursos materiais e financeiros dos indivíduos pertencentes às classes dominantes (Saes, 1998). O posto no Estado podia ser propriedade de um indivíduo da classe dominante, bem como os recursos materiais dos indivíduos da classe dominante eram utilizados para as atividades do Estado (Boito, 1998). As monarquias feudais europeias aumentavam suas receitas por intermédio da venda de cargos do Estado – a chamada venalidade de ofícios (Goubert, 1953). O comprador do cargo obtinha o direito de auferir uma renda e, dependendo do tipo de compra efetuado, podia passar o cargo em herança. O próprio sistema de arrecadação de impostos, que é o sangue e a alma do aparelho de Estado, era objeto de compra e venda – o denominado sistema de arrematação. No mundo antigo, tanto em Grécia como em Roma, os grandes proprietários de terra aristocratas financiavam, com seus recursos, as mais variadas atividades do Estado (Finley, 1980).


É a formação do Estado burguês que altera essa situação. A partir das revoluções políticas burguesas, é declarada a igualdade jurídica formal entre trabalhadores e proprietários dos meios de produção, extinguem-se as ordens e os estamentos, e as instituições do Estado passam a ser formalmente abertas a todos os cidadãos. Nenhum cidadão pode ser preterido, em decorrência de sua situação de classe, para o exercício de um posto repressivo, administrativo ou representativo no Estado. Nesse novo tipo de Estado, como foi assinalado por Max Weber (1999, p. 529-544), os recursos do Estado são separados dos recursos dos ocupantes dos cargos de Estado. Acrescentamos nós: são formalmente separados, porque, como se diz no ditado popular, na prática, a teoria é outra.


Não é possível separar de maneira estanque os recursos do cargo dos recursos do seu ocupante. Ademais, duas características básicas do modo de produção capitalista conspiram, permanentemente, contra essa separação: a concentração da riqueza e do patrimônio típica da economia capitalista e a prática do segredo típica do funcionamento da burocracia do Estado burguês.


Corrupção e ideologia


Os elementos que dão origem à ideologia da corrupção são eles mesmos ideológicos. A igualdade jurídica entre o proprietário dos meios de produção e o produtor direto singulariza, de fato, a situação do trabalhador no capitalismo, mas, como mostraram os clássicos do marxismo, ela é uma igualdade formal. Proclamada no plano jurídico, ela não elimina a desigualdade sócio-econômica entre as partes e, ademais, é contaminada por essa última. Todo trabalhador assalariado, ao contrário do que se passava nos modos de produção pré-capitalistas, tem acesso à justiça e pode votar e ser votado, mas ele não dispõe das mesmas condições econômicas que o capitalista para pagar um grande escritório de advocacia ou para viabilizar uma campanha eleitoral.


Com a norma que estabelece a abertura dos postos do Estado a todos os cidadãos se passa algo semelhante. Essa norma existe, diferencia o Estado capitalista dos Estados pré-capitalistas, mas sua existência é formal. No plano do direito, todo trabalhador pode aceder aos postos mais elevados da administração pública, do Judiciário, das Forças Armadas e das câmaras representativas. Em 2003, um operário assumiu a Presidência da República no Brasil. Contudo, as pesquisas sobre os Estados capitalistas mostram que, no geral, a cúpula do aparelho de Estado é ocupada por indivíduos egressos da classe dominante ou das famílias abastadas de classe média (Miliband, 1982, p. 67-87).


Algo semelhante se passa com a ideologia da corrupção que é, como já indicamos, filha das duas normas básicas do Estado burguês – igualdade jurídica formal e abertura formal das instituições do Estado. Os bens dos indivíduos pertencentes às classes dominantes e os bens do Estado estão formalmente separados. Os edifícios, equipamentos, recursos humanos e dotações financeiras do Executivo, do Legislativo e do Judiciário não são propriedade privada dos burgueses e sequer do ocupante dos ocupantes de cargos. Contudo, esses edifícios, equipamentos, recursos humanos e dotações financeiras são mobilizados, fundamentalmente, para estimular o processo de acumulação de capital e aumentar a riqueza das famílias burguesas. Tal qual nas duas normas anteriores, a separação entre bens públicos e bens privados faz diferença, alude a uma situação real, mas, ao mesmo tempo, promete mais do que entrega, produz uma ilusão. Funciona, assim, como toda ideologia: um jogo de alusão-ilusão no qual o segundo elemento é dominante (Althusser, 1968).


Consequências políticas


Afirmar que a corrupção tem raízes sociais pode ser um bom começo, mas está longe de oferecer aos trabalhadores um conhecimento científico que possa guiar uma crítica socialista à corrupção. Essa só começa quando se tem claro que a ideia de corrupção é ideológica e serve, em primeiro lugar, para encobrir o fato de que as instituições e os bens do Estado capitalista não são “públicos”, mas sim recursos a serviço dos interesses da classe dominante.


Na luta democrática, e dependendo da conjuntura, os trabalhadores podem ter interesse em defender a norma burguesa que separa os bens públicos dos bens privados, do mesmo modo que têm interesse, também no plano da luta democrática, em defender a igualdade jurídica e a abertura dos postos de Estado. Mas, ao fazê-lo, isto é, ao jogar as normas do Estado capitalista e a sua ideologia contra as práticas burguesas, devem ter consciência que fazem a disputa no terreno da burguesia e devem tirar disso todas as consequências.


Seria pertinente examinar também como cada classe social percebe e se posiciona frente ao fenômeno da corrupção. Mas esse é tema para outro texto.








(*) Armando Boito é professor de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, em Campinas. É diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) e editor da revista ‘Crítica Marxista’. Desenvolve pesquisa sobre as relações de classe no capitalismo neoliberal no Brasil e na América Latina. Entre as suas obras publicadas contam-se ‘O Golpe de 1954: a burguesia contra o populismo’ (Editora Brasiliense, 1982), ‘O sindicalismo de Estado no Brasil - uma análise crítica da estrutura sindical’ (Editoras Hucitec e Unicamp, 1991), ‘Política neoliberal e sindicalismo no Brasil’ (Editora Xamã, 1999), ‘O Sindicalismo na política brasileira’ (Editora IFCH-Unicamp, 2005) e ‘Estado, política e classes sociais’ (Editora da Unesp, 2007). É também organizador de diversos volumes coletivos, entre os quais 'A obra teórica de Marx - atualidade, problemas e interpretações’ (Editora Xamã, 2000), 'A Comuna de Paris na História’ (Editora Xamã, 2001), ‘Marxismo e Ciências Humanas’ (Editora Xamã, 2003) e ‘Marxismo e socialismo no século XXI’ (Editora Xamã, 2005).



Referências bibliográficas


Althusser, Louis. 1968. La filosofia como arma de la revolucion. Córboba: Cuadernos de Pasado y Presente, n. 4.


Boito, Armando. 1998. “Os tipos de Estado e os problemas da análise poulantziana do Estado Absolutista”. Crítica Marxista, n. 7.


Croix, G.E.M. de Ste. 1997. The class struggle in the ancient greek world. 3a ed. London: Duckworth.


Finley, M. I. 1980. A economia antiga. Porto: Edições Afrontamento.


Goubert, Pierre. 1953. “Un problème mondial: la venalité des offices”. Annales, v. 8.


Miliband, Ralph. 1982. O Estado na sociedade capitalista. Rio de Janeiro: Zahar Editores.


Poulantzas, Nicos. 1968. Pouvoir politique et classes sociales de l'état capitaliste. Paris: Maspero.


Saes, Décio. 1998. Estado e democracia: ensaios teóricos. 2a ed. Campinas: Editora IFCH-Unicamp.


Weber, Max. 1999. Economia e sociedade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. Volume 2.

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Comuneiro

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