Em texto lapidar, Luiz Fernando Veríssimo fala-nos de solidariedade.
Na quarta, da solidariedade entre goleiros. Na quinta da tragédia metamorfoseada pelas ONGs humanitárias de financistas, pelos industriais do belicismo, pelos promotores dos Estados atualizados, pela abertura dos portos da globalização e pelos indiferentes.
Um dia, a serenidade de um goleiro conforta a dor de seu adversário. No outro, as ondas de desespero não conseguem penetrar na consciência do primeiro mundo. Daquele mundo, que arautos da globalização nos prometeram.
Deste modo, lidamos com ambiguidades e cinismo. Choramos o menino afogado em Bodrun, na Turquia, mas não há sinais de comoção para outros Aylans. Nossos conterrâneos, que naufragam em nossas praias.
Súbito, indiferentes, engavetam sua frieza. Momentaneamente, desfazem-se de seus perfis envernizados. Na ala das comoções fabricadas, postam suas fantasias. Não remetem à discriminação e ao ódio corriqueiro, à defesa de crimes hediondos, ao golpe contra a democracia, à criminalização de adolescentes e ao escárnio habitual, destinado aos que tentam fugir da pobreza.
Fazem de conta que são sensíveis. Que deploram banalidades e aderem à grife dos náufragos. Juram amor pelos maltrapilhos e pela cristandade. Denegam a escravidão e o trabalho precário. Atestam por meio de seu horóscopo: Hoje não menosprezarão desigualdades e fracassos humanos. Despidos de sarcasmo poderão ostentar aureolas de humanidade. Deste modo, a desfaçatez permite-lhes espetacularizar sua consternação.
Nas redes sociais, o solene desprezo pelo destino de seres humanos dá lugar à exposição de nova imagem. O selfie da luxúria cede espaço à comoção. Permite que o marketing da sensibilidade prospere em meio à triste imagem da morte prematura.
O afogamento trágico de uma criança remete-nos à hodierna tragédia do naufrágio de nossos sentimentos. De sentimentos que se consumiram quando, exaustivamente, consumimos e nos deixamos consumir. Que se exauriram quando atendemos aos apelos ensurdecedores do mercado, que não nos deixaram ouvir vozes desesperadas que nos chamavam.
Que vozes eram estas? Não vinham de Bodrun, mas, hoje, também chegam de lá.
Falavam nosso idioma, mas hoje se misturam. Falam-nos em milhares de idiomas sobre a dor universal das privações, do desespero, dos que se lançam no oceano para evitar o inevitável naufrágio em terra firme.
Estes milhões de náufragos não têm abrigo na falsa comoção de financistas. Especuladores que corrompem economias periféricas ao tempo em que prometem comprar ilhas na Grécia para acolher imigrantes. Estes são os responsáveis pela migração, pela exclusão social.
Afora o momento da espetacularização da tristeza, tampouco têm lugar nos selfies. Na luxúria desta gente que encharca ruas de ódio. Que clama por crimes hediondos e brada contra direitos inalienáveis. Que discrimina a pobreza, segrega nordestinos e trata com desdouro seus diferentes.
Estes, os indiferentes, empurram a sociedade para a solidão dos precipícios, para a esterilidade dos desertos e para a trágica profundeza dos oceanos. Se a morte prematura de uma criança lhes concede a eventual graça de um sentimento, não lhes assegura o conforto da indiferença. Da responsabilidade diante do destino de seres humanos que desprezam.
Dizem-se comovidos com a tragédia. Mas não sentem consternação pelo êxodo. Pelos milhões de homens, mulheres e crianças que empurram nos mediterrâneos da sociedade. Pelos migrantes nordestinos, que produzem a opulência das grandes cidades enquanto despencam de faustosas construções. Dos sem terra escravizados pelo agronegócio. Dos jovens e adolescentes sujeitos a trabalho precário. De negros submetidos à baixa remuneração e aviltantes condições de trabalho. De mulheres condenadas a limpar imundícies desta gente asséptica e perfumada.
Estes são nossos migrantes, empurrados para o submundo e sarjetas de exuberantes cidades. Crianças invisíveis que prematuramente morrem em nossas praias.
* Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG
As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição
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