segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Autonomia do judiciário versus pretorianismo jurídico-midiático


Proclamação de Cláudio como imperador romano pela guarda pretoriana
A seletividade das investigações da operação lava-jato tem que chegar ao fim.

Leonardo Avritzer
 
A nossa democratização concedeu, através do novo desenho constitucional de 1988, ampla autonomia ao poder judiciário e ao Ministério Público. Esta foi uma das reivindicações históricas da sociedade civil brasileira que se consolidou na carta constitucional. 



O judiciário conseguiu superar a sua trajetória de poder amplamente subordinado ao executivo, que remonta a 1891. O déficit da autonomia foi sanado, particularmente pelo reforço do controle concentrado de constitucionalidade, inscrito nos artigos 102 e 103 da Constituição, o que permitiu que o judiciário passasse a exercer mais amplamente as suas prerrogativas, tal como o sistema de pesos e contrapesos exige. Ao mesmo tempo, o Ministério Público, ampliou sua atuação no campo dos direitos difusos e coletivos e avançou , no combate à corrupção. No entanto, a maneira como a corrupção está sendo combatida pelo Ministério Público e pelo judiciário, em especial, pelo juiz Sérgio Moro, abrem a possibilidade da passagem da autonomia concedida pelo estado de direito, para o pretorianismo jurídico. Permitam-me analisar a lava-jato sob esta perspectiva.
 

A divisão da lava-jato em fases, realizada pela própria Procuradoria Geral da República e pelo juiz Moro, nos permite diferenciar as fases em que ela de fato mirou o combate à corrupção institucionalizada, das fases - em especial a que começou na última semana do segundo turno das eleições do ano passado - nas quais ela se converteu em uma operação política com vistas a reorganizar o jogo político eleitoral no Brasil. A primeira fase pode ser considerada um avanço na investigação e no combate à corrupção, na qual atores ligados à corrupção sistêmica na Petrobrás foram descobertos e os procedimentos jurídicos cabíveis adotados, através de uma inovação que poderia ser considerada produtiva: a delação premiada. No entanto, encerrada esta fase, que conseguiu produzir bons resultados, seja no que diz respeito à revelação da operação de corrupção dentro da Petrobrás, seja no que toca à recuperação inédita de ativos da empresa, iniciou-se uma segunda fase, de conteúdo eminentemente político, que coincidiu com a campanha eleitoral de 2014.
 

A segunda fase da operação lava-jato não tem os seus detalhes conhecidos pela opinião pública, o que talvez fique para os historiadores fazerem. É possível perceber, contudo, que a operação foi politizada com vistas a influenciar o processo eleitoral através de vazamentos seletivos sobre a eventual participação da presidente e do ex-presidente Lula no esquema de corrupção. Essas informações não se confirmaram, o que ficou claro quando da revelação da lista de políticos envolvidos no esquema de corrupção da Petrobrás, confeccionada pelo Procurador Geral da República. O auge do processo de politização da operação foi, justamente, o vazamento da falsa delação, o que levou à capa da “Revista Veja” no fim de semana da eleição. Este ato, nunca investigado a contento, constituiu talvez o mais grave crime cometido contra a democracia brasileira desde 1985. Ainda assim, este atentado contra a democracia não motivou qualquer reação do poder executivo e, tampouco, do poder judiciário, restando desconhecida a origem do vazamento. Isso indica o nível de politização do poder judiciário, em especial da vara da justiça federal em Curitiba, presidida por Moro. Assim, ele consolidou o seu poder com o evento e passou a exercê-lo de forma abertamente política em 2015, em especial nesta semana.
 

O auge da segunda fase da operação lava-jato foi a prisão do ex-ministro José Dirceu na última segunda feira e, em especial, a entrevista coletiva de agentes da Polícia Federal e do Ministério Público, que se seguiu à prisão. Aí se evidencia a desinstitucionalização a que estão sujeitas as instituições de sistema de justiça, impulsionadas pela politização da operação lava-jato, por pelo menos duas razões: (1) A própria participação de policiais federais, sem cargo de chefia ou função vinculada à divulgação pública da instituição, expressa o que podemos chamar de desinstitucionalização. As instituições param de funcionar e pessoas no seu interior passam a assumir papeis que politizam e partidarizam aquelas instituições. Aqui temos, o primeiro risco de passagem da autonomia judicial constitucionalmente estabelecida para um pretorianismo jurídico/policial. (2) Em segundo lugar, durante a entrevista houve uma mudança na interpretação da própria lava-jato, feita por um procurador da república e alguns policiais federais. Não se tem notícia na história do país de um episódio assim, em que a interpretação dos fatos criminosos – e a imputação da culpa - é antecipada à análise da justiça. O motivo da mudança é claro: expressar publicamente esta opinião (parcial), antecipando a sua transmissão em rede nacional, naquela noite, no Jornal Nacional. Aqui se encontra o segundo risco da atual conjuntura: é a inserção da interpretação na mídia o que se busca, e não o desenrolar célere da justiça.
 

Uma das mentes mais brilhantes do conservadorismo jurídico no Brasil, Joaquim Falcão, fez a defesa da operação lava-jato em artigo publicado no domingo, 02 de Agosto, pela Folha de São Paulo. Joaquim Falcão lança alguns argumentos para defender a lava-jato: o primeiro é o de que há uma nova geração de procuradores que, segundo ele, “ dão mais prioridade aos fatos que às doutrinas. Mais pragmatismo e menos bacharelismo. Mais a evidência dos autos – documentos, e-mails, planilhas, testemunhos, registros – do que a lições de manuais estrangeiros ou relacionamento de advogados com tribunais. Erram aqui e acolá... O juiz, e não mais os advogados, conduz o processo.”.
 

Joaquim Falcão acerta em alguns elementos e erra fortemente em outros: acerta quando diz que se trata de uma nova geração, que privilegia fatos ao invés de doutrina. Ignora, contudo, a forte seletividade da lava-jato em relação aos fatos que envolvem os políticos do PSDB. A menção ao nome de Aécio Neves, realizada pelo doleiro Yousseff, que detalhou os valores e o local para onde os recursos foram enviados, não valeu um pedido de investigação por parte da Procuradoria Geral da República. Nenhuma atitude foi tomada pela PGR para saber se os 10 milhões recebidos por Sérgio Guerra, na época presidente do PSDB, não foram distribuídos para outros parlamentares do partido. Assim, é apenas parcialmente correta a afirmação de que se privilegiam os fatos. O que sim é correto é que há uma nova geração de procuradores e juízes assentados nos níveis superiores do sistema de justiça que estão dispostos a ignorar certos fatos e valorizar outros.
 

Mas o elemento mais problemático do artigo de Joaquim Falcão é a tolerância com o uso mídia em processos políticos. Para Falcão, esta nova geração de procuradores e policiais usa “...de múltiplas estratégias. Jurídica, política e comunicativa. Valorizam a força das imagens, que entram, via internet, televisão, lares e ruas, nos autos e tribunais”. Aqui reside o maior equívoco do argumento de Falcão. A estratégia midiática por parte do poder judiciário para forçar não apenas o acordo de delação, mas também a convergência das cortes superiores com a sua posição, é um desastre para o estado de direito, porque transfere o julgamento da culpabilidade para a única instância não pluralista da sociedade brasileira, a mídia televisa.
 

A análise de Falcão pode ser complementada pela análise política de Moro, expressa em um artigo escrito sobre a operação Mãos Limpas, em 2004. A análise de Moro é muito mais tacanha, mas revela os verdadeiros riscos do pretorianismo jurídico. Diz Moro, em artigo sobre a Operação Mãos Limpas: “...A Operação Mani Pulite redesenhou o quadro político na Itália. Partidos que haviam dominado a vida política italiana no pós-guerra, como o Socialista e a Democracia Cristã, foram levados ao colapso, obtendo na eleição de 1994 somente 2,2% e 11,1% dos votos, respectivamente". Alguns elementos chamam a atenção na “pseudo análise política” de Moro: o primeiro deles é que ele entende a desestruturação do sistema político italiano como um fenômeno positivo e motivado judicialmente. Não sabemos se as colocações de Moro valem apenas para a Itália ou se parecem valer também para o Brasil. No que diz respeito à Itália, a Moro não interessa o fato que junto com a democracia cristã e os socialistas, a operação “Mãos Limpas” destruiu o sistema político italiano inteiro com as consequências que conhecemos: a estagnação econômica de longo prazo que já começa a se manifestar no Brasil e a ascensão de políticos populistas de direita, entre eles Berlusconi, ainda mais envolvidos com a corrupção do que políticos da democracia cristã. Escapa ao juiz Moro o elemento mais importante da operação Mãos Limpas, qual seja, o poder judiciário é capaz de destruir um sistema político, mas não é capaz de colocar nada no seu lugar.
 

A manutenção das regras político constitucionais elaboradas pela Constituição de 1988 exige imediatamente que os três poderes, e, em especial, o Supremo Tribunal Federal reestabeleça as intenções da carta, na qual os poderes superiores da república não podem ser intimidados ou desafiados na sua capacidade revisora. A seletividade das investigações da operação lava-jato tem que chegar ao fim, assim como, a intenção de criminalizar apenas alguns atores políticos. 

Cabe ao Congresso rever a delação premiada, pois o controle exagerado pela Procuradoria da República e pelos juízes gera a seletividade e a partidarização dos processos judiciais, profundamente danosa para a democracia. No caso de ambas as instituições referendarem o atual padrão da operação lava-jato, o sistema político brasileiro terminará destruído. E aqui, como na Itália, não haverá nada para colocar no lugar.

Carta Maior


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