No Brasil “civilizado”, vemos a volta do recesso parlamentar,
reaquecimento das crises políticas e nova chuva de pautas conservadoras,
aliados ao lançamento da chamada Agenda Brasil e seu pacote de
intensificação do ajuste fiscal. No Brasil “dos comuns”, continua o
cerco aos direitos civis mais primordiais: aprova-se PL que tipifica o
terrorismo e São Paulo registra mais uma noite de sangue, com 20
assassinatos e fortes suspeitas sobre agentes do Estado. Em meio a tal
contexto, o Correio entrevistou a psicóloga Adriana Matsumoto.
“Especificamente no campo da segurança pública e da discussão da
violência dos agentes de Estado, um dos argumentos que sempre
utilizamos, e que transita em diferentes meios – acadêmico, militante
etc. – é a necessidade de o nosso país efetivamente avançar naquilo a
que havia se proposto após a saída da ditadura militar”, explicou ela,
uma das autoras do livro Desmilitarização da Polícia e da Política – Uma
Resposta que Virá das Ruas.
Além de explicar como se construiu o livro, numa combinação de
análises de estudiosos e grupos militantes de diversas áreas que se
chocam com as políticas oficiais de segurança pública, Adriana criticou o
atual momento político do país e coloca o tema da desmilitarização como
imposição do processo civilizatório. E completa elencando mecanismos de
construção de uma outra segurança pública, democrática e garantidora da
vida.
“Ainda que existam dificuldades, ou tenhamos críticas a forma de
participação social em políticas públicas, ainda precisamos provocar
maior mobilização no tema, ou seja, levar a uma maior participação da
sociedade civil na formulação e fiscalização das políticas de segurança
pública. Embora estejam garantidos constitucionalmente, a partir de
várias leis federais, tais prerrogativas não se veem na prática, não há
espaços efetivos de participação social”, afirmou.
A entrevista completa com Adriana Eiko Matsumoto, gravada nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Primeiramente, o que você pode contar a
respeito do livro “Desmilitarização da Polícia e da Política: uma
resposta que virá das ruas” e toda a sua composição de pontos de vista?
Adriana Eiko Matsumoto: O livro surge de uma
necessidade prática, com base nas questões oriundas dos enfrentamentos
dos movimentos sociais, diferentes militantes e coletivos, no sentido de
contribuir com discussões apuradas e leituras críticas que ajudem a
avançar em proposições no campo da segurança pública.
Nesse sentido, visamos colocar diversos olhares, desde os mais
acadêmicos até aqueles com prática de militância, de enfrentamento à
violência policial, perpetuada pelos agentes de Estado, a fim de ser um
instrumento de busca de transformação da realidade.
Entendemos que funciona como aquilo que Antonio Gramsci escreveu nos Cadernos do Cárcere:
precisamos operar com o “pessimismo da razão”, ou seja, precisamos
saturar nossa análise com criticidade e elementos que vão nos ajudar a
compreender melhor a realidade. Para, a partir disso, conseguirmos
operar com outra colocação de Gramsci, a do “otimismo da vontade”. Ou
seja, trata-se de trabalhar a potência de transformação e possibilidade
de mudança.
Correio da Cidadania: Mais especificamente, o que pode contar da sua contribuição ao livro?
Adriana Eiko Matsumoto: O artigo que escrevi versa
sobre a crise estrutural do capital e seus desdobramentos na gestão
penal e militarizada da miséria. É a compreensão de que se caracteriza
uma crise estrutural a partir de uma ampliação da dimensão destrutiva, o
que significa uma intensificação da participação do complexo
industrial-militar na nova ordem econômica.
Trabalho a partir de autores que me ajudam na ótica da crítica da
economia política, para entender o que significa a gestão penal e
militarizada da miséria, compreendendo o papel dos EUA, que em sua
vertente imperialista introduz uma forma de gestar a segurança pública,
com o controle penal e militarizado dos povos de países de capitalismo
periférico. Significa a construção da imagem de um inimigo, o que nos
países latinos, após as ditaduras, é um “inimigo interno”.
Em outros contextos, como no próprio território estadunidense, existe
a construção do “terrorista”, o que chega em nós também, pois temos em
tramitação no Congresso Nacional um projeto de lei (PL 2016/2015) que
versa sobre o terrorismo. Ou seja, somos contaminados por essas
diretrizes no campo da segurança, gestadas em outro contexto, com
intencionalidade muito clara: controle social frente às populações que
possam se insurgir contra o poder constituído.
Correio da Cidadania: Além disso, quais são os principais
argumentos em favor da desmilitarização da polícia e tais doutrinas de
segurança pública?
Adriana Eiko Matsumoto: De fato, são questões
complexas. É importante compreender que quando falamos de crise
estrutural do capital é que, de fato, há acirramento dos processos
destrutivos, que estão em diferentes ordens. Está, por exemplo, no campo
do trabalho, com o processo de precarização e a agenda de
flexibilização. No meu campo, da psicologia social, significa a condição
de trabalhadores cada vez mais colocados em situação de vulnerabilidade
de direitos. O trabalhador inserido em contextos de terceirização e
precarização vive processos de sofrimento e embrutecimento.
Do ponto de vista dos direitos sociais, que em verdade mostra uma
política social gestada mais pela ótica compensatória e residual, sem
mudança estrutural, temos a gestão da miséria a partir desse mesmo
olhar, que não compreende o sujeito atendido (a exemplo do usuário de
política públicas) como sujeito de direitos. É um sujeito, muitas vezes,
lido como “beneficiário” ou, na maioria dos casos, um pobre que merece,
no máximo, um favor público.
Especificamente no campo da segurança pública e da discussão da
violência dos agentes de Estado, um dos argumentos que sempre
utilizamos, e que transita em diferentes meios – acadêmico, militante
etc. – é a necessidade de o nosso país efetivamente avançar naquilo a
que havia se proposto após a saída da ditadura militar.
De alguma forma, avançamos na mudança de várias frentes das políticas
sociais, nossa Constituição Federal foi erigida por princípios
norteadores. Mas no campo da segurança mantivemos a mesma lógica, tanto
na formulação política como também no funcionamento da segurança
pública. É um argumento nosso que ajuda a pensar o que é,
historicamente, um país avançar no sentido de uma construção política
democrática.
Outro ponto é olharmos para aquilo sabido por todos: nosso país é um
dos líderes mundiais de letalidade policial, algo vergonhoso. De fato,
temos de conceber que temos um processo de extermínio e genocídio
programados, fundamentalmente contra a juventude negra. Quando
percebemos que o país, especialmente em SP e RJ, extermina em um ano
mais do que a soma de todos os países com pena de morte em lei, paramos
pra pensar: que engrenagem é essa que faz rodar a política de segurança
pública no Brasil?
Nossos argumento, portanto, advêm da realidade concreta, da
necessidade de construirmos minimamente uma agenda que possibilite a
continuidade da vida da nossa juventude negra.
Correio da Cidadania: Posto isso, qual a referência de vocês a respeito de política de segurança pública democrática?
Adriana Eiko Matsumoto: Quando pensamos no livro,
entre os diferentes autores, o que nos permeou foi a clareza de que a
pauta da desmilitarização incide em propostas ainda no nível de reforma,
numa base garantista de direitos. Significa que, de forma alguma, é uma
pauta revolucionária. Ainda precisamos avançar em direção a uma
reorganização de nossos sistemas para de fato garantir condições de vida
para a população brasileira.
Do ponto de vista de política de segurança pública democrática,
também estamos falando de um contexto ainda circunscrito a essa ótica de
segurança pública, que hoje fundamentalmente é constituída para
garantir o direito à propriedade privada, e não o direto de todos a
vida. O direito à propriedade que é, de fato, garantido. E ainda sem
superar isso temos pautas com as quais podemos nos aliar para avançar
enquanto país, coletivos etc.
No próprio processo de desmilitarização da polícia, há o sentido de
abolir seus códigos de conduta, quanto ao cumprimento cego de uma
hierarquia inquestionável por parte dos trabalhadores da segurança
pública, o que ajudaria a democratizar processos de trabalho. Pois
precisamos entender que também está em jogo o processo de trabalho e
como seria possível incidir em mudanças. Muitas denúncias têm sido
feitas a respeito do próprio processo de formação de tais trabalhadores.
Isso nos ajuda a pensar em quem é esse trabalhador e como queremos
formá-lo pra trabalhar na segurança pública sem a lógica do extermínio,
mas, sim, do trabalho integrado.
Também precisamos abolir o dispositivo do auto de resistência,
herança nefasta da ditadura, porque se não conseguimos compreender que o
sujeito deve ser investigado a partir das ações que cometer em serviço e
das mortes que causa no exercício de sua função de policial, perdemos a
oportunidade de compreender uma lógica democrática em nosso país e
autorizamos socialmente o extermínio programado. Portanto, abolir o auto
de resistência é um necessidade de uma política de segurança
democrática.
Por outro lado, ainda que existam dificuldades, ou tenhamos críticas a
forma de participação social em políticas públicas, ainda precisamos
provocar maior mobilização no tema, ou seja, levar a uma maior
participação da sociedade civil na formulação e fiscalização das
políticas de segurança pública. Embora estejam garantidos
constitucionalmente, a partir de várias leis federais, tais
prerrogativas não se veem na prática, não há espaços efetivos de
participação social. Precisamos avançar em tal contexto também.
Correio da Cidadania: Apesar de tudo, a impressão que se tem é
que a pauta da desmilitarização ganhou algum espaço após as
manifestações de junho de 2013. Acredita que tal pauta possa ganhar
apelo popular em meio a um ano marcado por tantos pautas conservadoras
em ebulição?
Adriana Eiko Matsumoto: São muitas questões. Sempre
comento com meus alunos e colegas que vivenciamos tempos sombrios. Por
exemplo, a pauta da redução da maioridade penal é síntese desse
movimento conservador e, mais, reacionário, que está sendo posto na
sociedade e no Congresso. Avalio que vivemos um acirramento das disputas
políticas. Em nosso processo de construção social, um tanto quanto
insidioso, que ainda não se estabeleceu concretamente em nossa vida
social, coloca-se a necessidade de discutirmos os projetos de sociedade
que estão sendo apresentados.
Esse acirramento é importante qualificar, porque pode ajudar a
compreender as disputas colocadas, e é bom termos clareza de que são
projetos totalmente diferentes em jogo. A maior parte da população vive a
precarização estrutural. Embora índices como a taxa de desemprego
tenham melhorado discretamente, podemos ver nas estatísticas que a
população acaba empregada no setor terciário, não produtivo, em condição
de precarização. Percebemos que nossa população vive na pele a condição
de precarização.
Potencialmente, pode dar condições de que pautas de emancipação
política lhe faça sentido. Claro que temos uma concorrência brutal no
âmbito da conscientização política, através da mídia hegemônica, em
especial as concessões públicas de TV, dadas às grandes empresas de
comunicação, que trabalham pelo fim das possibilidades de avanço na
consciência política da população.
No entanto, entendo que lidamos com tais questões não mais como
possibilidades; são exigências práticas. Lembro muito de Damião
Trindade, autor que considero muito e me ajuda a analisar o contexto
atual, em termos de direitos humanos e emancipação, que em algum momento
questionou se a barbárie seria de fato a possibilidade, se não teríamos
nada além disso. E em muitos textos ele diz: “barbárie se tivermos
sorte”. Trata-se, assim, do acirramento da crise estrutural do
capitalismo, aliado aos contextos de precarização e às políticas de
extermínio.
Temos de nos apropriar de tal pauta nos mais diferentes coletivos,
para o que o livro ajuda, pois traz tal debate para grupos e coletivos
que não necessariamente militam nesse campo específico. Precisamos
ampliar o número de pessoas e movimentos que de fato ajudem a discutir e
implementar a pauta da desmilitarização da polícia.
Enfim, é um movimento da história, não temos como prever, mas temos
percebido um crescimento. Diferentes organizações têm agregado o debate
às suas agendas. Portanto, precisamos qualificar e contribuir.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, como enxerga esse
momento, marcado por toda uma histeria na mídia, na sociedade e na
própria política, a respeito de pautas conservadora, a exemplo da
redução da maioridade penal? O que ela acarretaria caso aprovada?
Adriana Eiko Matsumoto: Sabemos que desde a
promulgação do ECA logo surgiu a PEC do estelionato eleitoral, a PEC
171, que visa alterar a própria legislação recém aprovada. De fato,
temos essa disputa em todos os níveis. Ainda viceja no imaginário
popular que o tipo de criança e adolescente que deve ter seus direitos
resguardados é o de classe média, branco. Ainda não conseguimos avançar,
do ponto de vista de sensibilizar a sociedade, que resguardar tais
direitos não é pauta pra debater a respeito de maioria a favor ou
contra. É condição sine qua non de processo civilizatório.
De fato, quando promulgado o ECA, ao qual podemos ter sérias críticas
no sentido de avançá-lo, precisamos lançar mão do argumento garantista,
já que ele está em xeque. Essa PEC 171 se qualifica como mais um dos
elementos do chamado movimento lei e ordem, que institui processos
legislativos mais duros e controladores, de diminuir direitos. É mais um
exemplo.
Assim, a redução da maioridade precisa unir toda a sociedade. Não é
simplesmente a redução da maioridade que está em jogo, e sim a
possibilidade de nossa sociedade ser capaz de reverter o quadro atual. É
sabido por todos os estudiosos do campo da criminologia e também da
criança e do adolescente, que possuem conhecimento especializado e
trabalham em tal contexto, que processos de punição, privação de
liberdade e retirada de direitos só geram mais violência.
A sociedade está buscando remediar o mal dando mais do veneno que ela
combater. Nem ouso pensar no que aconteceria se tal projeto fosse
implantado, tenho muito receio só de imaginar tal realidade. Perdemos
uma batalha na Câmara, mas precisamos rearticular o movimento e garantir
que não seja aprovada. Assim como precisamos incorporar em nossas
discussões outra proposta, inclusive vista com bons olhos por boa parte
do Congresso, que sugere o aumento da internação, como em São Paulo e
sua Fundação Casa. Isso também se traduz em política de encarceramento. E
o efeito será nefasto.
Estamos falando de uma juventude que tem o trabalho bastante
precarizado, como mostram as pesquisas do IPEA. A juventude que se
concentra em empregos precários é a que também sofre a maior quantidade
de mortes violentas. Uma juventude que passa por cada vez mais processos
de sofrimentos psíquicos, com aumento dos casos de suicídio, outra
expressão de um processo de não compreensão, ou impossibilidade, de se
ter projeto próprio de vida.
Se não investirmos agora, qual será o futuro da nossa juventude? Precisamos fazer o debate deste lado do front.
Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.
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