sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A lei, a moral e a religião são preconceitos que encobrem interesses burgueses



Quem são os proletários?

"O proletariado não é definido apenas a partir da pauperização extrema, mas da anulação completa de vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos não são recuperados em um processo político de reafirmação de si, não se trata de permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma moral e uma religião. Tais normatividades são negadas em uma negação sem retorno. É só assim que eles se tornam sujeitos políticos", escreve Vladimir Safatle, professor de Filosofia, em artigo publicado por CartaCapital, 05-08-2015.


Eis o artigo.

Não é difícil perceber como precisaremos passar por uma redefinição profunda sobre o que vem a ser uma política transformadora. Muitos acreditam não podermos colocar atualmente tais exigências de transformação por faltar sujeitos políticos constituídos que teriam a força de impulsionar processos. No Brasil e fora dele, vemos o descontentamento evidente com as promessas da vida social no interior do neoliberalismo, vemos o desencanto, mas não se segue daí a constituição de sujeitos capazes de forçar os limites do possível em direção a transformações estruturais. Tal situação talvez nos permita desmontar uma equação que imperou durante muito tempo no pensamento da esquerda brasileira, a saber, a de que o fundamento de uma subjetividade política com forte densidade seria dado pela constituição da consciência de classe do operariado.

Um dos eixos da crença na força política do Partido dos Trabalhadores veio, entre outros, dessa aposta na equação entre consciência operária e transformação social. Pouca coisa abalou a crença em tal equação. Nem a adesão de boa parte do operariado alemão ao nazismo nos anos 1930, assim como a queda paulatina dos bastões europeus de voto operário para as malhas da extrema-direita, nem a constituição do operariado americano em uma “nova classe média”, como dizia Wright-Mills, nem mesmo a adesão de lideranças sindicais ao choque neoliberal, como ocorreu na Polônia de Lech Walesa, serviu de motor para a autocrítica. Quando Francisco de Oliveira alertou para o processo de transformação da classe sindical brasileira em nova elite operadora do capitalismo nacional através, principalmente, da participação em fundos de pensão, não se seguiu daí a pergunta sobre se, afinal, o operariado tinha mesmo tal capacidade política de transformação.

Marx, ao desenvolver uma teoria da formação de sujeitos políticos, recuperou um antigo termo romano: “proletariado”. Conforme definido na Constituição Romana, proletário era a última das seis classes censitárias, classe composta por aqueles caracterizados por não terem propriedade alguma ou por não terem propriedades suficientes para serem contados como cidadãos com direito a voto e obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de procriar e ter filhos. Reduzidos assim à condição biopolítica mais elementar, à condição de reprodutor da população, os proletários representavam o que não se conta na vida social.

É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da Revolução de 1830, que o termo será paulatinamente acrescido de conotação política, agora para descrever os que só possuem seu salário diário pago de acordo com a necessidade básica de autoconservação, sejam camponeses, sejam operários, e que devem ser objetos de ações políticas feitas em nome da justiça social. Assim, os proletários não são ainda o nome de um sujeito político emergente, mas o nome de um ponto de sofrimento social. Exemplo claro neste sentido é o uso do termo feito por Saint-Simon.

Dessa forma, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou, antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil mais ou menos oculta na sociedade existente”. No entanto, para ter tal força política, o termo precisa descrever mais do que uma classe de despossuídos dos bens. Ele precisa descrever uma despossessão completa de si tão bem caracterizada por Marx em uma ideia como: “O proletário é desprovido de propriedade; sua relação com mulher e crianças não tem mais nada a ver com as relações da família burguesa; o trabalho industrial moderno, a moderna subsunção ao capital, tanto na Inglaterra quanto na França, na América quanto na Alemanha, retiraram dele todo caráter nacional. A lei, a moral, a religião são para ele preconceitos burgueses que encobrem vários interesses burgueses”.

Como vemos, o proletariado não é definido apenas a partir da pauperização extrema, mas da anulação completa de vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos não são recuperados em um processo político de reafirmação de si, não se trata de permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma moral e uma religião. Tais normatividades são negadas em uma negação sem retorno. É só assim que eles se tornam sujeitos políticos. Longe de necessariamente ser o conjunto do operariado, o proletariado pode descrever aqueles dispostos a afirmarem tal experiência de despossessão. Talvez não haja melhor momento para lembrar disto do que agora.
Para ler mais:

Ihu Unisinos 


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