Centenas de ativistas articulados pelo MTST ocupam administração da Construtora Viver, em 2014, protestando contra especulação imobiliária e pelo Direito à Moradia
E se for possível, como na Espanha apresentar projetos alternativos para as cidades, com base na experiência e lutas dos que querem transformá-las?
Por João Telésforo*
A crise urbana foi uma das principais chaves, senão a principal, da irrupção social de Junho de 2013. Essa crise tem raízes profundas e antigas, como o não enfrentamento à condição econômica e política dependente e subordinada do Brasil, que nos levou a acatar, desde a década de 1950, o projeto de empresas transnacionais de apostar fortemente no desenvolvimento de um mercado interno de consumo massivo de automóveis individuais motorizados, produzidos por elas. Não é por acaso que Brasília, síntese daquele modelo de desenvolvimento, tenha sido planejada, nos anos JK, para que seus habitantes circulassem sobretudo de carro.
Para superar crise de raízes tão profundas, não será o suficiente eleger Prefeitas e Vereadoras honestas e com boas ideias. Nem tampouco convocar boas técnicas; o urbanismo modernista, que se propunha a resolver os problemas sociais via planejamento tecnocrático, resultou na construção de Brasília, cujo Plano fez questão de segregar na periferia os operários que a construíram.
Ada Colau, eleita prefeita pela plataforma Barcelona em Comum, porta-voz do movimento social mais importante da Espanha nos últimos anos — o que luta contra despejo dos que não podem pagar moradia
A realização do direito à cidade passa pelo empoderamento e articulação de iniciativas sociais que enfrentam a segregação dos espaços urbanos segundo linhas de classe, raciais e de gênero. Refiro-me às diversas lutas e formas de organização construídas por amplas camadas populares para resistir e construir alternativas à lógica predatória que transforma direitos, desejos e política em mercadoria. Das ocupações de moradia às ocupações culturais e saraus da juventude de periferia; dos cursinhos populares à Marcha de Mulheres Negras; da resistência LGBT às greves de garis, professoras e metroviárias; das lutas pelo direito à água àquelas em defesa de Parques e áreas verdes, contra a destruição e a transformação de recursos naturais e conforto ambiental em itens de luxo, restritos aos ricos.
Essas redes tecidas no cotidiano da resistência popular, preta e periférica, do “Brasil com P”, fazem muito mais do que denunciar um modelo. Elas inventam circuitos de saberes, métodos de organização e afetos portadores de alternativas de sociabilidade e de produção material e simbólica do espaço urbano. Qualquer projeto político comprometido com a busca de saídas à crise das nossas cidades só pode partir delas.
A redução da política ao calendário eleitoral, promovida pela via da violência policial mas também da propaganda ideológica do capital, é um limite estrutural a ser superado para construir o direito à cidade. Isso não significa necessariamente abster-se das eleições, no entanto; a disputa do Estado, em todos os seus níveis, segue desempenhando papel crucial. Para isso, qualquer campanha comprometida com um projeto de transformação urbana de alta intensidade deve ser ocupada, inundada pela força produtiva transbordante desses sujeitos coletivos, pela inteligência criadora da multidão.
Para isso, não bastarão discursos. O desafio maior para fazer campanhas eleitorais em 2016 conectadas com essas redes (ou, melhor ainda, que partam delas) está em construir os métodos de organização, as tecnologias políticas, os procedimentos – embora também os discursos – que terão essa capacidade concreta. Para que não tenhamos simplesmente candidatos/as falando em nome dessas redes, ou parasitando-as, mas efetivamente campanhas construídas, hackeadas por elas.
Se não há fórmula universal para tanto, parece evidente que há uma tendência geral na conjuntura: nenhum partido terá capacidade mínima de exercer esse papel por si só – pelos limites de suas bases sociais, de seus discursos e de seus métodos de organização. Provavelmente não bastarão, tampouco, pelas três mesmas razões, as “frentes de esquerda”, alianças de partidos, eventualmente com mais um ou outro movimento.
A observação da insuficiência ou inadequação da forma partido em um número crescente de contextos tem levado à construção de tecnologias políticas alternativas, inclusive para a disputa eleitoral, em países tão diferentes como Bolívia e Espanha. Uma dessas tecnologias é a das plataformas cidadãs – como o Barcelona em Comum, que elegeu Ada Colau, porta-voz do movimento social mais importante da Espanha nos últimos anos (Plataforma de Afetados pela Hipoteca), a nova Prefeita de Barcelona. Talvez seja um bom momento para que, com inspiração em experiências como essa, mas conscientes das necessidades específicas e da pulsão criativa de cada cidade, ousemos dar esse passo também no Brasil.
Não adianta continuarmos simplesmente nos queixando dos burocratas partidários, de sua acomodação, de seu conservadorismo, de seus conchavos de cúpula e plenárias sonolentas. Nós, que queremos alternativas nas ruas mas também nos governos, precisamos nos encontrar mais para pensar em conjunto, para conspirar, para aprender e inventar jeitos de nos organizarmos nas lutas e nas eleições – para além das caixinhas partidárias e inclusive de rótulos ideológicos estreitos. E lançar iniciativas com nossas caras, construídas entre todas/os: com pluralidade, em comum.
*João Telésforo é Mestrando em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília e militante das Brigadas Populares.
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