terça-feira, 7 de abril de 2015

A Via Brasileira e a crise do paradigma Gramsciano



Ion de Andrade

Antonio Gramsci foi um dos mais geniais pensadores marxistas. Lançou as bases para uma compreensão mais aprofundada do Estado ampliado ou ocidental, segundo ele, que contrapôs ao Estado restrito ou oriental, existente na Rússia da revolução de 1917.

O “Estado restrito” em Gramsci é aquele que está quase totalmente resumido à “Sociedade Política” que por sua vez é a instância onde o poder do Estado é exercido pela força. O “Estado ampliado” é aquele no qual a Sociedade Política está envolvida pela “Sociedade Civil”, que é a área do Estado onde o poder é exercido com base no consenso, este último produzido por inúmeras organizações, privadas ou públicas, cujo trabalho está focado na cultura. Gramsci conceituou, portanto o Estado enquanto repressão + consenso.

A primeira lacuna em Gramsci decorre do fato de que, embora tenha percebido esse importante fenômeno, não atribuiu a ele uma “cronologia”, ou seja, caracterizou-o tipologicamente enquanto um Estado oriental e outro ocidental. Não teve, portanto, tempo de perceber a conexão “temporal” entre os dois, o que teria permitido que enxergasse que o capitalismo apresenta duas formas de Estado, uma restrita e outra ampliada, correspondentes a uma fase inferior e a uma fase superior desse modo de produção, existindo um “necessário” trânsito histórico da forma inferior para a superior e um gradiente de ampliação do Estado.

A ausência da percepção dessa cronologia impediu uma formulação sobre as causas profundas da ampliação do Estado, ou seja desse progressivo predomínio do consenso sobre a força, que poderia, simplesmente, ser denominado de “democratização”. Sem cronologia Gramsci não teve como enxergar que a ampliação do Estado é uma conquista dos trabalhadores, que vão impondo a sua influência através das suas organizações sindicais, partidárias e dos movimentos sociais, impondo o poder pelo consenso e a democratização do Estado. O processo, portanto, tem autor e é convergente com os interesses estratégicos do proletariado, razão porque considero, conforme formulo, que a ampliação do Estado é a própria revolução em movimento.

Outro problema relacionado é que, sem a percepção dessa “cronologia”, o pensamento Gramsciano não teve como perceber que a diluição da Sociedade Política na Sociedade Civil, que ele mesmo havia antevisto produzir-se na Sociedade Regulada, (o sociedade Socialista) avançava já antes do socialismo com a própria ampliação do Estado. De fato o Estado de direito moderno subordina legalmente a força ao consenso e define o suprimento dos cargos de alta hierarquia da Sociedade Política a escolhas realizadas pelas forças políticas majoritárias na democracia.

O próprio Poulantzas percebeu esta fragilidade em Gramsci e no seu livro, “O Estado, o Poder, o Socialismo” constata que a ideia de revolução como um cerco contínuo da Sociedade Política pela Sociedade Civil nunca fora superada em Gramsci.

Fato inevitável, Gramsci não deixou nos seus escritos, nem poderia, a receita do que os partidos de esquerda deveriam fazer chegando ao poder em Estados sumamente ampliados como os atuais. Ele não teorizou, é claro, sobre o momento contemporâneo no qual, em diversos países e não só no Brasil, partidos identificados com os trabalhadores tomam parte de governos nacionais, por vezes como força principal, e se veem obrigados a imprimir um rumo, através das políticas públicas que comandam, que não deveria ser outro, (se clarividência política tivessem), que não fosse o da emancipação dos trabalhadores. Gramsci pensou o fascismo e a Itália dos anos 30 e fez muito. Essa “lacuna” porém deixa órfã boa parte da esquerda, que não tem manuais sobre o que fazer no comando do Estado.

Para além de tudo, Gramsci foi influenciado em sua formulação, em grande medida, pela experiência de organização dos trabalhadores de Turin. A sua visão do protagonismo da revolução se assentava, portanto, na classe operária industrial clássica e não na cidadania contemporânea ampla e “indisciplinada” e que se move, à sua vontade, para os alvos que ela própria julga importantes, independentemente de partidos. A conexão entre a classe operária e essa cidadania que se exprime através dos movimentos sociais não era o fenômeno dominante do protagonismo revolucionário em sua época, mas hoje é...

O homem novo para Gramsci, o proletário emancipado, era o membro do partido, a um só tempo disciplinado e culto, capaz de levar adiante a luta pela hegemonia na Itália e, quando a circunstância o exigisse, de compor o partido exército a tomar a Sociedade Política... dificílimo personagem a produzir.

Não teve, portanto como perceber que essa cidadania atual, ousada e indisciplinada, é a expressão do próprio proletariado na superestrutura, não podendo existir, enquanto tal, se a visão de mundo do proletariado não existisse previamente naquela dada sociedade. Toda a formulação dos movimentos sociais de esquerda ecoa a visão de mundo do proletariado multiplicado numa miríade de aspirações políticas singulares.

A cidadania é portanto, conforme concebo, o brotamento superestrutural do próprio proletariado, ou a sua infantaria e artilharia nas lutas da Sociedade Civil. A fusão orgânica do proletariado com essa cidadania libertária, exprime o processo emancipatório como ele é, se parecendo mais com Paulo Freire e com a sua pedagogia da autonomia do que com Lenin e o seu partido exército. O homem novo para nós é o cidadão politizado e autônomo, conforme Paulo Freire, consciente dos seus interesses individuais e coletivos, capaz de tomar decisões e de participar do processo político em nível partidário ou nos movimentos sociais e de gerar o consenso em favor de mais democracia e participação, ampliando o Estado.

Adotou, entretanto Gramsci, por falta de outro modelo, uma espécie de leninismo tardio, precedido de um longo acúmulo de hegemonia na Sociedade Civil, condição prévia à tomada da Sociedade Política. Acrescente-se a isso o fato de que, não vendo a ampliação do Estado como um processo autoral do proletariado, tampouco enxergou a sua missão histórica: a de produzir mais e mais cidadãos emancipados, protagonistas de novas rodadas do processo de ampliação e democratização Estado, ao ponto de fazê-la irreversível.

Por tudo isso, o modelo Gramsciano de revolução nunca viu a luz do dia.

Vejamos o que ocorre no mundo real: 1) A esquerda avança na hegemonia; 2)assume o poder no Estado, mas já não há Sociedade Política a ser tomada, pois no essencial está subordinada à Sociedade Civil, 3) o enfrentamento político se cronifica à exaustão contra uma direita assestada, não na Sociedade Política, mas na própria Sociedade Civil que engoliu tudo; 4) após período de redução das assimetrias sociais mais expressivas e da miséria mais extrema, ou de “melhorias a qualidade de vida” o processo se exaure, pois não está guiado para produzir e libertar mais e mais protagonistas e não enxerga as etapas seguintes, 5) o poder popular se torna “conservador”, as conquistas devem, então, ser asseguradas contra o retrocesso, mas já não há sequer a sombra da construção de uma sociedade nova. Essa é a trava produzida no mundo real pelo paradigma Gramsciano.

Na Via Brasileira, entretanto, estamos obrigados à construção da “Cità futura” (a Cidade Futura) ENQUANTO lutamos pela hegemonia política, processo bem diferente daquele visualizado por Gramsci.

A luta pela hegemonia para nós não pode, portanto limitar-se à luta política convencional em sentido restrito, mas deve também avançar na construção do “Projeto de Sociedade” que é o papel do Estado e do governo. No caso brasileiro a tal Cità futura, se quisermos avançar na luta pela hegemonia, deve ser construída desde já. A construção do Projeto de Sociedade se converte assim numa nova modalidade de luta política cuja maior vantagem sobre as outras é a de a) produzir consenso de forma inigualável e b) libertar novos protagonistas (cidadãos) em nível exponencial.

Ilustrando o que dizemos, o enfrentamento da fome e da miséria sob Lula consolidou uma hegemonia que anteriormente não tínhamos, pois libertou cidadãos, como a hidrólise da água liberta oxigênio, tudo isso construindo o Projeto de Sociedade...

Mais que tudo, o governo, se quiser manter a experiência de poder popular no Brasil, deverá continuar a construir esse projeto de sociedade que é a melhor forma de libertar cidadãos protagonistas capazes de manter o processo em marcha.

Para isso precisa saber o que é o Projeto de Sociedade e o que é emancipar a cidadania.

Em Natal fizemos um Seminário sobre Desenvolvimento Local e Direito à Cidade. O governo deveria estudá-lo. Isso ajudaria muito.


Jornal Ggn


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