segunda-feira, 13 de abril de 2015
A Miséria a todos Corrompe
Renato Janine Ribeiro
Numa sociedade em que há miséria, ela só perdura porque os mais prósperos de algum modo se mostram indiferentes
Fiquei menos de um ano com esta coluna na Zero Hora, o jornal cujo formato eu adoro. Como já falava de política no Valor Econômico, quando me convidaram aqui me propus a falar de comportamento – outro assunto que me fascina, porque põe a política a serviço da vida, subordinando a discussão do poder à da vida. Esta experiência se encerra hoje, convidado que fui pela presidenta Dilma Rousseff para assumir o ministério da Educação. Sentirei falta desta página.
Quero falar da miséria. No século 19, o Brasil era famoso pela escravatura. Darwin, o célebre Darwin, quando o navio em que está deixa o Brasil, diz que espera nunca mais pisar numa terra que tenha escravos.
Aos poucos, vai se formando a ideia de que a escravidão corrompe a todos, inclusive e principalmente aos não escravos, aquela maioria de brancos dos quais muitos compram um cativo negro, ou para trabalhar em plantações, ou simplesmente para servi-los em casa, como o equivalente de empregados domésticos só que reduzidos a coisas, a propriedade.
Uma amiga no Facebook, Marcia Sofia Figueiredo, conta que trabalhou como empregada – antes de estudar e graças ao ProUni fazer universidade – numa casa que tinha, na sala de jantar, a reprodução de uma gravura de Debret com o título de “castigos domésticos”. Os empregados serviam as refeições vendo como a família gostaria de tratá-los: com o chicote. Numa hipótese generosa, os patrões eram inconscientes. Na mais provável, eram sádicos. Em pleno século 21, sonhavam com empregados que fossem coisas, sem nenhum direito.
A miséria é o equivalente atual da escravatura. As duas são infames. Mas o importante é que a infâmia, a vergonha, deve ser não do miserável ou do escravo, mas de quem se cala sobre essa desonra à condição humana. Numa sociedade com escravos, o trabalho manual (e não só o manual) é desdenhado porque fica associado à condição servil. Quem trabalha de verdade é visto com chacota. A marca da liberdade é a preguiça, a indolência, a displicência. Ainda não sumiu de todo o sonho de ter uma sinecura, um emprego público que não exija o trabalho, a presença. Pensem quanto atraso econômico — além do estrago humano — isso causou em nosso país.
Numa sociedade em que há miséria, ela só perdura porque os mais prósperos de algum modo se mostram indiferentes a essa outra infâmia. Nas eras de escassez, talvez se explicasse haver pobreza e mesmo miséria. Talvez. Mas desde que as máquinas aumentaram vertiginosamente a produtividade, não há mais razão para escassez, para pobreza e menos ainda miséria. Se ela existe, é por descaso de quem não a vivencia. É porque falta um mínimo de compaixão, de solidariedade com quem está na miséria.
Em nosso tempo, é possível – economicamente – todos comerem, se vestirem, terem uma vida com dignidade. Quando não a têm, que vergonha. Mas a vergonha não é do humilhado, e sim de quem o coloca ou deixa nessa posição. Não pode mais haver miséria. Precisamos extingui-la.
* Professor titular de Ética e Filosofia na USP e atual Ministro da Educação. Escreveu quinzenalmente no caderno PrOA até deixar o espaço ao assumir o cargo.
Caderno Proa
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