sábado, 25 de abril de 2015

Novas formas de sofrer no Brasil da Retomada



.
Christian Ingo Lenz Dunker
 
Dois problemas, ou processos, se cruzam, no Brasil dos últimos 20 anos, fazendo com que pensemos em uma mudança estrutural de nossas formas de sofrimento. O primeiro problema é o que podemos chamar de expansão da racionalidade diagnóstica no Brasil pós-inflacionário. Desde então passamos, gradualmente, a entender nossa vida no trabalho, na escola e na comunidade a partir de avaliações. Avaliações, que justificam intervenções que geram novas avaliações. Métricas, orientação para resultados, comparações e cálculo de valores agregados tornaram-se parte e nossa forma de vida comum como nunca antes. Isso justifica, em parte, o crescimento dos diagnósticos de todo tipo: psicológico, educacional, corporativo, jurídico e assim por diante. E não há diagnóstico sem sintoma. Na psicanálise isso se mostrou como uma preocupação ascendente com a psicopatologia e com o tema dos sintomas, os chamados “novos sintomas”: pânicos, depressão, drogadição, anorexia. Esses novos sintomas têm uma coisa em comum. Eles não se organizam a partir do conflito entre o que é proibido e o que é obrigatório, como os sintomas clássicos derivados da contradição entre o desejo e a lei. Os novos sintomas dizem respeito à oposição entre potência e impotência, e eles são determinados por uma crise na intensidade do desejo, ou no que a psicanálise chama de relação entre desejo e gozo.



Paralelamente temos que reconhecer um segundo processo, que tem relação com a profunda reorganização social que o Brasil sofreu nestes últimos 20 anos. Deixamos de nos pensar a partir de divisões como “campo ou cidade”, “desenvolvimento ou subdesenvolvimento”, “nacional ou estrangeiro”, e passamos a tematizar nossas divisões internas em termos da distribuição de recursos ou renda e de acesso a bens simbólicos como saúde, justiça e educação. O deslocamento social da ralé para a pobreza, da pobreza para a classe média, bem como da classe média para cima e para baixo tornou-se real. Isso produziu uma modificação estrutural do mal-estar. O mal-estar (Unbehagen) é uma noção intuitivamente acessível, mas difícil de conceitualizar. Todos nós já passamos por aquela situação na qual o que deveria ter ficado tácito e pressuposto vem à tona, revelando um desencontro de expectativas e rasgando o semblante de nossa representação social. Algo análogo teria acontecido nesta nova configuração do mal-estar quando ficou claro que algo havia se rompido nos pactos que formaram a brasilidade até então. Há um descompasso entre a transformação e a nomeação da transformação. O mal-estar é a experiência desta zona de indeterminação, anomia e contingência que acompanha toda transformação, mas também todo fracasso transformativo, por isso seu afeto fundamental foi pensado por Freud como sendo a angústia e suas variações mais próximas: sentimento de culpa, desamparo e ansiedade expectante.

Temos então de um lado estes novos sintomas e do outro esta mutação do mal-estar. Entre eles é possível situar a transformação de nossas maneiras de sofrer. O sofrimento possui três características importantes, que explicam porque ele é uma espécie de ponte ou de caminho pelo qual particularizamos o mal-estar na forma de sintomas:

Todo sofrimento é transitivista. Quando sofremos criamos identificações, nas quais o agente e o paciente da ação se indeterminam mutuamente. Exemplo: uma pessoa querida adoece. Ela sofre porque perde sua saúde, você sofre porque ela sofre, ela sofre porque você sofre porque ela sofre, e assim por diante envolvendo todos os que amam aquele que sofre. Vem daí a irresistível tentação, diante de uma história de sofrimento, de contar uma história pior, mais trágica, mais infeliz, mais terrível.

O sofrimento depende de relações de reconhecimento. A experiência de sofrimento que é reconhecida, seja por aqueles que nos cercam, seja pelo Estado, é diferente do sofrimento sobre o qual paira o silêncio, a invisibilidade ou a indiferença. Há, portanto uma política do sofrimento que estabelece para cada comunidade qual demanda deve ser sancionada como legítima e qual deve ser reduzida ao que Freud chamava de sofrimento ordinário.

O sofrimento se estrutura como uma narrativa. Ao contrário da dor, que permanece mais ou menos igual a si mesma, o sofrimento exprime-se em séries transformativas, ele se realiza por meio de um enredo, ele convoca personagens (como a vítima e o carrasco). A experiência de sofrimento envolve a transferência e a partilha de um saber sobre suas causas, motivos e razões. O sofrimento varia radicalmente em conformidade com o saber que se organiza em torno e por meio dele.

Para efeitos de simplificação poderia dizer que estas três condições do sofrimento se sintetizam no que os filósofos antigos chamavam de sentimento. O sentimento é uma categoria essencialmente social, que reúne e resolve contradições inerentes ao mal estar. Disse anteriormente que o mal-estar é sempre um fracasso de nomeação, e quando ele se nomeia perfeitamente o pior se enuncia no horizonte. Ora, uma índice de como o mal-estar se combina com os sintomas na experiência de reconhecimento narrativa e transitiva do sofrimento é justamente a noção de sentimento. Como dizia Lacan o sentimento, mente. Mas é esta mentira que nos permite localizar outro lugar onde estará o grão de verdade faltante.

O que caracteriza o Brasil dos anos 1984 em diante não é apenas uma redemocratização do país, a abertura gradual de sua economia ou a modernização de suas práticas institucionais. Mudamos nossa forma de sofrer, e, como argumentei acima, de reconhecer, partilhar e narrar nosso sofrimento. Isso poderia ser ilustrado pelo que aconteceu com o nosso cinema, particularmente no período de 1997 a 2007, com o chamado Cinema da Retomada. De repente quatro temas ganharam as telas: a traição e a vingança, a invasão de privacidade, a deriva errática de destinos e a “cosmética” da fome e da pobreza. Todas estas narrativas são convergentes com o nome que encontramos para o nosso novo mal-estar: a violência. Meu argumento aqui não é apenas constatativo. Ele aponta para o fato de que a violência está sobrecarregando e condensando muita coisa, talvez coisas demais: a corrupção, a diferença de classes, a tensão entre gêneros, a má distribuição de recursos, a precariedade institucional. Ou seja, o engodo está em pensar que tudo isso tem um nome só, violência, e que, portanto, ao “combatermos” este problema estamos resolvendo todo a resto que nele se comprime. Nada mais falso.

Há um antropólogo, chamado Clemens, que na década de 1930 fez uma pesquisa transcultural estudando como os diferentes povos e civilizações narram seu sofrimento, notadamente no contexto de interpretação social da experiência de adoecimento, e na interpretação narrativa de suas causas. Ele observou que nossa imaginação quanto às diferentes maneiras de sofrer é bastante curta e repetitiva. Nós não conseguimos sair de quatro hipóteses:

Violação de um pacto. Ou seja, acreditamos que o sofrimento deriva do não cumprimento de um pacto, ou da sua não realização adequada ou da usurpação de seu sentido. Essa é a nossa teoria trivial de que se estamos em desgraça é porque é porque algo ou alguém está descumprindo a lei. Como se se todos agissem em conformidade e adequação com a lei o sofrimento se extinguiria. Ora, no Brasil dos últimos vinte anos há uma maneira nova de pensar o pacto social, que inverte esta teoria. Surge uma percepção de que a lei pode ser usada de forma contrária ao espírito do pacto que a originou. Isso cria um sentimento social que domina uma de nossas novas narrativas de sofrimento, a saber, o ressentimento. O ressentido não é aquele que perdeu, mas aquele que acha que no fundo o jogo é injusto. Ele acha que o Outro tem muito mais poderes do que ele realmente tem, por isso está sempre apaixonado por sua própria inferioridade.

A segunda narrativa clássica para dar forma de linguagem ao sofrimento é a narrativa da perda da alma. E aqui sofremos porque não conseguimos mais nos reconhecer no que fazemos ou em quem nos tornamos. Pensem naquelas pessoas que mudam de classe social ou de padrão de consumo e que de repente são percebidas como inautênticas, postiças, habitando um mundo de mera aparência, por exemplo, como os novos ricos (emergentes). Pensem também naqueles que estão corroídos por uma espécie de sentimento de inadequação existencial, incorrigível e persistente. Uma espécie de vergonha incurável, que não diz respeito ao que alguém faz, que pode ser progressivamente aperfeiçoado, mas que é uma vergonha de ser.

A terceira forma de sofrer, que vem ganhando força entre nós, está referida à hipótese do objeto intrusivo. Ou seja, diante do sofrimento logo interpreto que há alguém a-mais em meu território que está desequilibrando o ambiente e tirando a suposta pureza e harmonia na qual vivíamos antes. Este é o caso tanto da vida murada, em forma de condomínio, que precisa defender-se permanentemente do outro percebido como perigoso, quando das erupções de preconceito e segregação inspirada na homofobia, na opressão contra as minorias sentidas como “perigosas”. Obviamente esta forma de sofrimento refere-se a uma patologia da inveja, ou seja, uma transformação do sentimento de que o outro, com sua própria modalidade de gozo, pode estar mais feliz do que eu, gera a resposta de negação. Uma recusa a reconhecer que isso que é sentido como uma espécie de ostentação ou de exibicionismo é uma espécie de inveja mal tratada em nós mesmos.

A quarta maneira ascendente de sofrer no Brasil da Retomada apoia-se no que Clemens chamou de narrativa da perda da unidade do espírito, ou do sentimento de desregulação entre os sistemas que compõe nossa forma de vida. É o que os sociólogos chamam de anomia e que se expressa em sentimentos como o desamparo, a desorientação e no nosso estranhamento com relação ao tempo ou ao espaço que vivemos. Isso pode se dar por meio de sintomas como o sentimento de inadequação persistente em relação ao próprio corpo, à própria família, à própria vida laboral.

Podemos ver que estas novas formas de sofrimento apoiam-se em discursos antes fartamente disponíveis no Brasil e indissociáveis de nossa formação histórica. O Brasil do jeitinho e do “para os amigos tudo, para os inimigos a lei” deu nesta obsessão com a corrupção e com a purificação dos interesses. O Brasil da opressão de classe e dos latifúndios deu no ressentimento contra a recente mobilidade social. O Brasil da racialização engendrou o sofrimento com a insegurança e com o perigo das classes criminosas e com as patologias do consumo. Por fim, o Brasil da mistura, do sincretismo e da desordem pariu esta nova forma de desorientação que habita as vidas depressivas, sem ideais e sem rumo, que se tornam presas fáceis para novos discursos “ordenadores”.

Espero que essa breve decomposição permita iluminar porque a combinação entre ressentimento, vergonha, inveja e desamparo funde-se no ódio que tem dividido o país. A indignação que este transpira não é só porque enfrentamos problemas novos, mas também porque as novas formas de narrar e de partilhar o sofrimento ainda não foram propriamente reconhecidas, nem institucionalmente, nem em termos discursivos. Quando isso acontece é simples recuarmos para uma variação mais simples da angústia, que é o medo, e a partir dele pressupor no outro a violência que se está a praticar.

A dimensão estética da experiência caracteriza de modo cada vez mais intenso nossa apreciação dos laços de desejo, de amor e de gozo. Em Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, proponho discutir algumas novas formas de sofrimento que psicoterapeutas e psicanalistas estão enfrentando tendo em vista o sujeito estético e seu eventual apagamento na contemporaneidade. Nesse sentido, abordo as modalidades de tratamento espontâneo do sofrimento com especial atenção aos sentimentos de desamparo, de ressentimento, de inveja e de vergonha.

Boitempo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...