segunda-feira, 13 de abril de 2015
Liberais, libertários e marxistas na geleia geral brasileira
Luiz Eduardo Soares
1. A onda conservadora no Congresso, sob a batuta do que há de pior no PMDB — que ocupou o espaço deixado vazio pela desmoralização do PT e do governo —, ameaça tanto as conquistas sociais e os direitos civis e trabalhistas, quanto a crise provocada pelo bonapartismo arrogante e obscurantista de Dilma. A pauta reacionária no Parlamento inclui a consagração da terceirização, a redução da idade de imputabilidade penal e a revogação dos avanços no controle de armas. Por sua vez, os efeitos da crise econômica podem vir a dilapidar a redução das desigualdades e o aumento da renda dos mais vulneráveis, gerando desemprego e decepções em larga escala.
Tão dramático quanto este quadro é o seguinte: a miséria herdada mais imobiliza do que potencializa a participação cidadã e política; mas a perda do que se conquistou estimula a mobilização, com frequência, regressiva, ressentida, tendente a deixar-se capitalizar pelas forças mais conservadoras, quando não propriamente autoritárias. À direita, mais provavelmente, mas também à esquerda.
Por isso, em vez de frentes de esquerda sectárias, estreitas, enamoradas do chavismo e dos populismos autoritários, trata-se, e com urgência, de contribuir para a tessitura de uma frente ampla democrática — mais ao nível da sociedade do que dos partidos —, capaz de defender as conquistas e os direitos. A frente estreita esquerdista que está sendo construída é composta por lideranças e partidos que não foram capazes de enxergar aonde nos conduzia a política econômica desastrada de Dilma, ao longo do primeiro mandato, e que tampouco compreenderam como e por que a adesão do governo e do PT aos métodos políticos tradicionais, e sua tolerância com a corrupção, aprofundariam o descrédito da política, atingindo o coração da democracia.
Essa frente de esquerda não só é impotente para barrar os assaltos reacionários contra os direitos, como reduz as chances de que se constitua um arco de alianças suficientemente amplo em defesa das conquistas e dos direitos ameaçados, seja pela ação parlamentar conservadora, seja pela crise econômica. A frente esquerdista, entretanto, interessa ao bloco no poder, sobretudo a Dilma e ao PT, porque reproduz o discurso e o simbolismo da bipolarização. Isso é tudo o que o PT quer, reeditando a tática que aplicou na campanha. O dualismo do tipo guerra fria, em que o outro não é alvo de crítica e divergência, mas de condenação moral, em que o adversário é inimigo, em que o contencioso opõe povo e elites, bolivarianismo e neoliberalismo, este falso dualismo salva o PT e Dilma, tornando-os o eixo em torno do qual vão girar as alianças possíveis.
De meu ponto de vista, quem sustenta que a saída da crise é pela esquerda não entendeu rigorosamente nada sobre nosso passado e nosso presente, e está brincando com nosso futuro. A saída é uma ampla coalizão em torno dos direitos e das conquistas, em diálogo com as ruas, envolvendo a mobilização não aparelhada da sociedade, disputando o justo sentimento de indignação e evitando que ele seja capturado pela direita. O horizonte, isto é, o futuro a buscar é uma governança transparente, rigorosamente refratária à corrupção, aberta à participação, respeitando os direitos históricos dos trabalhadores, comprometida com a pauta humanista, os direitos humanos, os direitos dos indígenas, com a sustentabilidade e a redução das desigualdades, e refratária a improvisações irresponsáveis de efeitos destrutivos, sob a forma de um capitalismo de Estado ou de um projeto populista desenvolvimentista.
Não está na agenda histórica socialismo nenhum. Está na agenda a defesa dos direitos duramente conquistados e a disputa pelos setores de classe média — e não só — que o PT empurrou para a direita, com seu apetite despolitizado pelo poder. As classificações simplistas e maniqueístas servem à bipolarização e ao governo e seus sócios, no Congresso. Não servem para pensar, dialogar e fazer política de novo tipo, cuja hora chegou.
2. Entre as desditas brasileiras estão seus liberais. No Brasil, desgraçadamente, os liberais apoiaram a escravidão e a ditadura. Jamais compreenderam e abraçaram a matriz axiológica que formou a filosofia política com a qual, supostamente, identificam-se. Por isso, agem e pensam como falcões conservadores e autoritários. Em sua maioria, são contrários à legalização das drogas, abrem mão do respeito rigoroso aos direitos humanos, defendem a redução da idade de imputabilidade penal, aceitam atropelos das garantias individuais, subestimam a linguagem dos direitos, ridicularizam a linguagem politicamente correta, subestimam o racismo, a homofobia, a misoginia, as desigualdades de oportunidades com que a sociedade acolhe as crianças, condenando-as a repetir a sina subalterna dos pais. Não compreendem essas bandeiras progressistas cuja origem é liberal e burguesa, e remontam a 1789. De fato, os liberais brasileiros retiveram de sua tradição apenas o credo econômico, e mesmo assim o suspendiam quando lhes interessava a intervenção estatal, em seu benefício. Propagavam a livre iniciativa mas repudiavam o risco. No passado foi assim, e continua sendo. Ou seja, não há, salvo raríssimas exceções, liberais no Brasil.
Vejam o caso do PSDB. O que restou do liberalismo social-democrata digno deste nome? O partido é o espelho do que critica e exibe uma pauta regressiva, além de reativa. Degradou-se numa variação do Dem/PFL e similares.
Qual é o partido liberal brasileiro, no sentido forte e pleno da palavra, capaz de postular equidade, compaixão e a agenda libertária, além das bandeiras estritamente econômicas? Acho engraçado os jovens liberais brasileiros ingressando na arena pública. Mais do mesmo, yuppies ignorantes da história do pensamento político, neoconservadores inconscientes de si.
Qual a implicação? A agenda libertária tem sido defendida, em boa parte, por partidos e segmentos neomarxistas ou marxistas. Muito curioso. Marx escreveu contra os direitos humanos, que considerava mera expressão da ideologia burguesa. A tradição política marxista jamais identificou-se com as pautas libertárias e dos direitos humanos, na teoria, muito menos na prática. Há, portanto, aí, um lance de, digamos, oportunidade. Compreensível. Menos mal. Isso ajuda, é positivo, ainda que sempre haja o risco de que levem estas bandeiras para o gueto político. Entretanto, cabe a indagação: que futuro tem o compromisso desses atores políticos com esta pauta? Qual a consistência histórica deste engajamento? Que implicações haverá para os movimentos libertários e dos direitos humanos?
Assim, entende-se a encrenca nacional. Os liberais são antiliberais. Os marxistas os substituem e erguem suas bandeiras, provisoriamente. Os ativistas libertários estão, em certa medida, perdidos, sem bússola, transitando por mapas imaginários que não correspondem às cartografias político-ideológicas reais. Quem ganha com a confusão? Os conservadores de todas as estirpes. Os militantes dos direitos humanos precisamos conversar mais e em mais profundidade. Nossos encontros não podem continuar a ser apenas a proclamação autoindulgente do que já sabemos.
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Luiz Eduardo Soares é antropólogo.
Gramsci e o Brasil
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