quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Ser cristão em tempos de contra-revolução



Eduardo Hoornaert


1. Entre revolução e contra-revolução.

Os bispos latino-americanos começam a se reunir regularmente (a partir dos anos 1960) num momento da história em que diversos processos revolucionários estão em curso, tanto na União Soviética como em Cuba e na China (revolução cultural). Fala-se em ‘crise do capitalismo’ e na formação de uma ‘aliança internacional socialista’. Além disso, há a revolta estudantil de maio 1968 na França. Desde João XXIII (1958-1963), os sinais revolucionários se multiplicam igualmente no seio da igreja católica: o Vaticano II (1960) e Medellín (1968) são os pontos altos. Mas já dá para sentir ventos contra-revolucionários. O ‘golpe de Sucre’ (dezembro 1972) iça ao poder a figura de Lopez Trujillo (1935-2008) que, na qualidade de secretário do Celam, emite os primeiros sinais ameaçadores.

 O movimento contra-revolucionário se fortalece consideravelmente nos anos 1980 com a aliança (tácita) entre Tatcher (1977-1990) na Inglaterra, Reagan (1981-1989) nos Estados Unidos e João Paulo II (1978-2005) em Roma. Protegidos por essa aliança de cúpula, movimentos eclesiásticos contra-revolucionários se sucedem e culminam no Sínodo Romano para a América (1997) com a ‘Nova Evangelização’ de JP II, que pode constar com o apoio de movimentos que já praticam a ‘nova evangelização’, como os Cursilhos da Cristandade (1950, Espanha), a Renovação carismática (1960, EEUU), o Neocatecumenato (Espanha), o Opus Dei (Espanha) e outros. Fortalecido por esse apoio logístico, o Sínodo de 1997 tem na prática uma influência maior sobre a vida da igreja católica que as assembléias episcopais de Puebla (1979) e Santo Domingo (1992). Em Roma desaparece o tema do pobre. Só não se consegue derrubar Medellín 1968 e assim podemos dizer que, na virada do século, há duas forças efetivas no seio da igreja católica latino-americana: Medellín 1968 (’opção pelo pobre’) e o Sínodo romano 1997 (‘nova evangelização’). A força de Medellín está na efetiva inserção de setores da igreja católica em bairros populares (Cebs, desde antes de 1968). A ‘igreja pobre’ (o ‘Pacto das Catacumbas’ no Vaticano II em torno da liderança de Dom Hélder Câmara) existe efetivamente, o que se manifesta na geração excepcional de bispos dos anos 1970-1990. Assim, Medellín continua sendo, até hoje, uma realidade concreta, não uma palavra no ar. Da mesma forma (mas no sentido oposto), o sínodo romano de 1997, acima descrito, continua vivo por meio dos movimentos acima citados. Desde 1997, os documentos emitidos pelos bispos latino-americanos ficam sujeitos a duas interpretações: uma no espírito de Medellín 1968, outra no espírito do Sínodo 1997. Isso é típico no recente documento de Aparecida 2007.



2. Porque as revoluções do século XX não deram certo?

Essa oscilação entre revolução e contra-revolução (e aparente vitória dessa última) apela para a reflexão sobre uma questão de fundo: porque as revoluções do século XX – em geral - não deram certo? Foram elas derrotadas por forças de fora ou destruíram-se a si mesmas? Vejamos brevemente três casos paradigmáticos: o nazismo na Alemanha (1920-45), a experiência soviética na Rússia (1917-1989) e a revolução cultural na China (década de 1960). Não dá para entrar em detalhes aqui, mas pode-se dizer que, em todas essas experiências, os próprios agentes destruíram o projeto por seu comportamento após a vitória factual do movimento. Essas experiências não resistiram ao choque com o ser humano ‘tal qual é’. Não se deve atribuir a queda desses movimentos a fatores externos (burocracia, partido único, monstruosidade do chefe, vitória da contra-espionagem, etc), mas a uma dinâmica interna, ao ‘demasiadamente humano’ (como diria Nietzsche). Não dá para ‘demonizar’ esses movimentos, pois eles tiveram a coragem de colocar no centro da cena mundial, pela primeira vez na história da humanidade, a questão social.

Antes de 1934, o nazismo aparece diante dos alemães como uma alternativa válida entre comunismo e capitalismo, com sua insistência na disciplina e na ‘força da vontade’ (Nietzsche). Mas nos grandes espetáculos de Nürenberg 1934 fica claro que tudo está desvirtuado. Hitler não é radical demais (como se diz), ao contrário, ele não é bastante radical: ao invés de atacar os grandes grupos capitalistas da Alemanha, ele prefere atiçar o subconsciente racista do povo alemão, com o resultado conhecido. Ele se mostra fraco diante do ‘humano, demasiadamente humano’. Mao não erra por promover uma revolução cultural (‘o grande salto para frente’), mas por não prever, com o indispensável realismo, o resultado desastroso da explosão do subconsciente reprimido de estudantes e operários (agentes da revolução por toda a extensão do país), que derrotam o projeto por seu comportamento explosivo, violento, humilhante e revanchista. No caso da União soviética se pode dizer que Stalin não erra ao tentar unificar a dinâmica dos ‘soviets’ (assembléias), mas que ele se vê envolvido numa paranóia sem fim de ‘expurgos’ e acusações, num círculo vicioso de desconfianças e suspeitas posto em movimento por ele mesmo.

Neste ponto de nossa reflexão, vale a pena evocar uma revolução que deu certo: a revolução francesa do final do século XVIII. A diferença com as revoluções do século XX salta aos olhos. Mesmo seguido de um longo e penoso processo de movimentos reacionários, a RF foi tão bem sucedida que se tornou modelo de sucessivas revoluções políticas pelo mundo afora, até nossos dias (república, divisão do poder entre três instâncias públicas, a democracia). Desde o último decênio do século XVIII, o mais importante não é o que se passa em Paris, mas o que acontece nas mentes de inúmeras pessoas pelo mundo: um entusiasmo contagioso. Pois até hoje, a irradiação das idéias novas de 1789 se processa pelo mundo.



3. O espírito da revolução.

Vale a pena evocar aqui a reflexão que o filósofo alemão Hegel, contemporâneo da RF e entusiasmado com o que estava acontecendo na França, fez em 1807 no seu livro ‘Fenomenologia do Espírito’. Ele escreve, em resumo, que qualquer revolução bem sucedida se compõe de dois elementos: (1) a revolução factual (que aparece); (2) o trabalho espiritual (que não aparece). O (2) tem de preceder o (1) para que uma revolução seja bem sucedida. Hegel: ‘O tecer silencioso do espírito antecede sua manifestação’. A revolução factual é decorrência natural da reforma espiritual. Sem reforma espiritual no dia-a-dia da vida, não existe verdadeira revolução. Hegel descreve a ação do ‘espírito verdadeiro’ (em oposição ao ‘espírito alienado’ ) por meio da imagem do tecelão que tece sua rede no silêncio de um trabalho paciente, persistente e cotidiano.

Com essa colocação, Hegel toca no coração do cristianismo, que – em última análise – é um movimento do espírito. Ele fornece aos teólogos cristãos a ‘senha perdida’ de compreensão de um dos principais temas bíblicos: o espírito. Efetivamente, durante séculos, os teólogos cristãos leram as evocações do espírito (espírito de Abraão, de Moisés, dos profetas, de Davi, de Jesus) com ‘olhos gregos’. O ‘espírito grego’ não se interessa pela ‘baixa’ vida material (dos corpos humanos perecíveis) e só age na parte nobre do ser humano (a alma imaterial). Essa leitura equivocada da bíblia funcionou durante muitos séculos e só foi derrubada por filósofos modernos como Hegel, Kant e Diderot. A ‘senha perdida’ (ou esquecida) consiste em seguir a Jesus, não a Platão. No pensamento platônico, como todos sabemos, a ‘espiritualidade’ não tem nada a ver com política nem com problemas ‘materiais’. Hoje, o Espírito Santo (recuperado na teologia da libertação) salva o cristianismo da terrível acomodação que fortalece o poder dos poucos que mandam num mundo movido pelo dinheiro. O espírito diz: ‘Não se deve temer o poder por ele ser forte. Pelo contrário: o poder só é forte porque as pessoas o temem’. Enquanto fazemos o papel de Bela Adormecida esperando o beijo do Príncipe Encantado, nada muda. Enquanto dizemos ‘não podemos fazer nada’, nada acontece.



4. O sentido de ‘causas perdidas’.

Portanto, vale a pena engajar-se em ‘causas perdidas’, em seguimento da ‘causa perdida’ de Jesus (humilhado, desprezado, rejeitado, crucificado, assassinado). Pois o realmente importante, na longa história do cristianismo, é a história das causas perdidas. O resto é supérfluo. Por quê? Porque as causas perdidas constituem o motor da história. Elas indicam como errar menos e acertar melhor, encontrar brechas num sistema que parece irremediável (como o capitalismo). Isso vale particularmente para os dias de hoje, quando não tem mais cabimento continuar falando em ‘crise do capitalismo’ ou ‘alternativa socialista’. A história recente mostra que o capitalismo não se combate por alguma força de fora (‘o’ socialismo, ‘o’ comunismo), como se fossem ‘entidades’ constituídas fora da subjetividade das pessoas. Quando falamos em ‘capitalismo’, estamos falando de algo que se origina dentro das pessoas. O capitalismo é o resultante da interação de muitos milhões de pessoas que produzem, vendem e compram com um só intuito principal: lucrar. O termo projeta no plano objetivo algo de caráter subjetivo (como faz a bíblia quando usa o termo ‘demônio’ ou ‘besta fera’). Quando se diz que o capitalismo é a besta fera de nossos tempos, diz-se que nós mesmos sustentamos o capitalismo por meio de nossas ações cotidianas. Em termos religiosos: o capitalismo é um pecado (a teologia da libertação fala em ‘pecado estrutural’). Vivemos em ‘estado de pecado’ quando colocamos tudo a serviço do lucro. O capitalismo terá de se corrigir a si mesmo, por dentro, por meio da lei da ação e reação (mais uma referência à filosofia de Hegel). Um povo que, no seu dia-a-dia (sem necessariamente recorrer a ações espetaculares) reage, reclama, exige direitos, delata corruptos, ‘terroriza’ autoridades por posturas de discordância, colabora com a polícia em busca dos corruptos, não faz negócio com corrupto, não suporta um comportamento público corrupto, nunca elege um político corrupto, é um povo que deixa de ser a ‘bela adormecida’ que aguarda o desenrolar da história automática, um povo que ‘terroriza’ a lei selvagem do capitalismo e assim abre espaço para a justiça social. Eis o tipo de ‘terrorismo’ de que necessitamos, e que movimentos como o ‘Movimento dos Sem Terra’ (MST) estão praticando. Se o povo não reclamar, as coisas ficam como estão.



Termino com uma memória de Dom Hélder Câmara, um bispo que optou por ‘causas perdidas’ (igreja pobre, bispos comprometidos com a pobreza, comunidades de base, igreja leiga, um mundo sem pobreza), mas, ao mesmo tempo, sempre procurou e encontrou ‘brechas’ num sistema aparentemente ‘irremediável’, que é o sistema eclesiástico católico. Vale a pena ler, nesse sentido, o excelente ensaio ‘As noites de um Profeta’ de José De Broucker (Paulus, São Paulo, 2008), onde o jornalista francês explica que o segredo da pertinácia de Dom Hélder estava no encontro noturno com o Espírito Santo (entre duas e quatro horas da madrugada), que ele praticou desde 1931, o ano de sua ordenação sacerdotal (livro citado, 134-147).



Postado há 22nd January 2011 por Eduardo Hoornaert

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