No dia das eleições, vale a pena examinar o que teóricos anticapitalistas — de Trotsky a Zizek escreveram sobre limites da representação política e caminhos para superá-la
Hoje, o inimigo não se chama Império nem Capital.
Chama-se Democracia
Alain Badiou
De dois em dois anos vamos às urnas eleger nossos representantes, aqueles que falarão por nós nos congressos, câmaras e senado. A conquista desse direito custou um preço muito caro àqueles que não aceitavam não participar da vida pública. Desde as lutas pelo sufrágio universal, à resistência as ditaduras latinas, até as recentes primaveras que tomaram o Oriente Médio.
A democracia, de nascimento longínquo e tão falada, ainda demora a chegar em todos os cantos, e quando chega, cedo ou tarde depara-se com a parceria inseparável da representação. Talvez devêssemos, então, reformular a frase que abre esse texto e dizer que o verdadeiro inimigo, além de não se chamar império e capital, tampouco se chama democracia, mas o modo que se opera, hoje, a representação.
É importante ressaltar aqui que a concepção de uma democracia representativa foi um “mal necessário” já que as cidades cresciam no território e população, ficando impossível pensar nas praças públicas gregas onde cada um dizia por si. Por isso o que se coloca em questão aqui não é a representação em si, mas o simulacro dela que vivemos hoje, pois como ressaltou Lênin, a ideia aqui não é “anular as instituições representativas e a elegibilidade, mas sim transformar esses moinhos de palavras que são as assembleias representativas em assembleias capazes de ‘trabalhar’ verdadeiramente” (O Estado e a revolução, p.57).
A ilusão democrática
Há um discurso totalizante que prega uma democracia representativa pura, como se estivéssemos sendo representados perfeitamente pelos políticos que elegemos. Tal totalidade é impossível primeiro pela lógica da construção mútua entre representante e representado, pois, sendo o eleito fruto de uma gama de eleitores, é impossível que se atenda a tarefa representativa de forma igual a todos, já que os votos, nem sempre, vem pelas mesmas razões. Além de que, a bandeira que deu o tom da sua campanha e consequentemente lhe trouxe votos, não será a única decisão que ele terá que tomar. O dia a dia político lhe imporá atitudes que fogem dos programas apresentados e, portanto, da gama de representatividade que lhe deu os votos. Depois, outro ponto crítico que subverte a representação, é a escolha para cargos do legislativo que, diferente dos majoritários (presidente, governador, prefeito), é proporcional. Ou seja, permite que candidatos com poucos votos sejam eleitos e alguns com mais, não. Isso porque um candidato com muitos votos pode superar de longe o quociente eleitoral do estado e assim, conseguir mais cadeiras para seu partido. Sobre isso, saiu uma matéria interessante na CartaCapital.
E por fim, talvez o principal entrave que não permite uma representatividade de fato é o financiamento privado das campanhas. Basta ver as quantias exorbitantes que cada candidato irá gastar no processo eleitoral e o valor que cada um receberá de salário caso seja eleito. A conta não bate.
Está dado, para quem quiser averiguar, que as maiores empresas doadoras dividem as “contribuições” a todos os candidatos que têm chances de ganhar. Isso evidencia duas obviedades, mas que vale, para essa análise sobre democracia representativa, reforçar: Não há qualquer vínculo ideológico ou projeto político que relacione as empresas aos candidatos e, por isso, é claro que se trata de um investimento. Temos, então, um deslocamento de representatividade, pois, se o candidato tem uma relação de ‘construção’ mútua com os eleitores como ele manterá essa representatividade se o peso econômico, crucial para a manutenção no poder ou chegada a ele, passa por fora da relação candidato/eleitor?
Essas questões aqui colocadas são aparentemente superadas pelo fetichismo da “livre escolha” que ganhou quase que um caráter sagrado. Se sentir livre para escolher é um dos sintomas mais evidentes da doença democrática que não leva em conta que a escolha é dentre possíveis, as opções são dadas. Ou seja, somos livres para escolher entre essas opções, e não mudá-las.
A fantasia democrática
Mesmo assim, o discurso democrático prega uma democracia quase que direta, onde estaríamos sendo representados como um todo, quando, na verdade, a história é bem diferente. Zizek coloca a questão de maneira clara: “É a ‘ilusão democrática’, a aceitação dos mecanismos democráticos como o maior arcabouço de qualquer mudança que impede a mudança radical das relações capitalistas.”(O ano em que sonhamos perigosamente, p.92). É o querer mudar o jogo, com o tabuleiro e as regras do inimigo. Por isso não é mais possível falarmos em radicalização da democracia dentro dos limites “legais”.
A fantasia aqui é essa alegria criada pela falsa ideia totalizante do discurso democrático, que cria um vínculo representante/representado sem qualquer ruído ou interferência. E esses furos que se evidenciam na lógica representativa é tamponado com nosso ato máximo de participação política: o voto. Esse processo se assemelha a lógica de atuação de um rei numa democracia constitucional:
“Nesse sentido, na democracia, cada cidadão comum é de fato um rei – mas um rei numa democracia constitucional, um monarca que decide apenas formalmente, cuja função é apenas assinar as medidas propostas pelo governo executivo. É por isso que o problema dos rituais democráticos é semelhante aos grandes problemas da monarquia constitucional: como proteger a dignidade do rei? Como manter a aparência de que o rei toma as decisões, quando todos sabem que isso não é verdade? Trotsky estava certo então em sua crítica básica à democracia parlamentar: não é que ela dê poder demais às massas não instruídas, mas que, paradoxalmente, apassive as massas, deixando a iniciativa para o aparelho do poder estatal (ao contrário dos “sovietes”, em que as classes trabalhadoras se mobilizam e exercem o poder diretamente). (Primeiro como tragédia, depois como farsa. p.115)
Assim como a mídia vende receitas mágicas de felicidades medicando seus leitores com indicações de produtos, a democracia, tal qual vivemos hoje, vende o voto para nossa falta de participação política. O problema é que caímos no que Oscar Wilde diz sobre os remédios: eles “não curam a doença, apenas prolongam. Na verdade, os remédios fazem parte da doença.”
O voto é o mecanismo para deixar a fantasia completa, por inteira. É uma espécie de cortina que esconde o sintoma e, como bem escreveu Wilde, prolonga a doença. Por isso é certo compararmos o ritual democrático que se repete de dois em dois anos ao “café descafeinado” de que fala Zizek, que parece café, tem gosto e cheiro de café, mas não é café.
Algo de novo se aproxima
Recentemente se abriram importantes processos de questionamento que se espalharam pelo mundo como um pavio que ia clareando problemas comuns em diversas áreas. Os protestos de Seatle, o Occupy Wall Street, os Indignados espanhóis e as Primaveras, até chegar nas Jornadas de Junho no Brasil, abriram questionamentos que apontam para o novo. Não dão a resposta ou propõe soluções, tampouco era esse o intuito, mas criam as perguntas e desprezam o velho.
Talvez, então, devêssemos dar um passo atrás em relação à afirmação marxista de que, diferente dos filósofos que se preocupavam em entender o mundo, deveríamos mudá-lo, e perceber que talvez seja a hora de pensá-lo novamente.
Referências:
BADIOU, Alain. A hipótese comunista. Boitempo, São Paulo, 2012
ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. Boitempo, São Paulo, 2012
______. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Boitempo. São Paulo, 2011.
______. Bem-vindo ao deserto do real!. Boitempo, São Paulo, 2003
______ (org.). Um mapa da ideologia. Contraponto, Rio de Janeiro, 2010
Outras Palavras
Alain Badiou
De dois em dois anos vamos às urnas eleger nossos representantes, aqueles que falarão por nós nos congressos, câmaras e senado. A conquista desse direito custou um preço muito caro àqueles que não aceitavam não participar da vida pública. Desde as lutas pelo sufrágio universal, à resistência as ditaduras latinas, até as recentes primaveras que tomaram o Oriente Médio.
A democracia, de nascimento longínquo e tão falada, ainda demora a chegar em todos os cantos, e quando chega, cedo ou tarde depara-se com a parceria inseparável da representação. Talvez devêssemos, então, reformular a frase que abre esse texto e dizer que o verdadeiro inimigo, além de não se chamar império e capital, tampouco se chama democracia, mas o modo que se opera, hoje, a representação.
É importante ressaltar aqui que a concepção de uma democracia representativa foi um “mal necessário” já que as cidades cresciam no território e população, ficando impossível pensar nas praças públicas gregas onde cada um dizia por si. Por isso o que se coloca em questão aqui não é a representação em si, mas o simulacro dela que vivemos hoje, pois como ressaltou Lênin, a ideia aqui não é “anular as instituições representativas e a elegibilidade, mas sim transformar esses moinhos de palavras que são as assembleias representativas em assembleias capazes de ‘trabalhar’ verdadeiramente” (O Estado e a revolução, p.57).
A ilusão democrática
Há um discurso totalizante que prega uma democracia representativa pura, como se estivéssemos sendo representados perfeitamente pelos políticos que elegemos. Tal totalidade é impossível primeiro pela lógica da construção mútua entre representante e representado, pois, sendo o eleito fruto de uma gama de eleitores, é impossível que se atenda a tarefa representativa de forma igual a todos, já que os votos, nem sempre, vem pelas mesmas razões. Além de que, a bandeira que deu o tom da sua campanha e consequentemente lhe trouxe votos, não será a única decisão que ele terá que tomar. O dia a dia político lhe imporá atitudes que fogem dos programas apresentados e, portanto, da gama de representatividade que lhe deu os votos. Depois, outro ponto crítico que subverte a representação, é a escolha para cargos do legislativo que, diferente dos majoritários (presidente, governador, prefeito), é proporcional. Ou seja, permite que candidatos com poucos votos sejam eleitos e alguns com mais, não. Isso porque um candidato com muitos votos pode superar de longe o quociente eleitoral do estado e assim, conseguir mais cadeiras para seu partido. Sobre isso, saiu uma matéria interessante na CartaCapital.
E por fim, talvez o principal entrave que não permite uma representatividade de fato é o financiamento privado das campanhas. Basta ver as quantias exorbitantes que cada candidato irá gastar no processo eleitoral e o valor que cada um receberá de salário caso seja eleito. A conta não bate.
Está dado, para quem quiser averiguar, que as maiores empresas doadoras dividem as “contribuições” a todos os candidatos que têm chances de ganhar. Isso evidencia duas obviedades, mas que vale, para essa análise sobre democracia representativa, reforçar: Não há qualquer vínculo ideológico ou projeto político que relacione as empresas aos candidatos e, por isso, é claro que se trata de um investimento. Temos, então, um deslocamento de representatividade, pois, se o candidato tem uma relação de ‘construção’ mútua com os eleitores como ele manterá essa representatividade se o peso econômico, crucial para a manutenção no poder ou chegada a ele, passa por fora da relação candidato/eleitor?
Essas questões aqui colocadas são aparentemente superadas pelo fetichismo da “livre escolha” que ganhou quase que um caráter sagrado. Se sentir livre para escolher é um dos sintomas mais evidentes da doença democrática que não leva em conta que a escolha é dentre possíveis, as opções são dadas. Ou seja, somos livres para escolher entre essas opções, e não mudá-las.
A fantasia democrática
Mesmo assim, o discurso democrático prega uma democracia quase que direta, onde estaríamos sendo representados como um todo, quando, na verdade, a história é bem diferente. Zizek coloca a questão de maneira clara: “É a ‘ilusão democrática’, a aceitação dos mecanismos democráticos como o maior arcabouço de qualquer mudança que impede a mudança radical das relações capitalistas.”(O ano em que sonhamos perigosamente, p.92). É o querer mudar o jogo, com o tabuleiro e as regras do inimigo. Por isso não é mais possível falarmos em radicalização da democracia dentro dos limites “legais”.
A fantasia aqui é essa alegria criada pela falsa ideia totalizante do discurso democrático, que cria um vínculo representante/representado sem qualquer ruído ou interferência. E esses furos que se evidenciam na lógica representativa é tamponado com nosso ato máximo de participação política: o voto. Esse processo se assemelha a lógica de atuação de um rei numa democracia constitucional:
“Nesse sentido, na democracia, cada cidadão comum é de fato um rei – mas um rei numa democracia constitucional, um monarca que decide apenas formalmente, cuja função é apenas assinar as medidas propostas pelo governo executivo. É por isso que o problema dos rituais democráticos é semelhante aos grandes problemas da monarquia constitucional: como proteger a dignidade do rei? Como manter a aparência de que o rei toma as decisões, quando todos sabem que isso não é verdade? Trotsky estava certo então em sua crítica básica à democracia parlamentar: não é que ela dê poder demais às massas não instruídas, mas que, paradoxalmente, apassive as massas, deixando a iniciativa para o aparelho do poder estatal (ao contrário dos “sovietes”, em que as classes trabalhadoras se mobilizam e exercem o poder diretamente). (Primeiro como tragédia, depois como farsa. p.115)
Assim como a mídia vende receitas mágicas de felicidades medicando seus leitores com indicações de produtos, a democracia, tal qual vivemos hoje, vende o voto para nossa falta de participação política. O problema é que caímos no que Oscar Wilde diz sobre os remédios: eles “não curam a doença, apenas prolongam. Na verdade, os remédios fazem parte da doença.”
O voto é o mecanismo para deixar a fantasia completa, por inteira. É uma espécie de cortina que esconde o sintoma e, como bem escreveu Wilde, prolonga a doença. Por isso é certo compararmos o ritual democrático que se repete de dois em dois anos ao “café descafeinado” de que fala Zizek, que parece café, tem gosto e cheiro de café, mas não é café.
Algo de novo se aproxima
Recentemente se abriram importantes processos de questionamento que se espalharam pelo mundo como um pavio que ia clareando problemas comuns em diversas áreas. Os protestos de Seatle, o Occupy Wall Street, os Indignados espanhóis e as Primaveras, até chegar nas Jornadas de Junho no Brasil, abriram questionamentos que apontam para o novo. Não dão a resposta ou propõe soluções, tampouco era esse o intuito, mas criam as perguntas e desprezam o velho.
Talvez, então, devêssemos dar um passo atrás em relação à afirmação marxista de que, diferente dos filósofos que se preocupavam em entender o mundo, deveríamos mudá-lo, e perceber que talvez seja a hora de pensá-lo novamente.
Referências:
BADIOU, Alain. A hipótese comunista. Boitempo, São Paulo, 2012
ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. Boitempo, São Paulo, 2012
______. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Boitempo. São Paulo, 2011.
______. Bem-vindo ao deserto do real!. Boitempo, São Paulo, 2003
______ (org.). Um mapa da ideologia. Contraponto, Rio de Janeiro, 2010
Outras Palavras
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