Henrique Fendrich
A hipocrisia nossa de cada dia. Assim como nossas boas intenções, surge no momento conveniente. Postamos contra a injustiça perpetrada aos trabalhadores explorados com horas abusivas e salários indignos. Entretanto, fazemos compras naquele supermercado, porque é mais barato. Reclamamos do governo do conforto de nossas cadeiras, sem se levantar, exceto se convocados por uma mídia interesseira. Por fim, defendemos um mundo igualitário, sem apartheid social, desde que não percamos nossos privilégios. Falamos mais do que fazemos. Quando não reconhecemos o grande problema na sala, buscamos expiar nossa culpa de outras formas. Nenhuma que envolva realmente uma luta fora de nossos interesses particulares.
Lembro-me da trajetória do Cony. Declarava-se politicamente alienado, mas publicou artigos com críticas incisivas à ditadura. No fim da vida, assumiu publicamente uma postura de direita ferrenha. Como se deu essa transição? A resposta que tomei veio de um trecho de meu livro favorito dele, “Quase memória”: “De repente, tive vontade de escrever sobre um gigante que vinha todas as noites e me trazia bombons e balas. Um gigante que fazia coisas terríveis que me amedrontavam mas eu gostava dele porque, no final de tudo, ele sempre tirava de um alforje de couro um brinquedo, e me mandava brincar. Um gigante que morava longe, onde moram o vento e as coisas do mundo, que apesar de morar tão longe nunca deixava de chegar, em horas estranhas, mas sempre chegando, porque sabia que eu precisava dele.”
Como o abismo econômico que aumenta no Brasil, o moral se divide em proporção similar. É o gigante temido, mas cujos privilégios não recusamos. Porque sentimos necessidades destes para estabelecer nosso lugar no mundo. Mais do que isso, na cadeia alimentar que é a sociedade. É o gigante que chega súbito e espelha as coisas do mundo.
Ele veio para mim numa madrugada num ponto de ônibus no Leblon. Enquanto encarava o horizonte em pé na rua, duas pessoas se sentaram nos bancos. Após uma rápida troca de olhares, voltamos a nossos afazeres. Minha espera hipnótica foi interrompida literalmente ao som de tapas. Viro-me e vejo os dois jovens que encarara apanhando de um terceiro homem, mais velho, surgido da escuridão. Sem pensar, intervim, pedindo que parasse e estendendo minha mão, afastando os opositores. O homem mais velho reclamou. “Já falei que não é pra fazer isso aqui. Isso aqui é lugar de família.” e ouço um som surdo batendo contra o asfalto. “Calma, nós somos da paz, somos trabalhadores.”, os garotos responderam. O “segurança da rua” protestou, dizendo que “aquilo” que faziam não era coisa de trabalhador. A dupla saiu do ponto.
A sós, decidiu que precisava de uma lição por ter interferido. Tentou me empurrar, eu bloquei seu movimento. Ele grita comigo, ameaçador. Não pensei, só sei que o que berrei de volta: “Olha pra mim. Você acha que sou como eles? Olha como eu estou vestido. Você acha que pode se meter comigo? Continua, que vamos na delegacia. Vamos ver que quem vai se foder.” O velho, furioso, entendeu e se afastou. Ele era um homem negro, jeans e camisa surrados. Os jovens estavam de bermuda, camiseta, chinelo. Eu, um homem branco, com um figurino de calça cáqui, uma camisa xadrez e um relógio reluzente. Todos de marca e parecendo novos. Cada um no seu lugar.
Meu ônibus chegou e embarquei. Refleti sobre o ocorrido e fiquei horrorizado comigo mesmo. Eu sou o chavão de Roberto da Matta. Usei de estética de status para me livrar de um problema, “pondo alguém em seu lugar”. Da janela, vi a cada vez maior população de rua que dorme sobre as marquises de Copacabana. E o gigante, após recolher o brinquedo que eu acabara se manusear, guarda-o em seu alforje, com um sorriso cheio de dentes afiados.
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Daniel Russell Ribas é membro do coletivo “Clube da Leitura”, que organiza evento quinzenal no Rio de Janeiro. Organizou as coletâneas “Para Copacabana, com amor” (Ed. Oito e meio), “A polêmica vida do amor” e “É assim que o mundo acaba”, ambos em parceira com Flávia Iriarte e publicados pela Oito e meio, e “Monstros Gigantes – Kaijus”, em parceria com Luiz Felipe Vasquez, pela Editora Draco. Participou como autor dos livros “Clube da Leitura: modo de usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1” (publicação independente), “Clube da Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto G” (Multifoco), “Caneta, Lente & Pincel” (Ed. Flaneur), “Clube da Leitura, vol. III”, “Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro” e “Encontros na Estação” (Oito e meio). Na RUBEM, escreve quinzenalmente às segundas-feiras.
Henrique Fendrich |
Rubem
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