Vladimir Safatle
Durante esta semana, vimos várias reações virulentas a respeito da tese da unidade necessária da esquerda face às próximas eleições. Tal problematização merece análise mais ponderada que evite recorrer a estereótipos tão abundantes ao se submeter problemas políticos a cálculos eleitorais de circunstância.
O primeiro estereótipo consiste em ver nessa questão a expressão de pretensa incapacidade secular das forças à esquerda em deixar de lado os desejos de hegemonia e se unir em situação de adversidade.
A leitura é, entretanto, incorreta. Basta lembrar como a esquerda brasileira demonstrou unidade exemplar na luta contra o impeachment de Dilma Rousseff, congregando até mesmo atores que nunca participaram dos governos petistas e que não tinham com ele relação. Ou seja, o problema não é de pretensa incapacidade estrutural de composição.
Os que clamam por unidade insistem que a situação atual exigiria uma frente ampla de defesa tanto dos direitos sociais que foram e serão destruídos quanto de garantias mínimas de um Estado democrático que, há tempos, desapareceram. A unidade deveria se dar pela identificação de um inimigo comum.
Essa linha política, no entanto, acredita ser possível sustentar mobilizações através de um discurso meramente defensivo (lutar contra algo) e baseado no medo. Seu eixo de argumentação é: "Há uma batalha fundamental agora e as discussões devem ficar para depois".
Seria possível fazer aqui o histórico inesgotável do uso de estratégias semelhantes por grupos de esquerda com desejo de hegemonia. Essa é linha tradicional de silenciamento e de imposição de coesão.
A falha evidente aparece se damos mais alguns passos argumentativos. Pois os que desmontam direitos trabalhistas e previdenciários dirão que, infelizmente, não há outra saída para tirar a economia da crise. O que exige uma opção econômica clara por parte da esquerda.
Mas onde ela realmente está e quem, de fato, a enuncia? Grupos políticos que, para combater a crise em 2015, entregaram a condução da economia para economistas como Joaquim Levy, que sonhavam em transformar Henrique Meirelles (o mesmo que conduz o desmonte atual) em ministro da Economia do governo Dilma? Tudo isso embaralhou a possibilidade mesma de entender o que tais grupos realmente querem.
Tomemos um exemplo simples que deveria estar para além de quaisquer discussões. Uma alternativa de esquerda passa, necessariamente, pela politização dos conflitos distributivos em um país no qual simplesmente as seis maiores fortunas privadas têm o mesmo poder de compra de metade da população.
Isto exigiria mudança drástica no padrão de tributação, que preserva ricos e rentistas. Mas o setor hegemônico do que era a esquerda brasileira, a saber, o PT, nunca assumiu, de forma clara, a criação de impostos sobre grandes fortunas e consumo conspícuo ou aumento progressivo dos impostos sobre renda e herança, entre outros. Muito menos discutiu moratória da dívida pública, salário máximo, propriedade dos meios de produção.
Ao contrário, até pouco tempo vimos informações de que setores do partido procuravam trazer representantes do sistema financeiro para dentro de sua chapa majoritária.
A pergunta é: unidade em cima do que exatamente? Ainda mais quando se vê como o petismo tende a repetir o mesmo padrão de composição política que fez seu governo naufragar. Ou seja, não encontramos reflexão sobre os limites do jogo parlamentar brasileiro e a necessidade de sua superação, debate aberto sobre a necessidade não de "reforma política" (pois quem diz "reforma" espera que algo do reformado possa ser conservado), mas de "implosão" da estrutura política, com institucionalidade corrompida e de baixa participação popular.
A extrema direita brasileira compreendeu esse desejo de implosão e cresce em cima de demandas anti-institucionais. No mundo, a política não funcionará de forma polar, com dois grupos hegemônicos digladiando-se pela conquista do centro. Funcionará em quatro posições, com os extremos ganhando autonomia e densidade eleitoral ao darem forma ao descontentamento com as limitações políticas e econômicas do presente. Haja vista o modelo de configuração na França e Alemanha.
O problema do Brasil é, no momento, ter só um extremo (quem devia fazer esse papel entre nós não tem a menor condição de organização, debate, dinâmica e vontade). Isso deve ser creditado à tendência histórica da esquerda em compor por meio de coalizões populistas, desde a era Vargas. E o que virou o lulismo a não ser a continuação da tradição varguista que sempre assombrou a esquerda brasileira?
Folha
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