“O problema da desigualdade social (que é acompanhada pelo racismo) é a questão mais urgente no país, pois vai agravar qualquer outra problemática social. Nesse sentido me parece que estamos longe de ter avanços, pois cada vez mais se criam mais condições para que ela se perpetue”, adverte a psicóloga.
Apesar de uma multiplicidade de pautas estarem presentes nas discussões da sociedade brasileira, como a situação da educação, do desmonte do SUS e da violência nas favelas e contra as mulheres, existe uma “dificuldade” de “criar pautas que sejam transversais, apesar de a maioria dessas questões estarem relacionadas a uma precarização do Estado”, diz Talita Tibola.
Na avaliação dela, a pauta da corrupção, “se não fosse colocada simplesmente de maneira moral, e de certo modo rechaçada pela esquerda, poderia ser uma pauta agregadora, pois ela pode produzir de certa forma essa transversalidade, explicitando a má gestão e a corrupção no Estado, explicitando como a desigualdade social aumenta de maneira estrutural”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Talita reflete sobre o atual momento político e social do país e sobre o “imobilismo político” que tem impedido avanços e propostas alternativas para solucionar a crise brasileira. “O ‘Fora Temer’”, pondera, “tem a capacidade de unir pautas, abrange muito mais pessoas” e “todos concordam que não há nada a defender no governo Temer”, mas “ao mesmo tempo, acho sintomático que toda e qualquer pauta seja ligada a um ‘Fora Temer’ com sabor de ‘Fica Dilma’, o que impossibilita qualquer aprofundamento de pautas e coloca em primeiro plano a impossibilidade do debate”, frisa.
Na avaliação dela, “a constituição dessas mobilizações a partir do consenso de que Dilma deveria ficar, impossibilita o debate sobre o que foi feito realmente no governo Dilma, sobre responsabilização, deixaria mais claras as pautas, os desmontes que já estavam sendo feitos (por exemplo, como é o caso do SUS). Essa situação em que há pautas sendo levantadas, mas que estão sendo levantadas agora porque são contra o Temer, solidifica uma não-autocrítica. Penso que essa seja a maior causa do imobilismo atual nos movimentos”.
Talita também reflete sobre o uso recorrente do termo “fascismo” no atual momento político e afirma que “existem, sim, comportamentos fascistas, com os quais precisamos nos preocupar”, como o caso da violência na Maré, no Rio de Janeiro, que representa um “fascismo de Estado”, ou o “assassinato de um jovem negro homossexual a pauladas por uma juventude que se chama liberal”.
A psicóloga comenta ainda o “discurso do medo” que também tem sido alimentado pela esquerda, especialmente na “campanha” e na “defesa para que Dilma fique” no governo, as quais são baseadas “nas ameaças” de que todas as conquistas sociais vão acabar e “não na constituição de proposta do que pode ficar, do que precisa mudar. Por isso talvez o imobilismo, pois não importa se está ruim. O que importa para o discurso do medo é que, se ela sair, vai ficar pior”.
Junto com o discurso do medo, pontua, surge o “aumento da insegurança” que também está relacionado ao aumento do desemprego no país. “Não é que quem perde o emprego diretamente produz violência, mas a perda do emprego aumenta a insegurança, aumenta também uma raiva social direcionada ao outro (sejam governantes, os vizinhos, ‘os ricos’, ‘os pobres’), são todos discursos que aumentam o conflito social, geram insegurança”.
Talita Tibola é psicóloga e tradutora. É doutora em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense - UFF e participa do Grupo PesquisarCom e da Universidade Nômade. A pesquisadora participou do ciclo de Ocupas e de movimentos autônomos em Bologna, na Itália.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Na última entrevista que nos concedeu, você mencionou que junho de 2013 havia fragmentado as mobilizações sociais e dividido ainda mais os partidos e movimentos sociais. Nesse sentido, quais têm sido os impactos de junho de 2013 na política e na mobilização social brasileira hoje?
Talita Tibola - Minha análise é que no pós-junho de 2013 o acirramento de diferenças entre grupos se dá como efeito da restauração de junho. Ou seja, como tática de calar esse movimento. Um momento forte disso foi o período eleitoral em que, inclusive em forma de brincadeira, mas sem ser mentira, se falou bastante não somente no âmbito dos movimentos, sobre o fim de amizades de longa data, exemplificando de que maneira a sociedade estava separada nesse momento. Acho que essas divisões acontecem não só porque houve uma restauração, mas porque foi um momento de grande impasse. Era muito mais fácil estar lado a lado quando o que era a esquerda era facilmente detectável. E saber também o que era o certo a fazer. Quando nem nós mesmos temos tanta certeza assim, temos só a certeza do que não devemos fazer, mas poucas apostas, então, apesar de menos certos, ficamos também mais inseguros e defendendo mais cada um a sua razão.
Em relação a essa certeza sobre de qual lado se deve estar, um bom exemplo são as campanhas para a eleição de Lula, que foi um momento de muito consenso em relação ao que precisava ser feito, mas também no caso da luta contra a ditadura, onde se tinha do mesmo lado tanto Dilma Rousseff quanto Fernando Henrique Cardoso. Um dos efeitos de junho de 2013, penso, é essa reconfiguração de lugares no sistema político, não só em termos formais, mas da constituição de novos lugares políticos, mas que se dá de maneira um pouco lenta e que ainda não conseguimos divisar.
"Essas indignações atravessam os movimentos organizados, mas são mais amplas que eles, é importante perceber isso para poder expandi-los"
IHU On-Line - Quais são as pautas da multiplicidade de movimentos que existem hoje? Essa multiplicidade de movimentos tem dado conta de colocar em pauta as questões mais urgentes do país?
Talita Tibola - Vejo como pautas que têm sido colocadas, a partir de situações concretas, a educação e a situação das escolas e das universidades, a saúde e o desmonte do SUS, a mobilização contra a violência nas favelas, que continua sempre presente, mas talvez com pouco impacto infelizmente, o feminismo principalmente em relação à violência contra a mulher. Desses movimentos me parece que os mais expansivos são o movimento das escolas ocupadas e o movimento feminista, que tem sido bastante debatido nas redes sociais. Acho que existe uma dificuldade, exacerbada nesse momento, de pautar essas discussões para além dos seus círculos.
Além de uma multiplicidade de pautas que são mais visíveis pela presença de movimentos organizados que se mobilizam a partir delas, há uma indignação generalizada, indignação com a precarização da universidade, das escolas, com a saúde pública. Essas indignações atravessam os movimentos organizados, mas são mais amplas que eles, é importante perceber isso para poder expandi-los.
A dificuldade nesse momento parece ser criar pautas que sejam transversais, apesar de a maioria dessas questões estarem relacionadas a uma precarização do Estado, e o que acaba acontecendo é que se tornam expressões muito pontuais de problemáticas. Nesse sentido, a pauta da corrupção, se não fosse colocada simplesmente de maneira moral, e de certo modo rechaçada pela esquerda, poderia ser uma pauta agregadora, pois ela pode produzir de certa forma essa transversalidade, explicitando a má gestão e a corrupção no Estado, explicitando como a desigualdade social aumenta de maneira estrutural. O problema da desigualdade social (que é acompanhada pelo racismo) é a questão mais urgente no país, pois vai agravar qualquer outra problemática social. Nesse sentido me parece que estamos longe de ter avanços, pois cada vez mais se criam mais condições para que ela se perpetue.
IHU On-Line – Como você está analisando as ocupações de escolas? Esse movimento recebe alguma influência de junho de 2013?
Talita Tibola - Acredito que as ocupações das escolas se aproximam de junho pela sua transversalidade, por estarem, na maioria das ocupações, não ligados a partidos ou a visões políticas, mas a pautas unificadoras: a merenda, a precarização das escolas, a solidarização dos alunos com o não pagamento dos professores, a vontade de pensar seriamente uma educação e cultura abertas e a produção de ações direcionadas a isso. No sentido da merenda há uma semelhança com junho por ser um movimento que procura abrir algumas caixas-pretas.
Em junho a pauta era a corrupção nos transportes e na Copa, e, nas escolas, a corrupção na merenda. Esses são movimentos importantes porque podem ser percebidos através de ações locais, otimizam e produzem várias delas, mas ao mesmo tempo nascem e têm como pano de fundo uma pauta diretamente relacionada ao governo, questionando-o, pressionando-o. É uma pauta que alcança o macro, e é por isso que é reprimida. Se as pessoas diretamente ligadas nas ocupações de escolas estavam ligadas a junho, não sei, mas com certeza existe um efeito-junho aí.
IHU On-Line - Hoje se percebem algumas ações de “ativismo estético” na sociedade brasileira, com a divulgação de frases como “Amar é a Maré Amarildo”. Como vê esse tipo de manifestação e qual é o impacto social e político que isso gera na sociedade?
Talita Tibola - Acho esse tipo de ativismo fundamental não só porque realiza o papel de dar visibilidade, mas porque provoca uma transformação da sensibilidade. Uma abertura para que as pessoas percebam o que não percebiam.Amarildo, infelizmente, não foi o primeiro nem o último a ser morto e desaparecido pela polícia, o que aconteceu naquele momento é que um problema foi colocado. Foi essa morte, acontecida ao longo das manifestações de junho, que deu visibilidade e também legitimidade para a manifestação realizada pelos familiares e amigos de Amarildo no túnel Zuzu Angel. Infelizmente esse tipo de protesto também ocorre com frequência, mas naquele momento não era possível não olhar para isso e enxergar o que estava acontecendo. Não era possível dizer que eram “marginais atrapalhando o trânsito”, porque todo mundo estava olhando e controlando o que estava acontecendo, e esse tipo de manifestação estética contribuiu para isso.
É emblemático que você dê esse exemplo, pois nesse momento a situação na Maré é muito crítica, é apavorante. É apavorante como as denúncias não ecoam, como tudo se passa como se fosse normal: buscas, tiroteios no meio da tarde, mortes, como se nada fosse. Depois de um dos tiroteios da semana passada, a Thamyra Thâmara de Araújo, comunicadora social que mora no morro do alemão, escreveu algo no Facebook que acho muito importante:
“Todas essas campanhas que buscam sensibilizar para a realidade das favelas cariocas e do jovem negro são fundamentais, mas por outro lado (infelizmente) em termos práticos e concretos têm pouco retorno. Os conflitos e a violência continuam, as pessoas continuam morrendo na favela, quase nada mudou. O que o nosso povo precisa é de OPORTUNIDADES. Oportunidade de coordenar essas campanhas, oportunidade de ocupar cargos de gestão, poder pensar política pública, entrar na faculdade, estudar, experimentar arte, viver de arte, poder viajar e conhecer outras referências, poder realizar seus próprios projetos, ideias. Resgatar o direito de poder sonhar e realizar, sabe? Resumindo, o dinheiro precisa chegar na ponta. Porque o que eu vejo é o nosso povo morrendo ou tendo que gastar toda sua energia (em vida) pra dizer que não deve morrer. E no meio disso tudo, quem lucra com isso?”.
Não se trata de constituir oportunidades em termos de projetos sociais/culturais aos quais as pessoas simplesmente tenham que aderir, mas criar as condições para que as pessoas possam investir em suas vidas, condições para que as pessoas possam escolher. E, no caso das favelas, chega ao extremo de se ter que lutar para que as pessoas possam escolher viver.
"Nesse momento a situação na Maré é muito crítica. É apavorante como as denúncias não ecoam, como tudo se passa como se fosse normal: buscas, tiroteios no meio da tarde, mortes, como se nada fosse"
IHU On-Line - O que está sendo feito para sair do imobilismo político atualmente? As manifestações de hoje fortalecem o imobilismo ou apontam saídas?
Talita Tibola - Acho que há muitas pautas bem ativas neste momento, principalmente com o afastamento de Dilma, pois as pautas se confundiram um pouco com o “Fora Temer”. De um lado é interessante, pois o “Fora Temer” tem a capacidade de unir pautas, abrange muito mais pessoas. Além disso, as ações acabam sendo mais propositivas do que com o “Fica Dilma” (que ainda persiste), pois já é possível criticar o governo sem ferir e explicitar que o “Fica Dilma” não faz tanto sentido, já que não havia o que defender no governo de Dilma. Agora todos concordam que não há nada a defender no governo Temer.
Ao mesmo tempo, acho sintomático que toda e qualquer pauta seja ligada a um “Fora Temer” com sabor de “Fica Dilma”, o que impossibilita qualquer aprofundamento de pautas e coloca em primeiro plano a impossibilidade do debate. A constituição dessas mobilizações a partir do consenso de que Dilma deveria ficar, impossibilita o debate sobre o que foi feito realmente no governo Dilma, sobre responsabilização, deixaria mais claras as pautas, os desmontes que já estavam sendo feitos (por exemplo, como é o caso do SUS). Essa situação em que há pautas sendo levantadas, mas que estão sendo levantadas agora porque são contra o Temer, solidifica uma não-autocrítica. Penso que essa seja a maior causa do imobilismo atual nos movimentos.
IHU On-Line - Ainda na outra entrevista que nos concedeu, você havia comentado o uso do termo “fascismo social” pelos partidos políticos como uma forma de desqualificar o outro. Um ano depois, o uso do termo “fascismo” tem sido ainda mais recorrente na sociedade brasileira, dado que muitas pessoas acusam de fascistas os discursos a que são contrários? Como você está compreendendo esse momento? Existem de fato discursos e ações “fascistas” na sociedade ou a sociedade está “absorvendo” e sendo impactada pelo discurso político que se utilizou desse termo?
Talita Tibola - Se você me permite, vou responder com um texto do Pier Paolo Pasolini que está circulando nas redes (e ele é do Pasolini mesmo!):
"... nós, progressistas, antifascistas, homens de esquerda, somos responsáveis por esses massacres. De fato, em todos esses anos não fizemos nada: 1. para que falar de 'Massacres de Estado' não se tornasse um lugar comum e tudo ficasse por isso mesmo; 2. (e mais grave) não fizemos nada para que os fascistas não existissem. Limitamo-nos a condená-los, gratificando nossa consciência com a nossa indignação; e quanto mais forte e petulante era a indignação, mais tranquila ficava a consciência. Na realidade nos comportamos com os fascistas (refiro-me sobretudo aos jovens) de maneira racista: quer dizer, quisemos apressada e impiedosamente crer que estavam predestinados por sua raça a serem fascistas, e perante essa decisão do seu destino não havia nada a fazer. E não o dissimulemos: todos sabíamos, em nossa sã consciência, que era por puro acaso que um daqueles jovens 'decidia' ser fascista, que se tratava de um mero gesto imotivado e irracional; talvez uma só palavra tivesse bastado para que isso não acontecesse. Mas nenhum de nós jamais conversou com eles, nem sequer lhes dirigiu a palavra. Aceitamo-los rapidamente como inevitáveis representantes do Mal. E eram certamente rapazes e moças de dezoito anos, que não sabiam nada de nada, e que mergulharam de cabeça nessa horrenda aventura por simples desespero." (PIER PAOLO PASOLINI - 'O Verdadeiro Fascismo & O Verdadeiro Antifascismo' - in: "Os Jovens Infelizes").
Eu acho que esse texto do Pasolini diz muito desse nosso momento. O que é complicado é que existem, sim,comportamentos fascistas, com os quais precisamos nos preocupar – o caso da Maré que comentei antes é um deles, um fascismo de Estado; o assassinato de um jovem negro homossexual a pauladas por uma juventude que se chama liberal é outro deles. Diante disso, me pergunto duas coisas:
1. Por que chamamos pessoas que estão indignadas, desesperadas, que têm opiniões diferentes das nossas, de fascistas? Em relação às manifestações verde-amarelo nas ruas, que eram a favor do impeachment da Dilma, se todas aquelas pessoas fossem elite, o Brasil não estaria tão mal assim; se assim o fizermos não vamos conseguir reconhecer nem nos organizar contra o verdadeiro fascismo
2. O que fazer para que falar em “Massacre de Estado”, como comentei acima, não se torne, como o Pasolini comenta, um lugar comum que faça com que a reclamação e a indignação baste e fique tudo por isso mesmo?
"O discurso da esquerda que está no poder funciona dessa maneira, pois ele é todo baseado na constituição de uma catástrofe que acontecerá caso eles não estejam no poder"
IHU On-Line - Naquela mesma entrevista, você também comentou sobre um discurso que gera uma cultura do medo, ao mencionar que “esse discurso supostamente ‘de esquerda’ fortalece uma cultura do medo bastante semelhante àquela que está presente entre as elites tradicionais e demofóbicas do país, quando vive uma sensação de insegurança ao redor da ideia de cerco social”. Gostaria que você desenvolvesse essa ideia da cultura do medo relacionada ao discurso da esquerda. Tem evidências de que isso está acontecendo no Brasil hoje? Como?
Talita Tibola - A cultura do medo presente nas elites é aquela que vai constituir o outro como inimigo, um inimigo abstrato, mas que para essas elites têm um rosto identificável: o pobre, negro, morador de favelas. A constituição desse outro se dá a partir da veiculação de notícias sobre violência, assaltos e que são imputados, pelas elites, mas não só por elas, a esse estereótipo, o que produz uma violência social. O trabalho da polícia quando acontecem mortes nas favelas, por exemplo, é justificado por essas pessoas (na repetição de falas do governo e da mídia) pelo combate à violência. Essa é a cultura do medo de que talvez mais se fale.
Mas o que constitui a cultura do medo é essa criação de um inimigo difícil de combater - difícil de combater justamente porque é vago e não temos os elementos para combatê-lo. É nesse sentido que o discurso da esquerda que está no poder funciona dessa maneira, pois ele é todo baseado na constituição de uma catástrofe que acontecerá caso eles não estejam no poder. Isso pôde ser visto com muita força no período das eleições e continua até hoje.
O discurso do medo feito pela esquerda se sustenta de maneira oposta, colocando a existência de uma elite que tem esse discurso racista como algo a se temer em si e a única solução a isso é o fato que continuemos nesse governo de esquerda, para que tudo não fique ainda pior. Evocam-se, então, os anos 90, momento em que o país estava em total crise, inculcando naqueles que viveram aqueles tempos, o medo do retorno àquela situação, medo de passar pelas mesmas dificuldades. Esse discurso de medo aos anos 90 passa a ser repetido pelas próprias pessoas, temerosas. Evoca-se o fim do Programa Bolsa Família (que Temer reajustou e Dilma que não havia reajustado afirmou ser irresponsabilidade fiscal), a diminuição do Programa Minha Casa Minha Vida.
O que está em questão não é o que Temer está fazendo ou deixando de fazer, mas é que, independentemente de quem fosse, o discurso seria esse, de desmonte de um projeto que já foi desmontado pelo próprio PT. Não é que as elites com discursos racistas não existam, mas é que não vamos conseguir combatê-las diretamente, somente com programas de empoderamento e renda que modifiquem essa situação e é preciso que eles sejam realizados, independentemente de qual governo esteja no poder.
Toda a campanha e a defesa para que Dilma fique é baseada nas ameaças do que vai acabar (medo) e não na constituição de proposta do que pode ficar, do que precisa mudar. Por isso talvez o imobilismo, pois não importa se está ruim. O que importa para o discurso do medo é que, se ela sair, vai ficar pior. Daí o imobilismo.
"O que está em questão não é o que Temer está fazendo ou deixando de fazer, mas é que, independentemente de quem fosse, o discurso seria esse, de desmonte de um projeto que já foi desmontado pelo próprio PT"
IHU On-Line - Que outros tipos de comportamento percebe na sociedade brasileira como decorrentes do atual momento de crise econômica, política e social?
Talita Tibola - Percebo um aumento da insegurança, que não é baseado somente no discurso do medo, mas também por um aumento da violência que se dá com o aumento do desemprego. Não é que quem perde o emprego diretamente produz violência, mas a perda do emprego aumenta a insegurança, aumenta também uma raiva social direcionada ao outro (sejam governantes, os vizinhos, “os ricos”, “os pobres”), são todos discursos que aumentam o conflito social, geram insegurança. Acho que há uma mistura de ver pessoas ao nosso redor perdendo o emprego, ou pessoas ao nosso redor sendo vítimas de violência, com o discurso do medo (que é também uma exacerbação do que acontece na realidade).
IHU On-Line - Você fala em um “suposto discurso de esquerda”. Se se trata de um suposto, o que seria, de fato, um discurso de esquerda e progressista?
Talita Tibola - No contexto da pergunta usei especificamente suposto discurso de esquerda porque estava falando sobre o medo, que é composto pelo discurso, por um discurso de poder. O que se chama de esquerda é em geral uma defesa dos direitos sociais e humanos. Mas esse entendimento nem sempre está bem claro, há pautas que são levadas adiante por movimentos sociais que estão longe de serem consideradas prioritárias para a esquerda como um todo, como a descriminalização das drogas. Essa pauta está diretamente ligada a uma luta por direitos humanos e sociais. Além de ser uma questão de saúde, possibilitando o maior controle sobre quais substâncias estão sendo vendidas (esse papel não ficando submisso à polícia), colocaria em xeque uma das maiores causas de prisões de jovens negros do país. Transformaria toda a estrutura da sociedade.
Nesse sentido é importante pensar o discurso não só como algo que é proferido (falado), mas que tem seus efeitos. É importante pensar quais os efeitos dos discursos na realidade e dizer que defender os direitos humanos não é suficiente. Acredito que o governo Lula tenha sido importante justamente pelos efeitos que teve. Ele nunca esteve preocupado em definir-se de esquerda, mas realizou ações que foram transformadoras da sociedade: o aumento das cotas raciais, o Bolsa Família. Muitos partidos e pessoas de esquerda foram contra esses projetos, chamando-os de assistencialistas e afirmando que não transformavam a base da sociedade.
Não foi só a direita que falou que era preciso investir primeiramente na educação desde a base para transformar a universidade a partir de baixo, mas definitivamente o que não se via é que havia e há ainda muita gente que não poderia esperar por essa transformação. Mas talvez eles tenham ido muito longe nisso, no sentido de esquecer que a esquerda está ligada à defesa dos direitos humanos e sociais.
"Há pautas que são levadas adiante por movimentos sociais que estão longe de serem consideradas prioritárias para a esquerda como um todo"
IHU On-Line - Politicamente, parece que a esquerda tem perdido espaço na política brasileira. Contudo, qual é o espaço que a esquerda ainda ocupa em outros setores da sociedade brasileira hoje?
Talita Tibola - A esquerda é bastante forte em alguns setores, principalmente na universidade, no funcionalismo público, mas penso que o maior espaço que a esquerda ocupa agora é um lugar histórico. É por ter esse peso tão grande de uma história, uma história conquistada, que se torna tão difícil criticá-la. Para sairmos dessa situação, uma situação que é vivida por muitos como um luto, acredito que precisamos reconstituir uma história para as pessoas. Ou constituir uma outra história desde já, que se chame ou não de esquerda.
IHU On-Line - Alguns têm feito uma crítica de que os movimentos de esquerda que surgem hoje têm um vínculo e uma linguagem direcionada para jovens de classe média, e não se dirigem nem impactam os jovens trabalhadores precarizados, que estudam e trabalham. O que lhe parece?
Talita Tibola - Me parece que a esquerda é historicamente de classe média. Sempre esteve ligada a ideólogos ligados a trabalhadores, interessados nas transformações do trabalho, fundamental para pensar a transformação da sociedade. Não vejo nisso um problema em si. Vejo um problema de acontecer uma distância com a sociedade em geral, na produção de uma idealização tanto dos “pobres”, quanto da “classe média”, quanto da “elite”. Me parece uma falta de comunicação que não está interessada em comunicar para além dela mesma, já que, quem não é ela mesma, já foi catalogado em algum rótulo como alienado, direita ou fascista, para dar alguns exemplos. Para conversar e impactar outros campos que não o próprio, é necessário antes de tudo escuta, perceber quais são não só as necessidades, mas os desejos desses jovens. As necessidades são visíveis para todos e podemos nos chamar de esquerda e proferi-las, mas os desejos não.
Por Patricia Fachin
Unisinos
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