sábado, 30 de julho de 2016

Muita gente fala em estado mínimo e gosta de ter contas pagas pelo governo

Vladimir Safatle 

 Uma das poucas ideias a orientar as ações do dito "governo" Temer é desmontar, o mais rápido possível, toda a estrutura de direitos trabalhistas e serviços públicos do Estado em nome da "austeridade".

O jogo é velho como a roda e consiste em vender à população a ideia de que a manutenção de serviços públicos e direitos é sinônimo de gastança, de abuso e de privilégio.

Nisso, o governo recebe aplausos de pé dos setores da imprensa que fazem de tudo para jogar o Brasil de volta ao capitalismo do século 19, este mesmo capitalismo onde trabalhar 44 horas por semana é pouco, já que é sempre possível esfolar trabalhadores, obrigando-os a jornadas de 60 horas, como sonha o presidente da Confederação Nacional da Indústria, arauto da nova modernidade nacional.

Na semana passada, um jornal de grande circulação chegou ao cúmulo de assinar editorial afirmando que, agora, garantir universidades públicas era simplesmente "injusto".

É verdade que isso não devia nos surpreender. Em um país no qual a elite conseguiu proezas inacreditáveis na arte de suspender o princípio de não contradição, como ser, ao mesmo tempo, liberal e escravocrata, oligarca e republicana, não é nada estranho que um jornal diga que educação pública é algo injusto.

Os argumentos, como sempre, são pedestres. O raciocínio de base consiste em dizer que as universidades públicas brasileiras financiam a elite econômica do país.

No entanto, não há número algum que corrobore esta leitura. Por exemplo, no caso da USP, 60% de seus alunos são egressos de famílias que ganham até dez salários mínimos.

Um família que ganha até dez salários mínimos não é elite nem aqui nem em lugar algum. As outras universidades federais tem números ainda mais expressivos, basta ter o interesse em procurá-los.

Da mesma forma, são primários os argumentos daqueles que se aproveitam do momento para dizer que a universalização do sistema público de saúde não é mais possível.

Notem que essas pessoas não estão preocupadas em aumentar a participação dos setores mais pobres nas universidades públicas nem procurar vias alternativas para financiamento público da saúde. Elas querem simplesmente desresponsabilizar o Estado de fornecer serviços a seus cidadãos para que elas possam pilhar melhor o dinheiro dos seus impostos.

Pois não se engane: o projeto é criar um Estado mínimo apenas para você. Porque, enquanto o Estado é mínimo para você, ele é generoso com aqueles que usam as leis para defender seus patrimônios e investimentos. Os mesmos bancos que pagam seus consultores para falar contra seus direitos não temem em recorrer ao Estado quando os negócios vão mal. Citibank, BNP/Paribas, Deutsche Bank que o digam.

Por exemplo, no mesmo momento em que seu jornal estava repleto de defensores dessa versão singular de nova justiça social, o governo brasileiro deu um aumento salarial de mais de R$ 40 bilhões para funcionários, em especial do judiciário com seus cargos nababescos. Uma maneira de comprar o silêncio e a governabilidade depois do golpe.

Enquanto o governo de São Paulo aprimorava-se no jogo de fechar escolas sem fazer alarde, ele perdoava R$ 116 milhões de dívidas da empresa francesa Alstom, por coincidência a mesma empresa envolvida nos escândalos do metrô. Pergunte quantas escolas poderiam funcionar melhor com este dinheiro.

Enquanto o ministro da Saúde sai todos os dias com uma afirmação de que o SUS não pode mais existir como tal, o governo brasileiro paga R$ 600 bilhões por ano em serviços da dívida pública. Uma dívida que nunca foi auditada, mesmo que exista lei constitucional desde 1988 obrigando o Estado a tanto. Agora, procure saber por que ela nunca foi auditada.

Não seria devido ao fato de grande parte dela ter sido resultante de socialização de dívidas de entes privados, ou seja, em bom português, uso de dinheiro público para pagar dívida de empresário e banqueiro? E que tal falar do imposto sobre grandes fortunas, que daria ao governo ao menos R$ 70 bilhões por ano?

Como você pode ver, o embate não é sobre o tamanho do Estado, mas sobre para onde vai o dinheiro, se para seus cidadãos ou se para a casta especializada em viver às custas das benesses auferidas pelo dinheiro público. O mais engraçado disso tudo é ver esse tipo de espoliação sendo vendida sob o nome de "ideias liberais".


Folha SP


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