segunda-feira, 25 de julho de 2016

Sequestro, deportação ou será melhor dizer “recondução coercitiva internacional”?

Sequestro de Adlène Hicheur, balão de ensaio. Os excessos do combate ao terror e os resquícios da ditadura

Carlos  Lungarzo

Quem é o físico brilhante que governo brasileiro expulsou às pressas, há uma semana. O que esta violência revela sobre os riscos que correm nossas liberdades civis

Durante as ditaduras do Cone Sul nas décadas de 60, 70 e 80, era frequente o súbito sequestro e a deportação de dissidentes, dentro do esquema da Operação Condor. Sem dúvida, toda violação de direitos é aberrante, mas é necessário ser honesto: a ditadura brasileira usou esse método muito menos que a chilena e numa proporção infinitamente menor que a argentina.

Na segunda etapa da ditadura (após 1973), o Brasil registra poucos casos de sequestro seguido de deportação (o número exato é impreciso), mesmo que houvesse alguns milhares de estrangeiros sem visto. Durante meu voluntariado no Acnur, pude conhecer numerosos casos de pessoas que foram “toleradas” em São Paulo e Rio durante semanas e até meses, enquanto se processava asilo razoável nos países democráticos da Europa.

De maneira mais específica, os sete casos que conheci de professoras estrangeiras de universidades públicas “perigosos para a segurança nacional” puderam ser resolvidos sem expulsão e, já em 1982, alguns/algumas obtiveram cidadania brasileira. Eu mesmo fui notificado oficialmente de que poderia sofrer deportação no caso de violação do Estatuto do Estrangeiro, mas, junto com minha família, emigrei voluntariamente, voltando depois sem sofrer retaliações.

O crescimento de grupos de centro-esquerda no começo deste milênio elevou a histeria dos conservadores, neoliberais, feiticeiros, jagunços, e membros das gangues jurídicas e policiais. E, como disseram algumas figuras famosas (entre outras, Albert Einstein e Bertrand Russell), “a covardia é a principal aliada de crueldade”.

Um sinal desta política de terra arrasada praticada pelo reciclado (quem disse “novo”?) regime de carrascos foi a deportação súbita, na sexta-feira 15, do físico franco-argelino Adlène Hicheur. Ele é um antigo membro do CERN (acrônimo antigo da instituição hoje conhecida como Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire) e pesquisador na área de partículas elementares, onde colaborou na resolução de um problema de altas energias, cuja explicação seria tediosa neste artigo. Os interessados podem consultar aqui.

Hicheur foi acolhido com entusiasmo no Instituto de Física da UFRJ, o mais avançado centro de pesquisas físicas da América Latina, onde recebeu o apoio e a amizade de colegas e autoridades. No dia do sequestro, a vice-reitora Denise Nascimento viajou até o aeroporto para reclamar contra sua extradição, mas foi ignorada pelos sequestradores.

A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), que já em janeiro tinha-se pronunciado em aberto apoio ao cientista, divulgou no dia do sequestro uma nota digna e mesurada, criticando a violação dos básicos direitos de defesa. Como cabia esperar, a nova Gestapo nem tomou conhecimento do fato, mas isto não é surpreendente. Há 80 anos, em outubro de 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, o general José Millán-Astray entrou a sangue e fogo na Universidade de Salamanca, bradando: “Que Morra a Inteligência! Que viva a Morte!”.

Contexto

Hicheur é um cientista nascido na Argélia em 1976, naturalizado na França, à qual chegou com sua família quando estava com um ano de idade. Ele é fluente e preciso em francês, inglês e português (e, imagino, em árabe), e representa a imagem do cientista não alienado: alguém movido pela curiosidade, que combina capacidade teórica com destreza prática, famélico por cultura e conhecimento do mundo: alguém cuja figura é totalmente indigesta para os vândalos que nos governam.

Em outubro de 2008, foi detido em Paris por suposta afinidade com o terrorismo. O que a polícia mostrou como “prova” foi um conjunto de emails trocados presumivelmente com membros de uma seção de Al-Qaeda, nos quais ele manifestava simpatia pelo grupo. Outra “prova” foi a profecia de um militar que afirmava que ele estava preparando um ataque a um quartel.

O judiciário francês não o vinculou com nenhuma ação concreta, e não deu verdadeiras provas, nem mesmo indícios. O que realmente condenou foi esse contato virtual: a França supostamente secular e iluminista usou, como “provas” de terrorismo, opiniões que, por seu caráter sigiloso (para todos, menos para os grampeadores dos emails) não podiam considerar-se nem propaganda nem apologia de qualquer crime. O Brasil conhece muito bem o mesmo método de “punição de intenções”, que foi usado pelos magistrados para encontrar “obstruções à justiça”, há alguns meses.

Logo em seguida formaram-se comitês de solidariedade com Hicheur em Paris e em Viena, apoiados por associações de cientistas do mundo todo, e se exigiu uma investigação independente e isenta. No total se registraram algo mais de 6000 adesões, e mais de 20 protestos oficiais dirigidos às autoridades francesas pelo atropelo jurídico-policial, com exigências juridicamente fundadas da soltura do réu.

A iniciativa irritou os tribunais, que demoraram exageradamente seu julgamento, começando apenas em março de 2012, quando Hicheur foi condenado a quatro anos de prisão. Em maio, porém, foi solto, em função da contagem do tempo de prisão provisória, e também, como maneira “elegante” de evitar a onda de crítica contra a arbitrariedade excessiva dos magistrados, que foram denunciados ao Conselho de Direitos Humanos da União Europeia. Afinal, as instituições francesas possuem certo decoro a zelar!

Os apoiadores de Hicheur lançaram, naquela época, uma intensa campanha denunciando que o judiciário francês havia inventado o crime de “pré-terrorismo”, nunca antes considerado na França. O pré-terrorismo é uma forma irônica de referir-se aos ordálios medievais utilizados pelos tribunais de exceção em alguns países da Europa. Cabe lembrar que os franceses, apesar dos momentos ruins vividos, se orgulham muito dos traços democráticos de sua história, e não gostam de ser considerados linchadores como a Espanha e a Itália.

Hicheur decidiu deslocar-se oficialmente ao Brasil, onde tinha sido convidado a pesquisar no IF da UERJ. Nunca foi reclamado pela França, mas os serviços de inteligência brasileiros fecharam o cerco sobre ele, secundados pela mídia. Enquanto notícias difamatórias eram propaladas pela imprensa e TV, a PF encontrou que a visita de Hicheur (que é muçulmano) a uma mesquita do RJ era um sinal de cumplicidade terrorista.

Ele foi ameaçado com deportação em janeiro de 2016. Foi então que a UFRJ reagiu com veemência, obrigando o ministro de Educação a não insistir em seu show de indignação, uma lastimável atitude de subserviência. No entanto, o Ministério da Justiça manteve a objetividade que era comum naquela época.

A Ponta do Iceberg

A deportação (ou será melhor dizer “recondução coercitiva internacional”?) possui várias motivações que, apesar de mantidas em sigilo, entroncam perfeitamente na estratégia de intimidação cultuada pelas gangues políticas. Essa estratégia é um balão do ensaio para estimar os efeitos de uma escalada repressiva que aproveita o pânico provocado pelo atentado em Nice. Se isto der certo, pode pensar-se em muitas outras deportações e linchamentos e aumentar ainda mais o nível de chacina contra os populares brasileiros pobres e negros. Com efeito, como foi detalhadamente denunciado pela Anistia Internacional, a escalada do terror repressivo no Rio de Janeira cresce continuamente, com o pretexto dos Jogos Olímpicos.

Também existem razões ideológicas que são menos importantes que o efeito diversionista do sequestro. Entre essas razões, pode ser significativo um detalhe que nunca é bem compreendido quando se fala de islamofobia (mesmo que esta palavra seja ambígua, e deva ser usada com cuidado).

Com efeito, a tradição cristã no Oriente Médio (especialmente a maronita) foi sempre especialmente adversa ao islamismo, contra o qual exerceu o terror em diversas épocas. O que mais apavorou a comunidade internacional foi a chacina em que, como instrumento do governo de Israel, as falanges maronitas executaram nos campos de refugiados de Ṣabrā wa Shātīlā, em setembro de 1982. A Falange assassinou mulheres e crianças, que, segundo fontes da ONU, podiam atingir 3500 vítimas.

Embora um fato sem utilidade prática nenhuma (apenas um ato de vingança), a deportação de Hicheur pode servir para tornar mais estreitos os laços dos golpistas brasileiros com o governo do Likud. A medida parece sutil demais para a mente dos atuais governantes do Brasil, e seria mais natural atribuir o sequestro a simples barbárie. Todavia, esta hipótese ideológica e geopolítica não deve ser descartada; no atual cenário internacional, ostentação de racismo e xenofobia pode ser muito lucrativa.

Além disso, o neofascismo brasileiro faz tempo que se empenha na entrada do país no círculo internacional do terror contra terror, algo que lhes daria prestígio na frente dos “patrocinadores”. Para que essa alternativa vire aceitável, talvez seja necessário mostrar o perigo terrorista nestas terras, e isso pode ser facilmente conseguido com autoatentados, uma velha fonte de provocação política. Este é um assunto grave e só cabe torcer para que a comunidade democrática internacional fique alerta.

Carlos Lungarzo

Escritor, professor aposentado da Unicamp e membro da Anistia Internacional dos EUA, depois de haver passado pelas seções mexicana, argentina e brasileira da AI, na qual milita desde 1980.

Diário em Foco


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