terça-feira, 1 de setembro de 2015
Mujica e a Frente Ampla
Marcus Ianoni
A ideia de que o homem faz a história, mas em circunstâncias determinadas, alheias e independentes de sua vontade, é conhecida, por ser de um pensador clássico. Não só classes, frações e grupos são os agentes da transformação. Indivíduos também podem mudar o mundo, sobretudo quando esse mundo é o estado-nação à qual pertencem, e desde que conectados aos interesses de forças sociais mais amplas. Destacar a ação individual não significa aderir ao elitismo político, que separa, para todo o sempre, elites e massas, mas apenas reconhecer que há lideranças políticas singulares, com nome e sobrenome, como a história comprova aos montes, sendo este o caso de José Mujica, ex-presidente do Uruguai e atual senador, o popular e carismático Pepe dos uruguaios. Mas que não se esqueça, trata-se de uma liderança partidária, de modo que o partido precisa ser também destacado. Partidos também transformam o mundo.
Mujica foi eleito presidente do Uruguai em 2009, pela Frente Ampla, um partido de esquerda, e empossado em 2010 para um mandato de cinco anos, findo em 2015, que alcançou ótimo nível de avaliação dos eleitores. Deu vez a um novo mandato de Tabaré Vázquez, seu correligionário que o havia antecedido, tendo vencido em 2004 e, recentemente, em 2014. Essa terceira vitória consecutiva da Frente Ampla é uma expressão da Onda Rosa, que se manifestou na América do Sul desde o final dos anos 1990 e que, atualmente, vem enfrentando resistências de forças de oposição, como ocorre no Brasil e na Venezuela. Rosa é o vermelho atenuado pelo branco, uma alusão à esquerda moderada, reformista, como é que caso da Frente Ampla, que busca compatibilizar ideais socialistas e desenvolvimento capitalista. Mujica vem sendo tratado como uma lenda viva por seus admiradores de dentro e fora do Uruguai, mas o exame de seu desempenho deve levar em conta sua condição de liderança partidariamente enraizada. Por outro lado, o partido não explica todo o seu mérito. Tabaré Vázquez, por exemplo, e José Mujica têm características pessoais distintas.
Pepe se notabilizou pelo comportamento sóbrio, simples, autêntico, mas também como gestor e liderança política nacional e regional, do Cone Sul. Após tomar posse, em 2010, continuou a morar na pequena e modesta chácara que mantém com sua esposa – senadora como ele, agora candidata à intendência de Montevidéu – e a dirigir o mesmo fusca modelo 1987 que possuía antes de alcançar o principal posto político da República Oriental do Uruguai. Em entrevistas e discursos, destaca a incoerência dos que se comportam de modo aristocrático em uma era formalmente republicana. Doou 90% de seu vencimento presidencial para organizações políticas e sociais e critica, com serenidade e transmitindo credibilidade, pela congruência com seu efetivo modo de ser, o consumismo e o estilo de vida comandado pelo espírito capitalista de acumulação. Assim, une, por um lado, a tradicional crítica de esquerda à alienação capitalista e ao reino fetichizado das mercadorias, por outro, os ideais ambientalistas, de sustentabilidade e consciência alternativa de inúmeros contingentes das novas gerações. Tem sido uma referência política para a juventude latino-americana e de outras partes do mundo, como ficou evidenciando recentemente em sua vinda ao Rio de Janeiro, onde recebeu da Federação de Câmaras de Comércio e Indústria da América do Sul (Federasur) o prêmio “Personalidade Sul 2015”.
Seu governo logrou aprovar leis polêmicas relacionadas aos costumes. Para combater o narcotráfico, legalizou a compra, venda e cultivo da maconha, mediante supervisão do Estado. O aborto anterior à décima segunda semana de gestação foi descriminalizado e legalizou-se o casamento de pessoas do mesmo sexo. Até a conservadora The Economist elogiou e premiou o Uruguai por essas reformas. A conquista de maioria parlamentar pela Frente Ampla, em seu mandato, facilitou muito a aprovação de sua agenda legislativa sobre direitos civis e outras matérias, como a Lei dos Meios, que reforma o setor de telecomunicações, visando garantir pluralidade de proprietários e diversidade de opiniões. Essa agenda progressista, ideológica e bastante atual retoma a trajetória do Uruguai de vanguarda da democracia na América Latina, portador de um regime democrático consolidado, inclusive com sólida prática de democracia direta (plebiscitos e referendos), país que até os anos 1960 era conhecido como a Suíça sul-americana, que regularizou a prostituição em 1914, foi pioneiro na aprovação do voto feminino, na lei do divórcio, na adoção da jornada diária de trabalho de oito horas, em várias regulamentações educacionais progressistas e assim por diante.
Mas o ex-guerrilheiro Tupamaro, hoje com 80 anos, 14 deles vividos na prisão, e seu partido sabem que as conquistas sociais e democráticas pressupõem condições materiais que só podem ser propiciadas pelo desenvolvimento capitalista. Por outro lado, eles têm claro que o mercado, deixado livre e sem que o Estado contrabalance suas injustiças, não se preocupa com as desigualdades que gera, pelo contrário, tende a tirar proveito delas. A relação de forças entre as classes e a capacidade de um Estado com forte representação dos estratos sociais populares mediar os interesses e conflitos distributivos e impulsionar o crescimento fornecem as condições para equacionar as variáveis acumulação de capital e justiça social.
Desde que a Frente Ampla assumiu o governo, em 2005, o Uruguai, país com cerca de 3,5 milhões de habitantes, vem experimentando crescimento acompanhado de expansão das oportunidades e inclusão social, por meio de políticas inovadoras, como as de transferência de renda. Cresceu 5,6% ao ano entre 2005 e 2013 (ou seja, com força e continuidade), o dobro do registrado na década de 1990. Entre 1999 e 2002, atravessou uma longa recessão. Nos últimos anos, o desemprego caiu bastante, chegando a 6,8% em junho de 2014, quando o PIB cresceu 3,3%. Houve também aumento da renda do trabalho. O salário mínimo de 405 dólares é o terceiro maior do continente. Além disso, o país da América Latina com os melhores indicadores sociais, tal como menos pobreza e indigência, seguido pelo Chile, continuou combatendo a desigualdade, que prosseguiu em queda, em harmonia com a mesma tendência em curso em toda a região. Foi implementada também uma política de melhoria da progressividade do sistema tributário. Melhorou ainda o acesso à educação e a oferta de trabalhadores com alta qualificação, assim como o crescimento forte permitiu incorporar ao mercado de trabalho, sobretudo na agricultura e construção civil, mão de obra pouco qualificada. E isso tudo ocorreu junto com a diminuição da diferença nas rendas salariais. Houve aumento do gasto público, para financiar as mudanças, mas a dívida pública está sob controle, tendo declinado muito nos últimos anos. Apesar da inflação estar em torno de 8,5%, que levou a um acordo recente com os empresários de congelamento de 1578 produtos por 60 dias, os investidores confiam no país e o nível de reservas cambiais é relativamente elevado. Ou seja, a gestão da Frente Ampla, desde 2005, e do governo Mujica, em 2010-2015, foi positiva em várias frentes de ação.
Os sistemas econômicos do Brasil e Uruguai são diferentes. O vizinho do extremo sul ainda tem uma economia primário-exportadora, de produtos agrícolas e minerais, enquanto o Brasil tem um sistema econômico bem mais complexo, embora em crise e desafiado a renovar-se. Desde o final dos anos 1990, o Uruguai tem sido pioneiro também no combate à corrupção, esforço no qual o Brasil parece estar se empenhando nos últimos anos. A história, a sociedade, a política, enfim, de Brasil e Uruguai são também diferentes e não se trata aqui de fazer comparações. O objetivo foi apenas chamar a atenção para uma experiência bem-sucedida de governo latino-americano de esquerda reformista, em que se destaca a qualidade da liderança individual e partidária. Não se trata de culto à personalidade e nem de endeusamento da Frente Ampla, tampouco de fechar os olhos para o papel protagonista que indivíduos e partidos socialmente enraizados podem desempenhar na história.
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e Visiting Researcher Associate da Universidade de Oxford (Latin American Centre)
Jornal do Brasil
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