terça-feira, 9 de junho de 2015

Vidas Secas: o sertanejo como um fraco



Um mundo cheio de preás gordos
Alexandre Coslei

Para Euclides da Cunha, o sertanejo era antes de tudo um forte. Guimarães Rosa nos contou sobre os cangaceiros valentes em Sagarana e Grande Sertão Veredas. Graciliano escolheu a contramão, nos apresentou um nordestino conformado, que se assume como fraco e avesso à comunicação. Em Vidas Secas vemos o homem que foge apenas para sobreviver.




Antes de começar qualquer análise de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é relevante conhecer que este livro se formou de textos esparsos, escritos numa pensão, com intenção de serem contos, mas foram reunidos numa arquitetura editorial que os transformou em romance, obra que marca a identidade maior do autor.

A narrativa é composta em terceira pessoa e segue os passos de uma família de retirantes, nômades transitando por um cenário desolado, paisagem que também se incorpora ao livro como se fosse uma decisiva personagem.

Na contramão de Euclides da Cunha, que descreve o nordestino como um forte, contrariando também os valentes cangaceiros de Guimarães Rosa, o escritor Graciliano Ramos escolheu descrever figuras humanas que se declaram fracas e conformadas, vítimas de um hostil ambiente social e geográfico. Não agem, apenas reagem. Não resistem, somente subsistem.

Fabiano e sua família são personagens tão áridos quanto o agreste que os abriga. Pouco se comunicam. A linguagem de Graciliano Ramos, econômica e afiada, nos conduz a um mergulho intenso na vida ressecada e inóspita desses sertanejos. O estilo do texto, que usa as palavras como lâminas e, apesar disso, não nos poupa de uma descrição riquíssima de tudo que envolve a história, nos remete a recordar o poeta João Cabral de Melo Neto, que segue por linhas que encontram muitas semelhanças com Graciliano.

Fabiano, o chefe da família, constantemente exprime uma revolta abafada, sente-se oprimido, explorado e muitas vezes humilhado, mas aceita. Por diversas vezes revela o respeito pelas patentes, pelo Governo. Governo é Governo, diz ele, como se fosse ideia inconcebível afrontar o status quo. É Fabiano quem toca e decide os rumos da família e é a ele que seguem Sinhá Vitória (a esposa), o menino mais novo e o mais velho (os filhos). Como personagem, Fabiano agrega a riqueza da contradição, é passivo diante da vida e passional em seus pensamentos. Guarda sua força para manter a meta pela mera sobrevivência. Ao seu redor, não parece existir esperança. Só há a espera entre a seca que os faz migrar e a subsistência que mantém o existir.

Sinhá Vitória, em alguns momentos, parece ser o contraponto a Fabiano. É pragmática, a ela cabem os cálculos, o planejamento das finanças. Corrói-se, em determinada passagem, por ter comido o papagaio que os acompanhava na jornada, mas justifica o ato com a razão, apesar da consciência doída. Possui vaidade e uma limitada ambição, enquanto Fabiano demonstra o absoluto conformismo em seu discurso.

Baleia é a presença marcante que atravessa toda a narrativa, como se fosse o núcleo, a convergência emocional para todos os personagens centrais do romance. A cachorra Baleia é o hiato naquela aridez claustrofóbica, ela é a única projeção de afeto da família. Sua morte constrói o momento magistral de Vidas Secas, é um relato tão comovente ao ponto de causar uma inevitável catarse em quem lê. Baleia é a lembrança do amor incondicional em seres que já desaprenderam o que é amar. Baleia é a poesia numa prosa que se empreendeu a contar sobre o deserto.

E é nessa vida de gado, do povo marcado pelos versos do cantor contemporâneo Zé Ramalho, que a pequena manada dos nordestinos de Vidas Secas migra, sob o sol causticante, por entre o barro vermelho dos sertões do Brasil. Graciliano pinta o retrato que denuncia e expõe as enraizadas desigualdades do nosso país.


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