segunda-feira, 22 de junho de 2015

Os donos da verdade


Luiz Antonio Simas:
 

Em tempos intolerantes, escutem a lição de Exu e ensaiem outras miradas antes de matar ou morrer por crenças

Rio - Contam os iorubás que o orixá Exu um dia resolveu desafiar dois sabichões arrogantes na praça do mercado. Eles garantiam, cheios de teorias, conhecer a verdade sobre determinado acontecimento que abalou o povo. Exu afirmou aos doutores que o dono da razão é aquele que consegue dizer qual é a cor do gorro que ele leva na cabeça.

Feito isso, Exu colocou os sabichões em lados diferentes da feira e passou pelo meio deles, gingando ao som dos tambores ancestrais. Acontece que a carapuça do orixá era vermelha de um lado e preta do outro. O que olhou Exu pela direita enxergou o filá preto; o que o olhou pela esquerda viu um gorro vermelho.

Um não admitiu que o outro pudesse estar certo e os dois acabaram se matando em nome da verdade absoluta. Exu soltou a gargalhada zombeteira e seguiu seu caminho, em busca de um bode para descarnar, realizando assim uma de suas funções mais sofisticadas: a de gerar a confusão que, no fim das contas, nos redime e ensina.

A polêmica que envolve a verdadeira cor da carapuça de Exu, o andarilho, destrói a pretensão dos sábios em relação ao domínio da verdade. Ela expõe ainda a sofisticada e ancestral visão de Ifá — o corpo literário com os poemas iorubás da criação — sobre versão dos fatos, questionamento da verdade histórica e disputa pela narrativa; temas tão presentes nestes tempos em que todos parecem dispostos a matar e morrer por crenças e certezas.

A respeito desses babados, li boas reflexões de gente citando Nietzsche, Derrida, Foucault etc. Quero, com este texto modesto, contribuir de mansinho, na quebrada dos tempos, citando a minha maior referência no campo da teoria da História. Já que sou adepto da epistemologia da macumba e tenho por hábito olhar o mundo a partir das encruzilhadas, revelo: Elegbara, mais conhecido como Exu, é o meu teórico do conhecimento predileto.

O fato é que o compadre — um craque nas questões que coloca em suas aventuras — já tinha exposto antes dos alemães e dos franceses esse problema da verdade dos fatos com grande competência.

Fica a dica para tempos difíceis e intolerantes: escutem a lição de Exu e ensaiem outras miradas antes de arrotar sentenças, matar ou morrer por causa de alguma verdade indiscutível. E dancemos enquanto os atabaques tocam.

O Dia 


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