O texto na nossa Constituição é claro, e se trata nada menos do que do fundamento da democracia: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Está logo no artigo 1º, e garante por tanto a participação cidadã através de representantes ou diretamente. Ver na aplicação deste artigo, por um presidente eleito, e que jurou defender a Constituição, um atentado à democracia não pode ser ignorância, constitui vulgar defesa de interesses elitistas por quem detesta ver cidadãos se imiscuindo na política. Preferem se entender com representantes. Mais grave, continua sendo aplicada a lei inconstitucional de 1997 que autoriza as corporações a financiar as campanhas, com apropriação direta dos mandatos políticos. As elites já participam diretamente, trata-se de democratizar o processo.
A democracia participativa em lugar algum substituiu a democracia representativa. São duas dimensões de exercício da gestão pública. A verdade é que todos os partidos, de todos os horizontes, sempre convocam a população a participar, apoiar, criticar, fiscalizar, exercer os seus direitos cidadãos. Mas quando um governo eleito gera espaços institucionais para que a população possa participar efetivamente, de maneira organizada, os agrupamentos da direita invertem o discurso e criminalizam os movimentos.
É útil lembrar aqui as manifestações de junho do ano passado. As multidões que manifestaram buscavam mais quantidade e qualidade em mobilidade urbana, saúde, educação e semelhantes. Saíram às ruas justamente porque as instâncias representativas não constituíam veículo suficiente de transmissão das necessidades da população para a máquina pública nos seus diversos níveis. Em outros termos, faltavam correias de transmissão entre as necessidades da população e os processos decisórios.
A presença direta dos grupos de interesses, sem o contrapeso das organizações populares, resultou, por exemplo, na construção de viadutos e outras infraestruturas para carros, desleixando o transporte coletivo de massa e paralisando a cidade. Uma Sabesp vende água, o que rende dinheiro, mas não investe em esgotos e tratamento, pois é custo, e o resultado é uma cidade rica como São Paulo que vive rodeada de esgotos a céu aberto, gerando contaminação a cada enchente. Quando não chove, a cidade amarga a falta de água, quando por falta de investimentos um terço da água distribuída se perde em vazamentos.
Inaugurar viaduto permite belas imagens, saneamento básico e tratamento de esgotos muito menos. Esta dinâmica pode ser encontrada em cada cidade do país onde são algumas empreiteiras e especuladores imobiliários que mandam na política tradicional, priorizando o lucro corporativo em vez de buscar o bem estar da população.
Participação democrática funciona. Nada como criar espaços para que seja ouvida a população, se queremos ser eficientes. Ninguém melhor do que os residentes de um bairro para saber quais ruas se enchem de lama quando chove. As horas que as pessoas passam no ponto de ônibus e no trânsito diariamente as levam a engolir a revolta, ou sair indignadas às ruas, mas o que as pessoas necessitam é justamente ter canais de expressão das suas prioridades, em vez de ver nos jornais e na televisão a inauguração de mais um viaduto. Trata-se aqui de aproximar o uso dos recursos públicos das necessidades reais da população. Ou seja, de gerar os canais organizados de expressão destas necessidades. Dito de outra forma, é a visão de um processo decisório que funcione com rédeas mais curtas, mais próximo da população, e com muito mais transparência.
Participação não é modismo de esquerda nem saudade da Grécia antiga. Trata-se de resgatar a funcionalidade política e a racionalidade da gestão pública.
Corresponde às mudanças de uma sociedade moderna e complexa. Quatro eixos de transformação estrutural definem o marco desta mudança institucional: a urbanização, a expansão das políticas sociais, a economia do conhecimento e a conectividade planetária.
Uma sociedade urbanizada
Em meados do século passado tínhamos dois terços de população rural, e as decisões se davam nas capitais, o resto era população dispersa sem peso político significativo. Hoje temos 85% de população urbana. E se algumas atividades se globalizaram, outras como a gestão do nosso cotidiano, o deslocamento para o trabalho, a segurança do nosso bairro, o médico da família, a escola das crianças, a riqueza cultural do nosso cotidiano e outras atividades centrais para a qualidade de vida passaram a depender essencialmente da organização local. Qualquer município hoje tem gente formada, capacidade de gestão que aliada com o conhecimento profundo das especificidades locais, permite racionalizar a gestão tanto urbana como do entorno rural. E quando não tem, poderá se organizar em consórcios com cidades maiores da região, buscar o apoio técnico de universidades regionais e assim por diante.
Ou seja, o grosso da gestão do cotidiano político pode ser radicalmente descentralizado. Inclusive porque as novas tecnologias permitem descentralizar o processo decisório sem perder a capacidade de seguimento político mais amplo no plano estadual e federal. E obviamente a política de proximidade facilita radicalmente a participação. Urbanização, descentralização e participação fazem parte de um mesmo processo de racionalização da política. Inclusive, a própria produtividade e efetividade dos programas federais depende vitalmente da capacidade organizada de recepção pelas comunidades locais. Frequentemente, em termos de gestão do desenvolvimento, mais importante do que a quantidade de recursos é a qualidade da gestão. E a participação é um poderoso fator de racionalização.
Centralidade das políticas sociais
Quando as pessoas falam em crescimento da economia, ainda pensam em comércio, automóvel e semelhantes. A grande realidade é que o essencial dos processos produtivos se deslocou para as chamadas políticas sociais. O maior setor econômico dos Estados Unidos, para dar um exemplo, é a saúde, representando 18,1% do PIB. A totalidade dos setores industriais nos EUA emprega hoje menos de 10% da população ativa. Se somarmos saúde, educação, cultura, esporte, lazer, segurança e semelhantes, todos diretamente ligados ao bem estar da população, temos aqui o que é o principal vetor de desenvolvimento. Investir na população, no seu bem estar, na sua cultura e educação, é o que mais rende. Não é gasto, é investimento nas pessoas. Estamos invertendo a bobagem de primeiro fazer crescer o bolo para depois distribuir. São pessoas bem formadas e vivendo em condições decentes que farão crescer o bolo, como nos ensinou a Coréia do Sul, o Japão e tantos outros.
A característica destes setores dinâmicos da sociedade moderna, é que são capilares, têm de chegar de maneira diferenciada a cada cidadão, a cada criança, a cada casa, a cada bairro. E de maneira diferenciada porque no agreste terá papel central a água, na metrópole a mobilidade e a segurança e assim por diante. Aqui funciona mal a política centralizada e padronizada para todos: a flexibilidade e ajuste fino ao que as populações precisam e desejam são fundamentais, e isto exige políticas participativas. Produzir tênis pode ser feito em qualquer parte do mundo, coloca-se em contêiner e se despacha para o resto do mundo. Saúde, cultura, educação não são enlatados que se despacham. São formas densas de organização da sociedade. A chamada política de proximidade torna-se fundamental. Nestes novos setores da economia moderna, abre-se assim uma avenida particularmente rica de organização da participação da sociedade civil em torno aos seus interesses.
As organizações da sociedade civil têm as suas raízes nas comunidades onde residem, podem melhor dar expressão organizada às demandas, e sobre tudo tendem a assegurar a capilaridade das políticas públicas. Não seriam mais eficientes para produzir automóveis ou represas hidroelétricas. Mas nas áreas sociais, no controle das políticas ambientais, no conjunto das atividades diretamente ligadas à qualidade do cotidiano, são simplesmente indispensáveis.
O setor público tem tudo a ganhar com este tipo de parcerias. E fica até estranho os mesmos meios políticos e empresariais que tanto defendem as parceiras público-privadas (PPPs), ficarem tão indignados quando aparece a perspectiva de parcerias com as organizações sociais. O que o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, e a Política Nacional de Participação Social, aprovados em 2014, liberam, é o potencial das parcerias entre o governo e as OSCs, no que tem sido chamado internacionalmente de parcerias do tipo público/público, em contraposição ao público/privado.
A economia do conhecimento
O deslocamento para a economia do conhecimento está sendo tão profundo como foi, em termos de mudança estrutural, a transição da economia rural para a industrial. Como ordem de grandeza, podemos estimar que hoje o conhecimento se tornou o principal fator de produção. Um celular, naturalmente, tem mais de 90% do seu valor em conhecimento incorporado (pesquisa, design etc.), mas hoje toda atividade está se tornando densa em conhecimento, inclusive a do pequeno agricultor que recorre |à inseminação artificial, análise de solo, sementes melhoradas e assim por diante. Hoje qualquer camponês do Quênia comercializa a sua safra através de programas no seu celular. Esta expansão vertiginosa das novas tecnologias tem duplo sentido: tanto pode gerar maior dependência de gigantes corporativos, como pode gerar autonomia e empoderamento dos pequenos agricultores.
A grande diferença é que a propriedade de fábricas é muito limitada, enquanto inteligência e capacidade criativa temos todos. Ou seja, abrem-se possibilidades de apropriação local das transformações econômicas e sociais por parte de pessoas ou de regiões que estavam simplesmente excluídas. O conhecimento, como fator de produção, tem esta particularidade de não ser um bem material que se esgota.
Quem repassa o seu conhecimento para alguém, continua com ele. Em outros termos, o principal fator de produção hoje é um fator cujo uso não reduz o estoque. No jargão econômico, é um bem não rival. A guerra é grande, com extensão de copyrights, patentes, royalties e outras formas de pedágio. Mas a apropriação do conhecimento pela população em geral é irreversível.
Há poucas décadas ainda, havia as pessoas formadas, ou seja capazes, e havia a massa ignara. Com isto se justificava a centralização de todos os processos organizados nas mãos de elites. Com a generalização e democratização do conhecimento – que está no seu começo apenas mas avança rapidamente – abrem-se imensas possibilidades de gestão participativa e descentralizada. O elitismo tradicional nos processos decisórios passa a fazer muito menos sentido. As pessoas podem ser pobres mas não são burras, e hoje têm consciência de que têm direito a uma saúde decente para a sua família, educação adequada para os filhos e outros direitos. Os próprios sistemas tradicionais de organização partidária elitista estão sendo questionados. São Paulo, ao eleger representantes locais nas 32 subprefeituras, e ao formá-los para a participação, está dando os primeiros passos no resgate não só da cidadania, mas de uma gestão mais democrática e eficiente.
A conectividade
A economia do conhecimento navega nas novas tecnologias de informação e comunicação. Pintadas na Bahia resgatou o cultivo das suas terras através de uma parceria com a Universidade Federal da Bahia; Piraí no Estado do Rio generalizou o acesso à banda larga melhorando desde a produtividade nas repartições públicas e nas empresas até o interesse maior dos alunos quando o estudo lhes permite ter acesso online ao conhecimento acumulado no planeta; pequenos municípios e pequenos produtores se conectam online para se articular com outros municípios ou outros produtores. Gera-se assim o conceito de gestão horizontal em rede, diferente das tradicionais pirâmides de autoridade onde a base apenas escuta e cumpre.
A expansão fulgurante da telefonia por celular e da conexão internet – no Brasil já são mais de 50% da população que acessam – cria uma nova dinâmica que aparece na mídia quando jovens se organizam para um protesto, mas que tem dimensões estruturantes da sociedade muito mais profundas. Um município pode ser pequeno, mas se está conectado, torna-se perfeitamente viável. E a gestão de projetos menores e diversificados fica muito mais eficiente tanto em termos de flexibilidade administrativa como de controle em esferas superiores. Aliás, a expansão da gestão participativa local não só racionaliza o próprio desenvolvimento local, como tira de dentro dos gabinetes dos ministros a pressão de prefeitos e deputados pelo varejo, e lhes permite se debruçar mais efetivamente sobre as questões nacionais. A descentralização racionaliza. Mas para que não se torne política de cacique local, precisamos de canais participativos organizados e eficientes.
Eu, de certa forma graças aos militares, conheci muitas experiências pelo mundo afora, trabalhando nas Nações Unidas ou diretamente para governos. Todos os países desenvolvidos têm ampla experiência, muito bem sucedida, de sistemas descentralizados e participativos, de conselhos comunitários e outras estruturas semelhantes. Isto não só torna as políticas mais eficientes, como gera transparência. É bom que tanto as instituições públicas como as empresas privadas que executam as políticas tenham de prestar contas. Democracia, transparência, participação e prestação de contas fazem bem para todos.
Carta Maior
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