“Admitir que ‘eu não sou a única esquerda’ deveria ser o primeiro passo para qualquer perspectiva que quer ser chamada de esquerda”
E se buscássemos incorporar, às lutas sociais, todos os que o capitalismo descarta? E se isso significasse renunciar à busca da verdade única?
Moysés Pinto Neto, em O Ingovernável
Uma das questões perenes para todo mundo que se autodenomina de esquerda é por que razão esta costuma fracassar quando está no poder. Não vou entrar no mérito, embora concorde, com a afirmativa de Gilles Deleuze de que não existe governo de esquerda. E também – ainda que concorde também – deixarei de lado as frases do mesmo filósofo (citadas recentemente por Déborah Danowski e Isabelle Stengers, respectivamente) de que a pessoa de direita sempre parte de si mesma para chegar ao outro, enquanto na esquerda é o inverso, e que para ser de esquerda é preciso pensar, ao contrário da direita, para cuja adesão basta seguir a maré. Como disse, concordo com todas as afirmações de Deleuze, mas vou suspendê-las por um instante e pensar que seria possível ao menos um governo que se tornasse menos governo – e portanto mais vida (ou como se queira chamar esse espaço ingovernável) – e que isso poderia ser chamado de “esquerda”.
Dito isso, o diagnóstico quase universal, sempre em tom de lamentação ou de auto-ironia, é que a direita sabe se unir, enquanto a esquerda se dispersa facilmente. É folclórica a afirmação de que as reuniões de esquerda sempre terminam em ruptura e que cada um funda sua célula. A direita, ao contrário, seria capaz de se aglutinar em torno de objetivos pragmáticos, contando ainda com o bônus extra fundamental da inércia. Por isso, seria necessária uma espécie de “pacto de unidade” que permitiria à esquerda superar as diferenças e reunir-se na luta contra a direita (ao fim das contas, o inimigo comum).
Meu palpite é que não é por acaso que essa lamentação já dura mais de 100 anos. Ela dura porque está errada. E esse erro, entre muitos outros possíveis, é que tem afundado a esquerda e condenado-a a repetir sempre os mesmos erros. Por alguma espécie de reflexo condicionado, os esquerdistas sempre procuram resolver os erros e aporias voltando a uma interpretação “mais original” do que teria sido mal lido. Conservadorismo de esquerda? Parece que sim. Essa hipótese que denega o acontecido, ou melhor, que o acontecido ocorreu porque o erro fazia parte das suas virtualidades, é uma espécie de mecanismo de repetição que não permite à esquerda superar seus traumas, em especial o maior de todos: o estalinismo. O que Zizek costuma dizer em relação ao neoliberalismo é válido também para a própria esquerda, Zizek inclusive. O filósofo afirma que o neoliberalismo sempre nega suas crises não como defeito, mas como falta de neoliberalismo. Faltou mais mercado, quando houver mais mercado aí sim as coisas funcionarão. De certa forma, esse mesmo mecanismo opera na mentalidade de esquerda: faltou mais unidade, faltou mais do projeto original, o que aconteceu não foi radical o suficiente. É interessante perceber o quanto nossa esquerda hegeliana é anti-hegeliana no assunto, já que a dialética do pensador alemão é exatamente a incorporação da contradição como parte da lógica da totalidade. Sendo assim, os efeitos “negativos” ou “contraditórios” tem que ser assumidos como parte da dialética do real, e não meros pálidos reflexos de algo que não teria se apresentado em toda sua verdade. Assim como vários pensadores contemporâneos postulam o nazismo como efeito, e não desvio, da Modernidade, é preciso assumir o estalinismo como contradição real da esquerda.
O que quero dizer com isso é que a imagem de uma esquerda que se dispersa demasiadamente e se nega à “união” que nos permitiria enfrentar a direita é exatamente a raiz não apenas da violência estalinista, mas do fracasso da esquerda no poder. Quando a esquerda vence, ela perde também, já que no final terá que se submeter a uma infinidade de pautas e concessões à direita ou recorrer a um governo autoritário que é o próprio contrário do que o significante “esquerda” deveria representar. A maioria da sociedade é conservadora e por isso de direita, de modo que a esquerda está sempre emparedada, mesmo quando eleita. Quando a situação se torna crônica, a esquerda vai gradualmente se recolhendo até ficar quase idêntica à direita, ficando por isso imprestável, já que esse serviço a direita faz melhor. A hipótese é que é justamente a representação da “unidade” como solução para esse dilema a causa do problema.
Em outros termos: precisamos de uma esquerda que não seja mais uma (e muito menos um Partido), precisamos de múltiplas esquerdas. O que o estalinismo deveria ensinar à esquerda é que a lógica centralizadora é justamente seu pior defeito, que a busca da unidade é exatamente seu ponto fraco. Eis agora a maior provocação: o que a direita sabe é que não precisa da unidade. A direita pode conviver com liberais, conservadores, reacionários e fascistas. Ela comporta essas variações, do sujeito que por exemplo é favorável à liberdade de mercado e ao mesmo tempo aos direitos humanos e sustentabilidade até o fascista que quer “ir para cima” dos gays. Ela não demanda a unidade. E é isso que a esquerda precisa aprender com a direita: a conviver com o múltiplo. Claro que o múltiplo da direita é homogeneizador e trabalha fundamentalmente com figuras determinadas: o consumidor, o empresário, o pai de família etc. Mas a isso a esquerda não deveria opor outro Um, mas multiplicar o múltiplo. Mostrar os que ficam de fora do mundo da direita e apresentá-los como mais diferença. Usar menos a imagem do “povo”, uma unidade, que os múltiplos (índio, mulher, gay etc.).
Isso significa que as esquerdas deveriam se reconhecer mais como esquerdas. Recentemente, Eduardo Jorge mencionou que não existe “Vaticano Vermelho” para decidir quem é mais socialista. No entanto, uma das principais lutas da esquerda se dá exatamente pela posição de Vaticano Vermelho. A ideia de que existe só uma esquerda verdadeira é a mais lamentável herança estalinista na esquerda. Ela é também burra estrategicamente: ou a esquerda mantém-se no projeto autoritário de que somente no Um (na “união”) é possível a hegemonia (o que nos conduz a um cenário indesejável), ou nunca terá maioria porque despreza o múltiplo (quem não é “Eu mesmo” não é esquerda). Quando vejo que ao se apresentarem alternativas de esquerda os velhos fantasmas do Partidão vêm nos assombrar, chamando-as de aliadas da burguesia e toda essa nomenklatura que serviu para que não se reconhecesse até hoje, por exemplo, o evento-1968, vejo o quanto a sombra da “unidade” continua sendo um mecanismo de repetição compulsiva. Toda esquerda que quer esmagar suas variações como falsificações do Verdadeiro Um, de preferência o Partido, é autoritária e burra. Em vez de eliminar possíveis alianças que poderiam consolidar um novo campo político para realmente enfrentar a direita, contar com elas e com apoio de boa parte sociedade que se veria contemplada nessa multiplicidade para dar conta da tarefa. Reconhecer que existem variações possíveis em pautas e que elas não precisam convergir no Um. Admitir que “eu não sou a única esquerda” deveria ser o primeiro passo para qualquer perspectiva que quer ser chamada de esquerda.
Em síntese: saber-se perspectiva, e não verdade.
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