Uma saída justa e digna: promover a verdadeira reforma urbana
Um país com tamanha diversidade e complexidade como o nosso pede um leque abrangente de políticas públicas territoriais articuladas, que abandone a rigidez e consolide a flexibilidade, dialogando com soluções que a contemporaneidade exige e que os valores modernos, liberais e fordistas não são mais capazes de suprir
Francisco Comarú
Segundo dados do IBGE e das prefeituras, a população residente em favelas e loteamentos irregulares e precários cresce muito mais rapidamente que a população como um todo em São Paulo e nas principais metrópoles do país. O número de ocupações de terrenos vazios, prédios ociosos e baixos de viadutos não para de crescer. Na semana em que ocorria o Fórum Urbano Mundial promovido sob os auspícios da Agência UN-Habitat em Medellín, Colômbia, em abril deste ano, os movimentos sociais urbanos promoveram mais de vinte ocupações de edifícios e terrenos na cidade de São Paulo e organizaram uma excursão até Brasília para cobrar do governo federal mais e melhor aplicação de recursos para as políticas de habitação.
No início de maio, os movimentos de moradia, num ato de cidadania, pressionaram muito (e enfrentaram a polícia) na porta da Câmara Municipal de São Paulo para que os vereadores aprovassem em primeira votação o Projeto de Lei do novo Plano Diretor Estratégico, que prevê a aplicação de alguns instrumentos importantes para a produção de habitação social e de uma cidade mais sustentável, equilibrada e includente nas próximas décadas – uma medida de alerta num período propício às negociatas que historicamente ocorrem na calada da noite.
No dia 3 de maio, milhares de famílias ocuparam um terreno próximo ao Estádio do Itaquerão, às vésperas da Copa, e já havia decisão de um juiz da capital para a reintegração de posse, a pedido da construtora Viver Empreendimentos, dona da área. Negociações pontuais se seguem lá e em tantos outros conflitos em torno do problema da moradia. A sociedade brasileira já tem experiências desse tipo, e sabemos que a força física e a ação da polícia não vão resolver questões sociais nem o problema do direito à moradia adequada e bem localizada para todos, como definido pela Constituição e pelo Estatuto da Cidade.
Foram muitos anos de descaso, ingerência e irresponsabilidade de diversos governos para que chegássemos a este ponto de severa crise urbana (e ambiental). Hoje a cidade virou uma mercadoria, e os imóveis estão sujeitos a verdadeiros leilões, na base do “quem dá mais”. Os terrenos bem localizados, os lançamentos, as operações urbanas e a abertura de novas avenidas significam negócios muito rentáveis e relativamente fáceis de ser desenvolvidos – temos, sim, uma bem-sucedida indústria de imóveis luxuosos e exclusivos que são produzidos a um custo individual e social muito alto, paralelamente à produção de uma cidade real, periférica, informal, onde tudo é mais distante, pobre, precário e violento.
Por outro lado, nota-se que aos sem-teto estão se unindo artistas, estudantes, arquitetos, engenheiros, advogados, sociólogos, acadêmicos, outros cidadãos simpatizantes, todos compreendendo que não há saída digna que não seja pela porta da reforma urbana. E isso pressupõe produzir habitação social em quantidade e qualidade em áreas bem localizadas, inclusive e principalmente no centro expandido (temos conjuntos exemplares, como a Vila dos Idosos, no Pari, o Madre de Deus, na Mooca, ou ainda o da Rua Pirineus, nos Campos Elíseos, entre outros); colocar em prática a Cota Solidariedade (obrigatoriedade de produção de uma cota de habitação social para os grandes e médios empreendedores na mesma região do empreendimento); demarcar mais Zonas Especiais de Interesse Social (áreas prioritárias para produção de habitação para a população de baixa renda); e realizar Projetos de Locação Social (produção de habitação social de aluguel de propriedade pública para grupos específicos, como idosos, população proveniente da rua e dos albergues, estudantes – na Alemanha, esse tipo de habitação corresponde a 40% de todo o parque residencial). Além, claro dos programas de urbanização de favelas, reforma de cortiços e produção de habitação pelo sistema de autogestão ou cogestão, todos já experimentados e exitosos – sem falar no necessário IPTU progressivo para as propriedades que não cumprem sua função social.
Nas Américas, há experiências muito positivas de produção em cooperativas, como aquelas do Uruguai baseadas na autogestão, ajuda mútua e propriedade coletiva – experiência exitosa que se estendeu a outros países da região.1 Nos Estados Unidos, na Inglaterra e mais recentemente na Bélgica, o Community Land Trust2 se destaca como uma forma de propriedade associativa que – assim como a pública, na Locação Social – protege o investimento público da valorização imobiliária, a qual, com o tempo, tende a expulsar as famílias originariamente atendidas. Isso porque a experiência empírica mostra que, nesses processos históricos de produção com subsídios públicos, alguém quase sempre capitaliza e se apropria individualmente do investimento público, e este se perde numa espécie de fábrica de enxugar gelo ou como uma máquina de concentração de renda por meio da exclusão de um lado e da produção de plus valias urbanas de outro – a lógica do investimento do orçamento público vira, na prática, custeio.
A sociedade brasileira não precisa nem merece conviver com cidades inviáveis a piorar continuamente, nem assistir a reintegrações de posse violentas, muito menos conviver com novos Pinheirinhos. A saída não passa simplesmente pela construção maciça de conjuntos habitacionais nas periferias e subúrbios distantes onde a terra seria supostamente mais barata – embora seja necessária uma produção quantitativa para enfrentar o déficit.
Isso pressupõe fortalecer a esfera pública e qualificar a ação dos governos. Um país com tamanha diversidade e complexidade como o nosso pede um leque abrangente de políticas públicas territoriais articuladas, que abandone a rigidez e consolide a flexibilidade, dialogando com soluções que a contemporaneidade exige e que os valores modernos, liberais e fordistas3 não são mais capazes de suprir.
Estamos maduros para enfrentar uma reforma urbana séria e digna que nossas cidades e nossa população demandam nas ruas, nas praças, nas ocupações, nos conselhos. São Paulo deve dar o exemplo. Certamente isso tem um custo – equivalente à dívida social histórica de nossa sociedade desigual. Mais alto, porém, será o custo de negligenciá-la e não promovê-la.
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Francisco Comarú é engenheiro civil e doutor em Saúde Pública, é professor e pró-reitor adjunto da Universidade Federal do ABC.
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1 Gustavo González, La vivienda, entre el derecho y la mercancía. Las formas de propiedad en América Latina, We Effect (Centro Cooperativo Sueco)/Trilce, Montevidéu, 2014.
2 Ver em: www.communitylandtrusts.org.uk.
3 David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, 6 ed., Loyola, São Paulo, 1996.
Le Monde Diplo
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