Identidade em transe
Conversa sobre futebol é uma coisa, jogo, outra.
André Singer
Quando começa a partida, há como que uma suspensão das determinações externas (desde que não ocorra compra do resultado), o que constitui o interesse próprio da contenda, independente do mundo ao redor. Por isso, fica pouco produtiva a discussão sobre torcer ou não torcer por um time em função de elementos exteriores aos 90 minutos: política, eleição, gastos, corrupção, imagem internacional etc. Os que apreciam o esporte em si sabem que nada disso conta entre as quatro linhas do campo.
Porém, os debates sobre a Copa funcionam como tela na qual se desenham traços de identidade social que, estes sim, não só têm a ver com as condições externas, como funcionam como tentativas de síntese das mesmas, ou seja, da totalidade. "Brasil, país do futebol", é uma delas. Nós, brasileiros, somos o que somos, em alguma medida, por referência a um padrão cultural em que o futebol tem destaque.
Nesse terreno, o Mundial de 2014 apresenta modificações surpreendentes. Dá a impressão que em lugar de nos reafirmar como a sociedade em que prevalece o lazer e a descontração –afinal, futebol e Carnaval são atividades lúdicas–, está em curso uma espécie de rito de passagem para outro paradigma identitário. O indisfarçável azedume que se espalha ao redor do torneio da Fifa sugere que algo se move nas profundezas da autoimagem nacional. Mas para aonde?
Arrisco uma hipótese. Sem abrir mão do gosto pela prática futebolística, a "Weltanschaung" (visão de mundo) nacional tornou-se mais crítica do que era. Note-se que a negatividade parte de todos os quadrantes do espectro ideológico, cada um trazendo à tona sua parte de verdade.
A exclusão dos pobres, a falta de planejamento, o caráter duvidoso dos gastos públicos são elementos que organizam os discursos de esquerda, centro e direita nestes dias. E tais visões parecem ter ganho corações e mentes, deixando para trás um espírito de brejeira malandragem, que antes acreditava poder driblar a dura realidade a golpes de ginga.
Se eu estiver certo, em um contexto de transição para identidade mais adulta, mais desencantada e mais cética, o excesso de propaganda calcada nos clichês anteriores está a causar o efeito contrário. Irritados com a tentativa de montar um cenário "para inglês ver", muitos brasileiros estariam agora vontade de mostrar ao mundo que não somos mais moleques.
Controvérsia
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