quinta-feira, 12 de junho de 2014

QUARENTA DIAS, de Maria Valéria Rezende



Alfredo Monte 

Sabe o nome da rua que ele mora aqui na Vila? Aqui é grande demais pra gente conhecer todo o mundo (…) Aqui mesmo na vizinhança só tem uma pessoa de lá, Ô, Baiana!, guri, tu corre e chama a Baiana pra ver se ela conhece, Pobrezinha dessa mãe!, Filho perdido é coisa que mãe nenhuma aguenta. Vai, piá, vai ver se a Baiana está aí, que ela é de lá, de Fortaleza, é lá de Minas…”

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 08 de abril de 2014)

Como balizas deste meu texto, vou convocar algumas figuras femininas, a primeira delas Macabéa, a alagoana de A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, que conta justamente “as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela” (no caso, o Rio de Janeiro).


A paraibana Alice, narradora de Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, é mais bem-aquinhoada pela sorte material e está para entrar na dita “melhor idade” (“… meia-idade?, já ninguém mais diz isso, meia-idade, fica-se jovem até ser promovida a velha avó, mesmo sem netos, e olhe lá! A idade adulta sumiu, comprimida entre a juventude esticada até o limite do indisfarçável e a tal da melhor idade”)[1]. Contudo, é a uma inóspita (para “brasileirinhas” feito ela, no melhor estilo do racismo que nunca ninguém acha que existe por aqui) Porto Alegre que ela chega para cumprir a sina de “avó profissional”, após uma feroz conspiração familiar orquestrada pela filha, Norinha, a qual, tendo feito a mãe desenraizar-se tão traumaticamente, não hesita em partir para a Europa para uma temporada acadêmica. Afinal, a mãe já viveu o que tinha de viver…


Para escrever sua história, de como fugiu sorrateiramente daquele apartamento-arapuca preparado por Norinha e de como, por 40 dias, vagou por uma cidade toda feita contra ela, palmilhando favelas, bibocas, prontos-socorros, rodoviárias, subúrbios e lugares de pouso para sem-teto, na busca do paradeiro do desaparecido Cícero Araújo, peão de obra, filho de uma conterrânea[2], Alice se vale de um antigo caderno espiral com uma Barbie na capa. Sim, ela, o ícone da domesticação fetichista do que se pretende como “o feminino”, incluindo comportamentos e uma aparência física que só pode existir por meio de manipulação cirúrgica[3].


É nessa Barbie sempre passiva que ela descarrega sua revolta, contando suas andanças, das quais traz “detritos” (que compõem a estrutura visual do livro: panfletos, comandas, folhetos, e citações de outros autores[4]) e a memória convulsa de “toda essa gente que tomou conta de mim e grita e anda pra lá e pra cá e chora e xinga e gargalha e geme e mija e sorri e caga e fede e canta e arenga e escarra e fala e fode e fala e vende e fala e sangra e se vende e sonha e morre e ressuscita sem parar”.


Virou moda um escritor se alojar por curto tempo numa cidade que lhe é alheia e produzir um livro a partir da experiência fugaz[5]. Ou então, como em Budapeste (2003), de Chico Buarque, o nome da cidade (que acaba sendo um lugar-nenhum) servir como mote de uma trama que enfatiza uma “poética da pós-modernidade”, por um lado, até angustiantemente fantasmagórica; por outro, sofisticada e cosmopolita. Nada mais distante do que os desígnios de Maria Valéria Rezende no seu contundente romance. Nele, a sensação de “não-lugar”, transmitida em vários pontos do relato, mostra é a dinâmica da exclusão, a urbanização segregacionista que faz com que, sob o anseio de um perfil Dubai, onipresente nas metrópoles, aquele que porventura se extravie, encontre brechas inquietantes, realidades alternativas, como aquelas que Alice encontra na sua peregrinação ziguezagueante por conta de Cícero Araújo. Fendas (“rachaduras na superfície da cidade”) por onde é fácil desaparecer para sempre, tornar-se invisível e não-cidadão…


Cercada pelo “país das maravilhas cruéis”, Alice se reporta amiúde à sua xará, a menina inglesa criada por Lewis Carroll, também antípoda a ela quanto à idade (como a citada Macabéa), a jovem sempre às turras com as regras e a lógica do mundo adulto, que resultam arbitrárias e grotescas. Ingressando na “melhor idade”, da Alice paraibana se exige também que siga determinadas regras de conduta e assimilação[6], e ao se largar pela inóspita Porto Alegre da superfície, embarafustando-se pelos seus desvãos, ela descobre o que é ser uma figura desconstruída de mulher, “quase um monte de trapos, enrolada num trapo há muito tinha deixado de ser de luxo… Por não suportar o olhar do dono do bar que se tornava hostil, saí e retomei meus caminhos que levavam a tantos lugares e a lugar nenhum”.


Mas no país das maravilhas cruéis, da gentrificação, há um estreito espaço para um Brasil profundo, para um povo brasileiro que não se ajustou ao padrão-Fifa, e especialmente para a compaixão, no sentido que aprendemos com a ficção da grande autora de O voo da guará vermelha (2005): não apenas uma comiseração mútua, e sim o envolvimento e engajamento solidário entre as pessoas para além da degradação que a realidade monolítica que o capitalismo vem tentando construir e o cotidiano brutalizado podem oferecer[7].



Pois, como espero ter conseguido demonstrar (com a ajuda de Macabéa, de Barbie, das Alices), Quarenta dias é uma tremenda e necessária reflexão ficcional sobre o Brasil de hoje, que já foi o país do futuro, que está ameaçando se tornar um país xing ling das maravilhas, porém ainda tem suas Vilas Degoladas (favela onde supostamente vivia Cícero Araújo) e seus “brasileirinhos” incômodos e renitentes.

TRECHO SELECIONADO

Tive de voltar atrás, lembrando que, pra um banho valer a pena, era preciso, no mínimo, uma toalha, uma calcinha e um par de meias limpas, daquele jeito eu não podia continuar, só de pensar dava nojo. Percorri um corredor de lojinhas e logo ali, entre um balcão de perfumes e outro de relógios, celulares sem marca e chinesices semelhantes, achei um comerciozinho com todo tipo de roupa pendurada das paredes e do teto, consegui uma toalha de rosto não muito pequena, mas que ainda cabia na minha mochila, um par de meias, de homem (…) Enfim, Barbie, comprei as meias, a toalha e pedi calcinhas. Ai, nem você ia querer usar as calcinhas que a moça me mostrou, todas apropriadas pra eu voltar àquela pensão-hotel que me tentara, mas eu não estava pensando nisso, deusmelivre!, deviam pinicar, cheias de babadinhos de renda de material sintético, três cores a escolher, pretas, vermelhas ou, Olha que lindas essas, roxas! (…) eram aquelas coisinhas só pra constar ou pra efeitos supostamente eróticos. Pedi Não tem alguma coisa bem simples de algodão, sem nada de enfeito, bem confortável?, sumiu o sorriso aliciante debaixo da expressão de desinteresse, desprezo?, De algodão?, não tenho não, está em falta, faz tempo que não vendo calcinha de algodão, ninguém procura, de algodão só tem mesmo cuecas, tipo zorba, pra homem. Eu pedi Deixe ver as cuecas (…) Fiquei surpresa: a cueca exposta era uma calcinha com um aspecto mais confortável do que qualquer calcinha que eu conhecesse, mais folgada nas entrepernas, só tinha umas costuras a mais e a frente reforçada, nem sequer buraco pra tirar fora coisa nenhuma, era uma ótima calcinha, por que não?, se eu quisesse aquilo era uma calcinha, sim, comprei, feliz. Em oferta, três por 12. Pode crer, Barbie, foi uma descoberta e tanto!…


[1] Num dos melhores episódios do romance, Alice se vale das indicações dos porteiros do edifício em que Norinha a alojou em Porto Alegre para conseguir uma faxineira. Aparece uma candidata: “… dei com uma mulher alourada, bem mais nova, mais corpulenta e mais alta do que eu, que respondeu ao meu Boa-tarde com u resmungo, enquanto me olhava de cima a baixo”. No final de uma rápida interlocução, a suposta interessada no serviço diz: “É… não vai dar certo pra mim, não, senhora” e logo depois se retira. Consultando o porteiro, a perplexa Alice diz a ele que não entendeu patavina da atitude da moça. Algum tempo mais tarde, ele acha outra candidata: “Dona Alice, estou mandando aí pra senhora uma diarista que, essa sim, a senhora vai gostar demais e tenho certeza de que ela vai ter tempo e querer lhe servir, vão se dar bem, que ela é brasileirinha, assim como a senhora”. Trata-se da baiana Milena, “companhia da minha própria espécie”.


[2] “Um rumo vago. Que eu seguiria se quisesse. Talvez tenha sido o nome estranho do lugar que me despertou da letargia. Talvez tenha sido, sem que eu percebesse, a dor da outra mãe tomando o lugar da minha, um alívio esquisito, uma distração, e eu quis, sim, sair por aí à toa, por ruas que não conheço atrás do rastro borrado de alguém que nunca vi…”


Ao longo do relato, o fio de informação que ela tinha a respeito de Cícero Araújo para tentar encontrá-lo vai se transformando numa invenção, aumentada, refundida, deformada (“…achar ou inventar novas pegadas de Cícero Araújo…”, mas sempre comovendo e interessando as pessoas, pois todo mundo conhecia uma história assim, e dor de mãe é dor de mãe (chega uma hora em que ela começa a referir o caso como a “lenda de Cícero Dias”, “Imediatamente comecei a desenrolar minha lenda de Cícero Araújo”, o que não deixa de ser um expediente bem nordestino): “Criei coragem, invoquei mais uma vez Cícero Araújo, desfiei minha fábula…”


Os motes se dão a mão na tessitura perfeita de Quarenta dias: “Eu nem percebi, naquele dia, quando saí atrás de um quase imaginário, um vago Cícero Araújo, que estava, na verdade, correndo atrás de um coelho branco de olhos vermelhos, colete e relógio, que ima me levar pra um buraco, outro mundo. Também, que importância tinha? Acho que eu teria ido de qualquer jeito, só pra cair em algum mundo…”


[3] Quarenta Dias vai fundo nesse questionamento do “feminino”, inclusive nas suas formulações modernosas: ““O psicólogo discorria sobre o assunto e a entrevistadora escutava atentamente, com um sorriso beato. Verdade seja dita, o rapaz era bonito, simpático e falava bem, sem aqueles aaaa eeee costumeiros de intelectuais entrevistados, mas aquilo que ele dizia pra mim soava como um monte de besteiras. Então a mulher entra numa fase muito particular em que todo o seu organismo se prepara pra chegada de sua menstruação, conforme seu ciclo, blá-blá-blá… e seus hormônios se agitam e agem modificando as emoções e o comportamento, causando depressão, irritabilidade, mal-estar físico e até cólicas. Faça-me o favor! Ter de ouvir estas coisas calada!, havia mais pessoas na sala, inclusive um rapaz. Minha vontade era de responder com uma pergunta: E daí? Cólica, dor nas pernas, que mulher nunca teve coisas assim, quando a menstruação se aproxima?, desde que o mundo é mundo!, sem precisar de siglas pra se saber que bastava uma cafiaspirina pra resolver um bocado daquilo (…) Mas a explanação continuava: Então as pessoas mais próximas tem que estar atentas, ter tolerância, tratar com carinho e respeitar esse momento delicado, e mais blá-blá-blá… Veja só, Barbie, onde foi dar aquela conversa piegas. Ainda estavam nisso quando chegou a minha vez de ser atendida. A doutora me abriu a porta, séria, e pensei Só espero que ele não esteja com a tal de TPM. Imóvel na cadeira reclinada, enquanto ela cutucava o canal do meu dente, nem vi o tempo passar, a tal síndrome dando voltas na minha cabeça, novidade inventada pra dar lucros a médicos, psicólogos, anunciantes de televisão, laboratórios, revistas femininas, farmácias, ou pra dar mais e mais espaço às grosserias e descontroles que a minha geração vinha permitindo aos mais novos, eu com vontade de cuspir fora aqueles rolos de algodão e explicar pra pobre da dentista que, desde muito antes dela nascer, eu, minha mãe e minhas avós fomos mulheres, e nunca nos permitimos comportamentos parecidos com o que hoje ouvia que devem ser tolerados em nome da tal de TPM. E argumentava comigo mesma Pra mim sempre será só falta de educação tratar mal a quem quer que seja, e qualquer dia do ciclo…”


[4] Colhidas em sebos.


[5] Aliás, a origem de Quarenta dias está no projeto lançado em 2011, afinal não levado a cabo, “Redescobrindo o Brasil”, meio que nos moldes da série Amores expressos: seriam 14 escritores para 14 capitais brasileiras. Por isso, Maria Valéria perambulou por Porto Alegre. Felizmente, ela não desistiu de aproveitar a experiência.


[6] Um dos motes mais vivazes do texto é a referência aos “tamanhos” assumidos pelas duas Alices. Por exemplo: “Quando Umberto [o genro gaúcho] embicou o carro num portão, diante de um prédio qualquer daquela cidade nenhuma, acionou um controle remoto e entrou, parando ao lado de uma guarita, encolhi-me ainda mais, Alice diminuindo, diminuindo…”; em outra passagem: “… acordei logo cedo, disposta a deixar pra lá o ressentimento, ser realista, encarar as coisas como eram agora, como gente grande, voltar ao meu tamanho normal…”


Mas há inúmeras outras analogias tecidas em torno das aventuras das xarás. Deixo ao leitor o prazer de descobri-las, identificá-las.



[7] Cf. o episódio de Lola, em Quarenta dias, por exemplo.


Ver também aqui no blog:

http://armonte.wordpress.com/2012/12/08/a-verdadeira-senhora-do-destinoo-mundo-cada-vez-mais-vasto-de-maria-valeria-rezende/

http://armonte.wordpress.com/2012/12/06/por-detras-das-palavras-desencontradas-a-estreia-memoravel-de-maria-valeria-rezende/

http://armonte.wordpress.com/2012/12/04/a-linguagem-contra-o-esquecimento-do-ser-num-dos-grandes-romances-brasileiros/

http://armonte.wordpress.com/2012/12/07/universo-em-expansao-o-exodo-do-rural-para-o-urbano-de-maria-valeria-rezende/

http://armonte.wordpress.com/2012/12/07/um-momento-de-alegria-purinha-a-historia-sem-fim-de-o-arqueologo-do-futuro/

http://armonte.wordpress.com/2012/12/04/a-voz-do-povo-ouro-dentro-da-cabeca/



Monte de Leituras


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